quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Dia dos Finados

A morte não têm poder sobre a vida de quem ama.
(Sb 4,7-15; Sl 102/103; 2Cor 5,1.6-10; Jo 11,17-27)
É possível celebrar a morte, o fim sem volta da existência humana? Não seria ela sempre uma tragédia, ou, ao menos, uma perda irreparável? É verdade que sempre procuramos desesperadamente construir pontes – com os tijolos das palavras, dos ritos, dos símbolos, do amor saboreado, da esperança utópica, da fé teimosa – sobre o abismo que separa os que estamos aqui e os que se foram. Mas a morte seria mesmo apemas um abismo entre duas terras firmes, o aqui e o além, ou o fim obscuro e lamentável da nossa bela, apesar de tudo, mas sempre precária existência? Que sentido tem esse dia no qual lembramos as pessoas queridas que partiram deixando marcas e vazios na nossa carne, uma jornada na qual meditamos sobre o que nos espera, ou sobre o que podemos esperar com honradez?
“Deus os transferiu para outro lugar...”
Não é muito comum lamentar a morte das pessoas que consideramos más, ou que não tiveram uma influência positiva sobre nós. Conhecemos gente que se dispõe a antecipar o fim da vida de pessoas a quem consideram inimigas, e até da própria vida, quando lhe parece difícil, triste, sem sentido e sem futuro. Nestes casos, a morte não tem sabor de perda, mas de vitória e de liberdade. Mas tudo muda de figura quando se trata de uma vida plena de sentido, de uma pessoa que queremos bem e nos é preciosa. A morte da pessoa considerada justa e a morte precoce das pessoas que nos são caras abrem as portas da crise e nos impulsiona na busca de sentido.
Tanto o sábio da primeira leitura como Marta, a irmã de Maria e de Lázaro, no Evangelho de João, cada qual do seu jeito e com os recursos culturais que tem à mão, procuram um sentido para a morte da pessoa justa, boa e querida, a morte que ceifa a vida antes do tempo. A sabedoria popular do judaísmo encontra consolo afirmando que o sentido da vida não está no grande número dos anos, nem na sobrevivência neste mundo mau. “Ainda que morra prematuramente, o justo encontrará descanso... Deus o transferiu para um outro lugar... Tendo alcançado em pouco tempo a perfeição, completou uma longa carreira...” Ou seja: a morte é o ponto de chegada de uma vida plenamente realizada.
“Todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais.”
A resposta oferecida por Jesus é mais complexa e radical. O ponto de partida é o lamento de Marta, com sabor de advertência e de reclamação à insensibilidade de Jesus: “Se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido...” Afinal, Jesus tinha sido informado da enfermidade do amigo Lázaro, como nós não cansamos de lembrar a ele a doença e as necessidades das pessoas que queremos bem. Afinal, nada mais normal do que o desejo de prolongar e tornar menos difícil a vida das pessoas que amamos. Mas aqui o risco é reduzir a figura de Jesus a um curador, a um médico onisciente e onipotente.
Depois de cobrar a ausência de Jesus, Marta expressa confiança no seu poder de forçar Deus a anular a morte e prolongar a vida dor irmão querido. Jesus começa dizendo que Lázaro ressuscitará, mas Marta não consegue ir além da fé tradicional na ressurreição no final dos tempos, e essa crença lhe parece sem dinamismo e desprovida de significado no preciso momento em que seu irmão foi tragado pela morte. Mas Jesus lhe propõe algo absolutamente novo: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais.”
Por trás do diálogo tenso entre Jesus e Marta está uma questão muito importante e atual: o que esperamos de Jesus: cura, prolongamento da vida, reestabelecimento de uma situação do passado, ou vida plena, vida com uma densidade e uma força que nenhuma forma de morte pode estancar? Porque é Vida e caminho de amor e compaixão que a ela conduz, Jesus é ressurreição. Com seu modo de ser e de agir, com sua proposta de vida, ele suscita vita e, por isso, também a res-suscita. Para ele, e para aqueles/as que acreditam nele, o que importa não é uma vida sem enfermidade e sem limites, mas uma vida que tenha força de produzir e multiplicar vida.
“Crês nisso?”
Quem adere a Jesus Cristo, quem refaz o seu caminho, quem vive sob impulso do seu Espírito e por ele se deixa guiar, mesmo que tenha morrido, continua suscitando vida, e, nessa medida, vive. A vida de tais pessoas é mais que uma história a ser recordada, louvada ou lamentada: é percurso que continua aberto, travessia ainda em curso, beleza que continua atraindo, dinamismo que continua movendo e sustentando outras vidas de outras. E isso sem entrar na complicada questão de uma existência pós-histórica, em moldes semelhantes à nossa vida presente.
Mas Jesus afirma também que quem vive e crê nele, jamais morrerá. E isso tem sentido, porque nós morremos antes da morte – deixamos de gerar vida! – por causa do pecado, do fechamento em nós mesmos/as, do medo de perder a vida no despojamento e no serviço por amor. Aderir a Jesus Cristo significa assumir o último lugar, o lugar de quem serve por amor; significa perder o medo de morrer, acreditando que ele derrotou o poder assustador e destruidor da morte, e que a nossa vida está escondida com ele, em Deus. Quem vive em Jesus Cristo e nele acredita vence antecipadamente a morte, de modo que quando ela chega, é recebida como irmã, e não como ameaça.
A afirmação e a pergunta que Jesus dirigiu a Marta é dirigida também a nós. “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês nisso?” Marta dá sua resposta pessoal, no horizonte cultural do seu tempo, com a fé embrionária que a movia. “Sim, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo.” Teria ela compreendido que, mais importante que ter de volta o irmão falecido, é que o Messias de Deus venha permanentemente para reerguer as pessoas subjugadas pelas sombras da morte e dirigir os nossos passos nos caminhos da paz? Aderindo a ele, perdemos tudo, recebemos tudo, e não temos necessidade de garantir nada.
“Enquanto moramos no corpo, somos peregrinos...”
Escrevendo aos coríntios, o apóstolo Paulo nos convida a compreender bem o sentido da existência em Cristo, e, nela, o sentido da morte. Ele reflete sobre a nossa vida histórica comparando-a a uma tenda, à habitação provisória de quem sabe que está aqui só de passagem. Enquanto habitamos nessa tenda, continuamos peregrinos, caminho para Deus, mesmo sabendo que em Jesus Cristo ele já veio definitivamente ao nosso encontro e o Reino de Deus já começou e está entre nós. Por isso, caminhamos cheios de confiança, e não lamentamos deixar essa tenda em vista do lar definitivo.
Não podemos cair no simplismo de ler estas palavras num horizonte dualista, opondo ou colocando lado a lado um certo mundo material e um suposto mundo espiritual, uma vida corporal e uma vida espiritual. Como cristãos, cremos que a vida humana, e todas as expressões da vida, é pascal, ou seja: é Travessia, Passagem, Caminho. A história – nas suas dimensões de passado, presente e futuro – e o corpo – nas suas dimensões de interioridade e exterioridade – são a paisagem, o chão e a expressão da vida, mas não a esgotam, nem a detém. Quem desiste de peregrinar rumo ao outro mundo possível, renega a fé em Jesus Cristo e morre definitivamente, mesmo que continue biologicamente vivo/a.
Tudo isso parece muito complicado, mas o testemunho de tantas pessoas amadas que nos já deixaram proclama essa fé de modo simples e eloquente. E aqui não é preciso recorrer às grandes figuras do passado, nomes que pontilham de vida nosso calendário santoral. Todos temos a alegria de conservar ‘no lado esquerdo do peito’ o nome e a imagem sagrada de pessoas, às vezes muito sofridas e cheias de limites, que viveram a vida como Travessia, caminhando cheias de confiança em Jesus Cristo, levando quase nada na bagagem, deixando tudo como sal que conserva e dá gosto, como fermento que faz crescer, como semente que germina e floresce. Essas pessoas jamais morrerão!
“Como a erva são os dias do homem...”
Jesus de Nazaré, Unigido do Pai para suscitar e ressuscitar a vida! Também tu viveste a fragilidade da vida humana e a amaste desmedidamente. Como a tua, também nossa existência é pó que o vento leva, é erva que o vento seca. Ajuda-nos a vivê-la em ti, no teu espírito, no dinamismo da tua compaixão humanamente divina e sem medo do nada da morte, pois a bondade tua e do teu e nosso Pai vêm desde sempre e dura para sempre. Ensina-nos a cumprir com alegre confiança e generosa compaixão a apaixonante Travessia do nosso viver. E que a saudosa lembrança daqueles/as cuja tenda corporal foi desfeita e entraram na morada definitiva ilumine, anime e perfume nossa estrada. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

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