sábado, 30 de novembro de 2013

Preparar o Natal

NATAL de jesus VERSUS DEUS DO MERCADO

Cedo aprendemos que o Menino Jesus nasceu em Belém, na manjedoura de uma gruta, pois, segundo os relatos evangélicos, “não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2,7). Desde a infância, fascina-nos a alegria e o canto dos anjos e dos pastores que, no meio da noite, partem para adorar o recém-nascido, envolto em faixas e deitado entre os animais. Mais tarde, guiados por uma estrela, chegarão também os reis magos com seus presentes de ouro, incenso e mirra, provenientes do oriente, ajoelhando-se diante do Senhor dos senhores.
O tradicional presépio familiar, ou aquele montado na comunidade ou Igreja, trazia imagens gravadas com o toque de dedos mágicos em nossa memória mais remota, imagens que o vento não consegue varrer ao longo de toda a existência. Mais tarde, ao lado de Maria e do carpinteiro José, Jesus vive e cresce “em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e diante dos homens” na humilde casa de Nazaré (Lc 2,52). Essas eram as peças que compunham o cenário de uma noite grandiosa, iluminada por um evento inusitado, envolvendo sombras e estrelas, a atmosfera ao mesmo tempo mística e poética do Natal. Deus irrompe no palco da história humana para abrir-lhe novos horizontes!
Hoje o Menino Jesus nasce, em primeiro lugar e com meses de antecedência, nos supermercados, nas lojas dos grandes centros comerciais e até nas agências bancárias ou repartições do poder público. Divide espaço com outros elementos, tais como a árvore recheada com os mais diversos enfeites, os presentes cuidadosamente embalados e uma série de símbolos que expressam desejos, promessas e esperanças de todo tipo. Mas, de forma particular, vem crescendo progressivamente a importância de outro personagem natalino, o simpático e ao mesmo tempo astuto Papai Noel. Embora tenha surgido bem mais tarde no curso dos tempos, atualmente ambos entram em concorrência pela compra e venda de mercadorias, como também pela atenção das pessoas, especialmente das crianças. Além disso, concentram e disputam os holofotes e anúncios da publicidade que precede as festividades natalinas.
Com o passar dos anos, porém, o segundo personagem ganhou espaço sobre o primeiro: o velhindo de cabelos e barbas brancas, exoticamente vestido e sempre sorridente e bonachão, com a expectativa dos brinquedos, deixa o recém-nascido na sombra. Este aparece em cena como que escanteado e meio evergonhado, diante de tantas luzes e cores, música e movimento. Ambos estão envoltos nos apelos e no fascício extraordinários do entusiasmo natalício, mas, no grande teatro da festa, os papéis dos atores parecem inverter-se: o coadjuvante toma o lugar do protagonista e viceversa.
O índolo do comércio sobrepõe-se ao Deus menino – nu, pobre e frágil – “Verbo que se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14). Os valores humano-divinos que este representa, bem como sua chamada à conversão e à mudança de vida anunciadas por seu precursor João Batista (Lc 3,1-20), se folclorizam e se neutralizam diante do império, da sedução e da força do mercado. Como se o Natal representasse, nos dias atuais, um mero pretexto para aumentar as oportunidades de novos empregos, a desova de estoques e os ganhos fabulosos. Os shopping-centers em especial representam as grandes catedrais do novo deus mercado/capital.
O que mudou ao longo dos tempos? Por quê as atenções se deslocam do relato original neotestamentário para se concentrarem  em seus dados secundários? Por quê a criança enfaixada na manjedoura comparece para logo desaparecer na penumbra de um afã que, ano a ano, esquenta as vendas e os lucros, conferindo bom humor às bolsas de valores e ao ídolo mercado”?
Ocorre que o mundo contemporâneo, materialista e de economia globalizada, move-se sobre outro pano de fundo. O volume de vendas e dos ganhos, a oportunidade de acumular mais capital, a ânsia febril das novidades, a velocidade da produção, da comercialização e do consumo... Tudo isso toma o lugar e o sabor misterioso do clima natalino. O segredo se desfaz, desnuda-se-lhe a magia e o encanto, perde seu revestimento humano-divino. O marketing e a propaganda, sempre apelativos e estridentes, encarregam-se de apresentá-lo com nova roupagem.
O mistério da encarnação ganha vestes modernas ou pós-modernas, onde a simplicidade da gruta de Belém e da casa de Nazaré vem substituída pela parafernália de objetos, luzes e sons da revolução eletrônica e informática. Os enfeites da árvore de Natal e a eloquência do “bom velhinho” encobrem a nudez incômoda e interpeladora de um Deus que se faz homem, quando os homens buscam a todo custo ignorá-lo ou substitui-lo.
Como conviver com semelhante transformação? Ou melhor, como conciliar essas duas concepções do Natal – a magia do presépio e a euforia do comércio, a visão religiosa e a visão laica? O Menino Jesus e o Papai Noel constituem figuras opostas, ou podem caminhar de mãos dadas? Não se trata, evidentemente, de colocar uma contra a outra, como que opondo a tradição sólida ao oportunismo imediato, ou o verdadeiro ao falso. Teoricamente a tradição natalina não se opõe às revoluções e ao progresso da humanidade. Em termos teológicos, o mistério da encarnação não diminui em nada a liberdade humana. Ao contrário, Deus nos visita e vem caminhar conosco no deserto, no êxodo e no exílio para assumir as opções e a obra da humanidade em seu conjunto. Obra em que a razão, a ciência e a tecnologia, com todos os seus avanços, evolições e descobertas, desempenham um papel decisivo.  Deus entra a fazer parte da trajetória humana não para inaugurar uma outra história – paralela, acima ou superior – e sim para legitimar e sacrementar nossa travessia pessoal e coletiva com sua graça e sua benção. Faz da cidade a sua tenda, para usar a expressão do Livro do Apocalipse (Ap 21,1-8), divinizando a obra por escelência da inteligência humana.
O mais importante, em meio à correria costumeira nas proximidades do Natal, é não perder de vista a centralidade do nascimento de Jesus, o mistério de sua encarnação concretizada na vida e palavras, gestos e obras do Galileu itinerante. Está em jogo o significado mais profundo de um Deus “que não se apega à sua condição divina”, mas “humilha-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-11). Pelo nascimento em Belém, vem caminhar conosco, trazendo-nos a Boa Nova do Reino de Deus e da salvação. É Ele o personagem central da festa, assumindo e revestindo a trajetória humana com o seu amor infinito e incondicional.
Talvez o termômetro mais vivo dessa centralidade esteja na forma de realizar a ceia de Natal. Que é ela no cotidiano de nossa existência? Ou em que se tornou nos dias atuais? Um encontro para celebrar o nascimento de Menino Deus, reunindo e reforçando os laços familiares; ou um momento para troca de presentes e para saborear as iguarias inéditas do banquete natalino? Uma celebração rica de significado ou uma festa a mais, entre as tantas que promovemos? Até que ponto mantém uma memória viva e ativa no coração do cristianismo? Até que ponto encontra-se banalizada diante de uma infinidade de atrações que o Natal oferece?
As duas coisas não se excluem. Covém não esquecer que “assim como a fé absolutizada, também a racionalidade absolutizada desencadeia energias destrutivas”, como afirma Hans Kung. É possível, sem dúvida, relembrar o Natal do Senhor, aproveitando ao mesmo tempo para re-unir a família e os amigos ao redor de uma mesa farta, antecipação e anúncio do banquete do Reino. Não raro, e com frequência crescente, o centro dos festejos se desloca do acontecimento primordial para o exagero do consumo, da comida e da bebida. Isso para sequer falar das tensões e conflitos, da violência, divisão e discórdia que, no limite, esse deslocamento pode representar.
A fé religiosa, longe de se opor, contempla a dimensão da festa. Vale aqui o retorno às fontes, à imagem poética da infância, à simplicidade do presépio franciscano – como motivações para retomar e aprofundar o sentido do Natal, brasa viva e vivificante muitas vezes escondida sob as cinzas das paixões, impulsos e desejos e imediatos, dos bens materiais e perecíveis. Resulta que a celebração do Natal foi, é e continua a ser uma oportunidade sem igual para “buscar as coisas do alto onde a traça e a ferrugem não corroem, nem os ladrões podem roubar” (Mt 6,20). Oportunidade e desafio, também, para ampliar o leque da justiça, da solidariedade e da paz, frente às assimetrias e desequilíbrios que marcam tão fortemente a sociedade contemporânea. Natal é tempo kairológico para abrir o coração ao outro, ao pobre, a Deus que vem e a si mesmo.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

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