quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Festa da Apresentaçao de Jesus

Jesus assume a condição humana e se faz nosso irmão
A passagem do Evangelho sugerida para a Festa da Apresentação do Senhor (Lc 2,22-40)reúne uma série de episódios interligados: apresentação de Jesus no templo (v. 22-25); encontro com Simeão e sua profecia sobre o Menino (v. 25­35); encontro com a profetiza Ana (v. 36­38); retorno a Nazaré e o crescimento normal e anônimo de Jesus (v. 39­40). As três primeiras cenas se desenrolam no templo, centro espiritual e cultural do judaísmo. A última é uma espécie de contraponto teológico ao templo, e se desenrola em Nazaré, na região da Galiléia.

A primeira cena mostra a apresentação de Jesus ao templo. As leis judaicas obrigavam os pais a consagrar a Deus o filho primogênito. Para recuperar o direito sobre os filhos devidos a Deus, eles precisavam resgatá-los mediante uma oferta. Lucas não menciona a oferta pelo resgate de Jesus (como se ele continuasse para sempre consagrado a Deus!), mas somente a oferta prescrita para a purificação de uma mãe pobre. "Se ela não tem meios para comprar um cordeiro, pegue duas rolas ou dois pombinhos: um para o holocausto e outro para o sacrifício pelo pecado" (Lv 12,8).

A segunda cena apresenta o encontro de Josée Maria com Simeão, homem piedoso e devoto que cultiva a esperança da vinda do Messias. Não é sacerdote e nem vive no templo; é um homem justo, como José e, como os pastores, capaz de reconhecer o Messias­Servo na fragilidade do menino que acolhe nos braços. Simeão credita que no Messias todos os povos são acolhidos e salvos por Deus. E  reconhece e apresenta o menino Jesus como luz para todas as nações e povos.

O pai e a mãe de Jesus ficam maravilhados com o que Simeão diz do menino. É a reação própria de quem acolhe com gratidão a ação libertadora de Deus na história mediante os pobres e humildes. E o esse estupor tem dois motivos: o primeiro é o fato de Simeão reconhecer Jesus como Messias, mesmo sem ter recebido nenhuma informação a respeito; o segundo são as palavras de Simeão anunciando o caráter e a missão universal de Jesus. José e Maria, discípulos e aprendizes...

Simeão invoca sobre José e Maria a bênção de Deus e lhes fala das contradições que o filho provocaria, da sua missão de revelar aquilo que está escondido no silêncio malicioso dos homens. Fala também sobre o destino do filho e prevê os sofrimentos de Maria, parábola dos sofrimentos da Igreja. Quem partilha o projeto e a vida de Jesus deve partilhar também da contradição que ele provoca, da sua rejeição e do seu fracasso. Estar com ele significa sofrer com ele.

Uma segunda pessoa que dá testemunho de Jesus no templo é Ana. Além de piedosa, Ana é conhecida como intérprete dos desígnios de Deus. Ela se aproxima de Jesus e seus pais, como os pastores e Simeão haviam feito antes. Também ela acolhe e entende o sinal, e anuncia aos quatro ventos a salvação que em Jesus se manifesta. Ana louva a Deus pelo que lhe fora dado presenciar e anuncia o Messias presente no menino a todos aqueles que o esperam teimosamente.

Os dois últimos versículos da perícope são uma espécie de contra­ponto ao entusiasmo despertado no pequeno círculo das pessoas reunidas no templo. A volta a Nazaré é uma descida da exaltação no templo para o anonimato em Nazaré. É nesta suspeita vila da Gasliléia que o menino cresce e fica forte, cheio de sabedoria. Uma sabedoria adquirida longe do templo, participando na vida cotidiana do povo. Se, no templo, Jesus é apresentado a Deus e brilha, em Nazaré ele é apresentado ao povo de Deus, respira suas legítimas tradições e nelas lança profundas raízes!

A Carta aos Hebreus vai na mesma linha. Jesus assume a condição comum a todos os homens e mulheres, faz-se em tudo semelhante a nós, é uma espécie de encarnação de uma misericórdia que merece confiança e que nos liberta do medo escravizador. Por ter experimentado o sofrimento e a tentação, Jesus é capaz de socorrer aqueles que sofrem e são tentados pelo desânimo. Apresentado a Deus no templo, Jesus é por ele devolvido à humanidade como irmão solidário e salvador.

Jesus de Nazaré, filho amado de Maria e de José, anjo da Aliança e em tudo semelhante a nós! Bendito sejas por tua divina raiz e pela tua proximidade redentora! Tua presença confirma nossos sonhos e descobre nossas ambiguidades! Que tua Presença e tua Palavra sejam força a nos reerguer e, através de nós e da comunidade que nasce do teu lado aberto, luz e liberdade para todos os povos! E que os homens e mulheres que a ti se consagram te louvem e anunciem com a vida! Assim seja! Amém!


Pe. Itacir Brassiani msf

(Malaquias 3,1-4 * Salmo 23 * Carta aos Hebreus 2,14-18 * Lucas 2,22-40)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Desafios atuais à Vida Religiosa (2)


Desafio 2: Potencializar a vocação profética

A vida religiosa é fruto e dom do Espírito de Deus que se derrama nas  coisas e as assume como habitação e, ao mesmo tempo, dos movimentos da história. De um certo ponto de vista, o cristanismo é um movimento histórico que nasce a partir de Jesus Cristo. E, como sabemos, a história é o âmbito das relações sociais, o espaço da sociedade, da política que faz e refaz as instituições e move a história. Em outras palavras: a história não é o terreno do privado, mas a res-pública.

A Vida Consagrada é histórica em pelo menos dois sentidos complementares: ela traz sempre, nos diversos rostos que assume, os traços concretos de um determinado momento histórico; ela é um ator no palco da história, um ator capaz de interagir com outros e de influir sobre os movimentos sociais e culturais de conjunto. Para ser fiel a si mesma, a Vida Religiosa não pode fugir da história (no duplo sentido acima referido) e refugiar-se numa mística intimista, evangelicamente desviante e socialmente irresponsável.

A partir da prática e da pregação de Jesus sabemos que ares-pública é coisa de Deus. Ele anuncia e inaugura o reinado de Deus, que começa transformando o mundo. O espaço político, a ágora dos gregos, é o campo no qual se joga a partida que interessa ao Deus de Jesus Cristo. Não há disputa ou exclusão entre adoração a Deus e ação política. Como rede de pessoas que professam publicamente o desejo de se dedicarem exclusivamente a Deus e seus interesse no mundo, a Vida Religiosa precisa tomar partido qualificado nas disputas que estão em jogo em cada conjuntura histórica.

Mas a Vida Religiosa entra nas disputas da história sem o interesse primordial de se auto-perpetuar, ou com o objetivo de representar os interesses da instituição eclesial ou da civilização ocidental, mas para cuidar que germinem e floresçam nela as sementes do Reino de Deus. E isso significa, entre outras coisas, entrar na história a partir da periferia, das dores, sonhos e direitos dos pobres, dos últimos. O Papa Francisco tem lembrado isso repetidamente a todos os cristãos! E aos religiosos: “A prioridade de Vida Religiosa é a profecia do Reino, e isso é inegociável. Os religiosos jamais podem renunciar à profecia...”

A fidelidade evangélica e cristológica da Vida Religiosa não se mede pela imponência dos seus edifícios, pela beleza das suas consituições, pelo número de alunos das suas universidades ou pela relevância social das suas obras sociais, mas pela intensidade da presença e das parcerias com os seres humanos que são jogados nos porões ou periferias da vida. E terá vida longa e digna na medida em que perceber, maravilhada e agradecida, que é ali que Deus fez morada e vem ao seu encontro como graça e exigência.

Itacir Brassiani msf

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Reflexões do Pe. Ceolin msf (2)

Religiosos consistentes

O tema do Capítulo Geral de 2001 è “Renovação da vocação religiosa como fonte de um apostolado mais fecundo”. Creio que esta poderia ser sua meta e objetivo. O tema proposto quiçá possa ser expresso noutros termos. Assim, por exemplo: “Nosso agir apostólico terá tanto mais fecundidade quanto mais nos renovarmos religiosamente.” Deste modo estaríamos afirmando explicitamente que pretendemos dar a primazia ao ser e não ao fazer. Estaríamos confessando que a eficácia apostólica não é primordialmente fruto da nossa eficiência, tão apregoada na atualidade.

Neste momento, muito se escreve e ouvimos falar a todo instante em refundação da Vida Consagrada. Para renová-la e revitalizá-la qual seria o ponto de partida? Dos anos 70 para cá atualizamos as Constituições. Muitos religiosos fizeram a experiência das pequenas comunidades. Partimos para a inserção. Estamos agora em franco arrojo missionrio. Mudamos o estilo da formação inicial. Introduzimos a formação permanente. Lá vieram a CRB, a CLAR. Surgiram o Postulinter e o Novinter, etc. Todo este esforço, toda essa mobilização e estes investimentos estão nos trazendo os frutos desejados? Já podemos afirmar e apregoar que, no final deste milênio, os religiosos se tornaram mais consistentes?

Deparando-me com o que se diz no documento preparatório do próximo Capítulo Geral (p. 6, n° 10), confesso que senti levantar-se em minha alma uma certa inquietude, em razão do que ali é dito: “A vocação é um dom de Deus e nasce da experiência de seu amor por nós e por toda a humanidade. Esta experiência de Deus é o fundamento que sustenta a nossa consagração, a atuação missionária e os nossos projetos pessoais e institucionais. A experiência do dom gratuito de Deus leva os religiosos a serem eles mesmos dons, no amor fraterno e no serviço aos pobres, refazendo o caminho de Jesus Cristo.”

Associo o que acabo de transcrever ao que é dito no nosso Plano de Formação: “A finalidade do processo pedagógico é a formação do religioso Missionário da Sagrada Família, homem consagrado humanamente maduro e espiritualmente renovado: aberto e equilibrado, capacitado para a auto-crítica, humilde e modesto em seus hábitos de consumo, dado à vida comunitária, sensível e comprometido com as lutas do povo, peregrino apaixonado por Deus e sua vontade.” Eis o rosto idealizado dum Missionário da Sagrada Família consistente!o

E, para atingir tal consistência, para tornar-se e permanecer um Missionário da Sagrada Família de tal quilate? É o que todos devemos nos perguntar às portas do Capítulo Geral, nos albores do novo milênio. Sintamo-nos na obrigação histórica de reler e avaliar a caminhada feita até aqui pelos religiosos e pela Congregação. Em tudo o que fizemos e inovamos na Vida Consagrada, o que realmente foi válido e propiciou renovação? Houve lacunas neste processo renovador? Quais? Por quê?

Faço-me tais indagações e questionamentos, que ora compartilho, movido por situações com as quais tenho convivido. Candidatos (vocacionados) convivem anos conosco e, aproximando-se o noviciado, a profissão religiosa temporária ou definitiva, estremecem, titubeiam e recuam. Em muitos deles se percebe que não conseguiram fazer uma real e profunda experiência de Deus, base e fundamento para efetuarem sua alegre e amorosa entrega de si.

E o que dizer diante da desistência de religiosos e presbíteros, após anos e anos de consagração e de ministério? Estaria havendo lacunas durante o processo de formação? Eu pergunto a mim mesmo: “E eu, Rodolpho, posso afirmar que já fiz uma suficiente experiência de Deus na minha vida? E sem tê-la feito, posso eu exercer o ministério da fomação? Sou eu um Missionário da Sagrada Família consistente em meio a meus coirmãos junioristas e da comunidade?
Pe. Rodolpho Ceolin msf


(Publicado em O Bertheriano, Ano XVIII, julho/2000, p. 19)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Desafios atuais à Vida Religiosa (1)

Desafio 1: Ser uma vida religiosa com raízes místicas

A modernidade não cumpriu a grande promessa com a qual seduziu povos e instituições: transformar o mundo num paraíso. O que fez foi reduzir a vida a um paraíso tecnológico, desencantando-a totalmente. Nem mesmo as promessas da modernidade na sua versão marxista se realizaram como alguns teimam em ignorar, e a própria mudança social pode acabar sendo reduzida a uma teconologia social desprovida de utopia e de humanidade, sem profundidade e sem horizontes.
A vida só é possível se for reinventada, poetiza Cecília Meirelles. Um caminho que não tem coração não merece ser trilhado. O que hoje muita gente sabe é que a realidade é muito mais daquilo que é hoje, daquilo que deixa perceber de si mesma. Há um mistério que habita, une e move todas as coisas. Há um espírito imanente, que não se deixa apreender nas aparências e apenas se insinua no fenômenos. A vida é sacramento de algo maior que ainda não se deixa ver, ou ainda não se manifestou no mundo.
Hoje a Vida Religiosa precisa superar o fundamentalismo institucional, o moralismo estreito, a visão horizontalista e um certo pragmatismo apostólico e cultivar a capacidade de perceber uma Presença ou Ausência que dá sentido, unidade e dinamismo à história. Este é o primeiro desafio que a interpela, e também a sua possibilidade de viver como quem honra a vida, e não simplesmente como quem dura, como quem sobrevive. Precisamos cultivar um olhar sensível ao mistério!
É claro que não se trata de um sentimento intimista e confuso, pronto a espiritualizar tudo e nada. O desafio e o caminho é desenvolver uma espiritualidade pneumatológica e cristã, que nos ajude e ensine a perceber o “mais” de sentido e de beleza que está por trás e dentro das pessoas, grupos, iniciativas, coisas e acontecimentos. Como testemunhava Luís Carlos Borges, não obstante seu crasso agnosticismo e a cegueira que o feria no final a vida: “Passados os anos tenho observado que a beleza, como a felicidade, é freqüente. Não há um dia em que não estejamos, um instante, no paraíso.”
Mas não podemos esquecer que mística cristã supõe e requer momentos, espaços e símbolos nos quais possa se expressar, alimentar e reproduzir. Entre tantos, não podemos esquecer a despojada e habitada solidão da oração; a escuta cordial da Palavra; a beleza graciosa da dança e da poesia; o silêncio profundo e eloquente; a densidade comunicativa dos símbolos e ritos; a bela e exigente fidelidade nas pequenas e grandes coisas e momentos; a doação fecunda no compromisso intransitivo com a vida e a causa dos mais pobres e indefesos...


Itacir Brassiani msf

Terceiro Domingo do Tempo Comum (Ano A - 2014)

Você acredita que o Reino de Deus está próximo?
Rio S. Francisco - Januaria (MG)
Aquele que foi anuniado como o Cordeiro de Deus vem ao encontro dos últimos da sociedade e estabelece entre eles sua morada. A partir de um mundo periférico e tenebroso, Jesus de Nazaré anuncia viabiliza uma novidade que muda radicalmente o mundo: o Reino de Deus está tomando força. Para acolher e levar adiante este sonho indomável, ele chama homens e mulheres de boa vontade, aos quais pede unicamente que abram os olhos e a mente à novidade em curso e tenham a coragem de romper os compromissos com os velhos e às vezes dourados sistemas de dominação.
Jesus começa sua missão depois que lhe chega a notícia da prisão de João Batista, seu parente profeta. Ele traz ainda muito viva a recente experiência do encontro com este profeta radical à beira do rio Jordão, a consciência de ser filho amado e servo dedicado (cf. Mt 3,13-17), assim como a prova das tentações, antecipação do confronto duro e exigente que marcaria toda sua missão (cf. Mt 4,1-11). Jesus deixa sua pequena e querida Nazaré e se muda para para Cafarnaum, às margens do mar, sempre na região da Galiléia.  Mas esta mudança de endereço não tem nada de fortuito!
No passado, a região de Zebulon e Neftali fora palco de uma violenta deportação. Para Jesus, é lá que se reacende a luz da esperança e ressurge um canto de alegria. Ele escolhe esta região guiado pelo Espírito de Deus. Não muda de Nazaré para cidades maiores e importantes como Tiberíades (importante cidade portuária) ou Séforis (destacado centro cultural). Como cidadão judeu num território controlado por Roma, Jesus decide continuar morando na margem, junto à população empobrecida, longe daqueles que colaboram com o império e ao lado daqueles que lhe resistem.
Com a presença de Jesus, a noite da opressão que envolve os povos se transfirgura em noite da libertação, a periferia se converte em centro de renovação, a canga e a vara que encarnam a dominação viram lenha de fogueira. Gritos e cantos de alegria substituem o clamor de um povo submergido nas sombras da morte. A razão de tal mudança? Tudo brota do alegre e jubiloso anúncio de Jesus: “Convertei-vos, pois o Reino dos Céus está próximo!” O tempo de espera se esgotou! Ele é o enviado de Deus para desatar o pesado fardo do pecado, jogado às costas do povo.
Mas Jesus não se limita a anunciar a proximidade do Reino de Deus. Ele faz questão de demonstrar seu dinamismo mediante ações claramente libertadoras. Segundo o evangelista, Jesus “percorria toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, anunciando a Boa Nova do Reino e curando toda espécie de doença e enfermidade do povo.” Ele restaura a integridade física dos doentes, possibilita a reinserção social dos excluídos, derrota as forças que oprimem o povo e cura um mundo radicalmente enfermo. Com Jesus e em torno dele começa uma nova história.
Mas sem envolvimento pessoal na ação não há liberdade que seja digna do nome. Por isso, além de anunciar e demonstrar a irrupção dos áureos tempos sonhados, Jesus age chamando discípulos e associando-os à sua missão. Em torno dele, as pessoas chamadas formam uma espécie de comunidade alternativa, centrada na vivência, no anúncio e no serviço ao Reino de Deus, a libertação radical do ser humano. O chamado de Jesus é uma espécie de contestação da pretensa imutabilidade da ordem dominante e uma demonstração da fecundidade da força que vem de Deus.
Os primeiros membros desta comunidade alternativa são duas duplas de irmãos, quatro galileus marginais que se ocupavam da pesca. O evangelista ressalta a resposta positiva, imediata e incondicional do quarteto ao chamado de Jesus. A decisão de seguir Jesus comporta sempre, além da total confiança nele, um custo social e econômico considerável, expresso pela mudança de atividade. Os filhos de Zebedeu deixam o barco e o pai, rompem com os valores da família patriarcal e com a sustentação do império romano e lançam as bases de uma família nova e alternativa.
Deus querido, pai e mãe de uma humanidade ferida e sedenta de vida. Teu Filho iniciou sua missão na periferia, e continua chamando homens e mulheres pouco influentes mas muito sonhadores. Faz ressoar em nossos ouvidos, e nos ouvidos de muitos, o convite que ele não cessa de fazer. Dá-nos liberdade e generosidade para lançarmos as sementes de uma nova humanidade, prefigurada em famílias abertas e inclusivas e em comunidades solidárias e totalmente empenhadas na tarefa de conduzir todas as pessoas e povos à tua única e querida família. Assim seja!  Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Isaías 8,23-9,3 * Salmo 26 (27) * Primeira Carta aos Coríntios 1,10-13.17 * Mateus 4,12-23)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Desafios atuais à Vida Religiosa

Vida Religiosa Consagrada: alguns desafios

No último sábado (18 de janeiro), participei de uma bela celebração na qual um grupo de 15 Irmãs de Santa Catarina celebravam o jubileu (25, 50, 60 e 65 anos) de vida consagrada, e uma professava seus primeiros votos no mesmo instituto. Nos dias anteriores (16 e 17 de janeiro) participei, em Porto Alegre, de uma parte do curso de especialização em Vida Religiosa, promovida pela Conferência dos Religiosos do Brasil e pela Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF), guiando uma reflexão sobre as intuições fundamentais e os desafios atuais da Vida Religiosa Consagrada.
Os participantes do curso eram majoritariamente jovens, ou melhor, não eram idosos. Por outro lado, a maioria dos mais de 400 participantes da celebração jubilar, obviamente, eram pessoas de idade mais avançada. Fiquei imaginando esta mesma celebração sendo realizada a 50 anos atrás: certamente a proporção entre professandas e jubilares seria inversa... E as diferenças não se limitariam apenas a este aspecto... Tudo isso nos leva a perceber a urgência de repensar e recriar a vida religiosa, para que seja vida e seja religiosa também nos tempos e na situação atual da Igreja.
Repensar a vida religiosa hoje sopõe, como nos lembram Antonieta Potente e Giséle Gómez, uma atenção responsável aos movimentos da história e à divina Presença no seu interior. Para os cristãos, a história não é terreno alheio à fé ou, menos ainda, campo de ação do demônio, mas habitada e fecundada por “questões de grande importância”: desejos, sonhos, nostalgias, expectativas. Precisamos reler e recontruir a VR na perspectiva da coincidência entre o desejo humano e o desejo divino. É isso que celebramos na encarnação.
Como pessoas consagradas ao Deus de Jesus Cristo, precisamos aprender a ler a história a partir de dentro, a discerni-la e compreendê-la unindo mística e profecia. As coisas públicas são as coisas de Deus (profecia). Mas o Papa Francisco nos adverte a entrar na história pela porta certa:  “As grandes mudanças da história não se realizam quando a realidade é vista a partir do centro, mas a quando é vista do ponto de vista da periferia: só compreendemos a realidade quando a olhamos desde a periferia, não quando olhamos a partir de um centro equidistante. Para entender verdadeiramente a realidade, precisamos deixar a calma e a tranquilidade da posição central e dirigirmo-nos à zona periférica.”
A função simbólica da Vida Religiosa Consagrada no mundo e na Igreja e no mundo consiste em evocar o permanente que está semeado na história, o que tem e cria futuro, o amor que nunca passa nem fica velho. E ela faz isso através da exageração profética: renunciando ao que é funcional e transitório e assumindo aquilo que tem força de eternidade. De novo o Papa Francisco: “Os resligiosos seguem o Senhor de maneira especial, de modo profético. E eu espero de vocês este testemunho. Os religiosos devem ser homens e mulheres capazes de despertar o mundo. A prioridade de Vida Religiosa é a profecia do Reino, e isso é inegociável. Os religiosos jamais podem renunciar à profecia. Os religiosos são homens e mulheres que iluminam o futuro... É preciso reforçar aquilo que é institucional, e não confundir o Instituto com a obra apostólica. O primeiro permanece, o segundo passa...”
A estas alturas, minhas perguntas são as seguintes: Que lugar pode ocupar a vida religiosa consagrada em uma sociedade que é fruto de um processo emancipador e em uma Igreja que ousa se pensar como povo de Deus, profético e peregrino no mundo, todo inteiro chamado à santidade? Quais são os principais desafios diante dos quais as pessoas consagradas e seus institutos não podem desviar o olhar ou esconder a cabeça na areia? Como viver com autenticidade e alegria o seguimento de Jesus Cristo em tempos tão críticos e tão pleno de encruzilhadas?
Uma bela canção da região missioneira diz que, à primeira vista, as encruzilhadas parecem caminhos que se afastam, mas, para quem olha mais atentamente e de um outro ponto de vista, são pontos de encontro para quem quer voltar. No caso da Vida Religiosa Consagrada, as encruzilhadas atuais – que são cruzes, por isso pesam, mas também levam à páscoa! – podem esconder possibilidades de retorno às intuições fundamentais. Os desafios, quando identificados, instigam a fé e a inteligência e descobrir as trilhas que se aninham ou desenham no seu próprio ventre. Atrevo-me a dar nome a alguns deles, àqueles que me parecem mais profundos e urgentes.

Itacir Brassiani msf

Carta dos Bispos do Maranhão

Carta dos Bispos Católicos do Maranhão ao Povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade
“Justiça e paz se abraçarão” (Sl 85,11)
Ainda estão vivas em nós a forte emoção e dor, provocadas pelos últimos acontecimentos no Estado do Maranhão – a morte violenta da Ana Clara, criança de seis anos que faleceu após ter seu corpo queimado nos ataques a ônibus; os cruéis assassinatos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas; o clima de terror e medo vivido na cidade de São Luís.
A nossa sociedade está se tornando cada vez mais violenta. É nosso parecer que essa violência é resultado de um modelo econômico-social que está sendo construído.
A agressão está presente na expulsão do homem do campo; na concentração das terras nas mãos de poucos; nos despejos em bairros pobres e periferias de nossas cidades; nos altos índices de trabalhadores que vivem em situações de exploração extrema, no trabalho escravo; no extermínio dos jovens; na auto-destruição pelas drogas; na prostituição e exploração sexual; no  desrespeito aos territórios de indígenas e quilombolas; no uso predatório da natureza.
Esta cultura da violência, aliada à morosidade da Justiça e à ausência de políticas públicas, resulta em cárceres cheios de jovens, em sua maioria negros e pobres. O nosso sistema prisional não reeduca estes jovens. Ao contrário, a penitenciária transformou-se em uma universidade do crime. Não nos devolve cidadãos recuperados, mas pessoas na sua maioria ainda mais frustradas que veem na vida do crime a única saída para o seu futuro.
Vivemos num Estado que erradicou a febre aftosa do gado, mas que não é capaz de eliminar doenças tão antigas como a hanseníase, a tuberculose e a leishmaniose.
É verdade que a riqueza no Maranhão aumentou. Está, porém, acumulada em mãos de poucos, crescendo a desigualdade social. Os índices de desenvolvimento humano permanecem entre os mais baixos do Brasil.
Não é este o Estado que Deus quer. Não é este o Estado que nós queremos! Como discípulos missionários de Jesus, estamos comprometidos, junto a todas as pessoas de boa vontade, na construção de uma sociedade fraterna e solidária, sem desigualdades, sem exclusão e sem violência, onde a “justiça e a paz se abraçarão” (Sl 85,11 ) .
A cultura do amor e paz, que tanto almejamos, é um dom de Deus, mas é também tarefa nossa. Nós, bispos do Maranhão, convocamos aos fieis católicos e a todas as pessoas que buscam um mundo melhor a realizarem um gesto concreto no próximo dia 2 de fevereiro, como expressão do nosso compromisso com a justiça e a paz. Neste dia – Festa da Apresentação do Senhor, Luz do mundo, e de Nossa Senhora das Candeias –, pedimos que se realize em todas as comunidades uma caminhada silenciosa à luz de velas, por ocasião da celebração. Às pessoas comprometidas com esta causa e às que não puderem participar da celebração sugerimos que acendam uma vela em frente à sua residência, como sinal do seu empenho em favor da paz.
Invocando a proteção de Nossa Senhora, Rainha da Paz, rogamos que o Espírito nos oriente no sentido de assumirmos nossa responsabilidade social e política para construirmos uma sociedade de irmãs e irmãos que convivam na igualdade, na fraternidade e na paz.
Centro de Formação de Mangabeiras-Pinheiro - MA, 15 de janeiro de 2014

Dom Armando Martin Gutierrez - Dom Carlo Ellena - Dom Élio Rama - Dom Enemésio Lazzaris - Dom Franco Cuter - Dom Gilberto Pastana de Oliveira - Dom José Belisário da Silva - Dom José Soares Filho - Dom José Valdeci Santos Mendes - Dom Sebastião Bandeira Coêlho - Dom Sebastião Lima Duarte - Dom Vilsom Basso - Dom Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Leonardo Boff

Hoje a revolução significa puxar os freios de emergência

Atribui-se a Karl Marx esta frase pertinente: “só se fazem as revoluções que se fazem”. Quer dizer, a revolução não configura um ato subjetivo e voluntarista. Quando assim ocorre, é logo vencida por imatura e falta de consistência.   A revolução acontece quando as condições da realidade estão objetivamente maduras e  simultaneamente existe nos grupos humanos a vontade subjetiva de querê-la. Então ela irrompe com chance, nem sempre garantida, de vencer e se consolidar.
Atualmente teríamos todas as condições objetivas para uma revolução. Revolução é aqui tomada no seu sentido clássico como a mudança dos fins gerais de uma sociedade que cria os meios adequados para alcançá-los, o que implica a mudança nas estruturas sociais, jurídicas, econômicas e espirituais desta sociedade.

Atualmente a degradação geral em quase todos os âmbitos, especialmente na infra-estrutura natural que sustenta a vida é tão profunda que, em si, se necessitaria de uma radical revolução. Do contrário, podemos chegar tarde demais e assistir a catástrofes ecológico-sociais de magnitude nunca antes vividas pela história humana.
Mas não existe ainda, nos “donos do poder” a consciência subjetiva desta urgência. Nem a querem. Preferem manter seu poderio mesmo com o risco de eles mesmos sucumbirem num eventual Armagedon. O Titanic está afundando mas sua obsessão por ganhos é tão grande que continuam comprando e vendendo joias como se nada estivesse acontecendo.
Geralmente as “revoluções” são feitas pelos poderosos que se antecipam aos oprimidos, dizendo, como com frequência se pratica no Brasil: “façamos nós a “revolução” antes que o povo a faça”. Naturalmente não se trata de uma revolução, mas de um golpe de classe, usando, como no caso da “revolução de 1964”, as forças armadas para esse fim. Esses vitoriosos tem seus acólitos que lhes cantam a loas, levantam-lhe monumentos, dão nomes às ruas, pontes e praças aos golpistas, como ainda persiste no Brasil.
A história dos vencidos raramente é feita. Sua memória é apagada. Mas às vezes esta memória vem à tona como uma força denunciatória perigosa. Foi mérito, por exemplo, do historiador mexicano Miguel León-Portilla de narrar o “Reverso da Conquista” da América Latina pelos ibéricos. Ai recolhe os testemunhos dramáticos e lancinantes das vítimas astecas, mais e incas. Em português foi traduzido por “A conquista da América Latina vista pelos Indios” (Vozes 1987).  Vejamos apenas um testemunho indígena por ocasião da tomada de Tlatelolco (próxima da capital Tenochtlitlan, atual cidade do México). É simplesmente de chorar.
“Nos caminhos jazem dardos quebrados; os cabelos estão espalhados; destelhadas as casas; incandecentes seus muros; vermes abundam  por ruas e praças e as paredes estão manchadas de miolos arrebentados; vermelhas estão as águas, como se alguém as tivesse tingido; temos mastigado grama salitrosa, pedaços de adobe, lagartixas, ratos e terra em pó e mais os vermes” (León-Portilla, p. 41).

Tais tragédias nos colocam a questão nunca respondida satisfatoriamente: tem sentido a história? Sentido para quem? Há todo tipo de interpretações,  das mais pessimistas que veem a história como a sequência de guerras, assassiantos e matanças, até as mais otimistas, como aquela dos iluministas que pensavam a história como  um crescimento na direção do progresso sem fim e de sociedades cada vez mais civilizadas.
As duas grandes guerras mundias, a de 1914 e a de 1939, e as que se seguiram após, vitimando cerca de 200 milhões pessoas, pulverizaram esse otimismo. Hoje ninguém nos pode dizer em que direção caminhamos: nem os sábios e santos Dalai Lama e o Papa Francisco. Mas os eventos se sucedem com toda a sua ambiguidade, alguns esperançadores, outros amedrontadores.
Filio-me à tradição judaico-cristã que afirma: a história só pode ser pensada partir de dois princípios: o da negação do negativo e o do cumprimento das  promessas. A negação do negativo quer dizer: o criminoso não vai triunfar sobre a vítima. O peso do negativo da história  não detém o sentido definitivo. Pelo contrário, o Criador “enxugará toda lágrima dos olhos, a morte não existirá mais nem haverá luto nem pranto, nem fadiga, porque tudo isso já passou” (Apocalipse 21,4).
O princípio do cumprimento das promessas sustenta: “Eis que renovo todas as coisas; haverá um novo céu e uma nova terra; Deus morará entre nós e todos os povos serão povos de Deus” (Apocalipse 21, 5; 1 e 3). É a esperança imorredoura da tradição bíblica que não desaparecia nem quando judeus eram levados às câmaras  nazistas de extermínio.
Com referência à situação atual reporto-me a uma frase de Walter Benjamin, citada por um seu estudioso franco-brasileiro, Michael Löwy: “Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se  apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência” (Walter Benjamin, Aviso de incêncio,  Boitempo 2005, p. 93-94). Nosso tempo é de puxar os freios antes que o trem se  arrebente no fim da linha.
Leonardo Boff
http://leonardoboff.wordpress.com/2014/01/20/hoje-a-revolucao-significa-puxar-os-freios-de-emergencia/

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Reflexões do Pe. Ceolin msf (1)

Eu?!... Transferido?!


Após o último Encontro dos Irmãos, de quando em quando eu matutava com meus botões: “Todos podem ser transferidos, menos eu!...” Sem demora, uma voz começou a advertir-me: “Afinal, quem é você?... Por acaso, você é diferente ou mais importante do que todos os outros?”
Certa noite recebi a visita dos coirmãos Itacir e Euclides. Vinham sondar meus desejos e aspirações. Respondi que estava ao dispor da Província. Em diálogo franco e fraterno, acertamos a minha transferência ao juniorado do Bairro Castelarin, em Santo Ângelo. Ao final, pilheirei: “Lá estarei mais próximo da família e do cemitério!...” Esquecia-me de que em Santo Ângelo iniciei a minha caminhada na Congregação e o ministério sacerdotal, na comunidade do Seminário, da qual levei saudades ao ser transferido para o Rio de Janeiro, um ano depois...
Agora, já instalado no Bairro Castelarim, estou iniciando a convivência com os oito junioristas. Constato que muitos coirmãos vivem experiência semelhante. Quase metade dos coirmãos “pôs o pé na estrada” com destino a outras paragens ou atividades. Nada de anormal, ao meu ver. Lembro que a voz da obediência foi, primeiramente, ouvida e acatada pelos coirmãos da anterior e da atual Coordenação Provincial.  Foram eles os primeiros a quem solicitamos boa quota de renúncia e disponibilidade. Obedientes à nossa vontade, submeteram-se ao resultado da eleição capitular. De tabela, registro que eles, bem como a comunidade e o povo santoangelense, foram duramente atingidos. Oxalá tal “perda” resulte em lucro não pequeno à Província toda.
Aliás, pensando bem, em um instituto religioso da natureza do nosso, a permanência em determinada comunidade ou paróquia é temporária, passageira. Nossa pertença propriamente dita é à Província. Somos transeuntes e romeiros. Hoje aqui; amanhã noutro lugar. Até nisso nos é dada a possibilidade de vivenciar o discipulado abraçado por todos nós. Nosso cada vez mais lembrado Pe. Berthier dizia-nos: “O que importa é estar lá onde Deus nos quer”.
Temos conhecimento – relativo, é claro! – do quanto têm sofrido alguns coirmãos com a transferência. Ninguém os condena por isso. Todos compreendemos que deixar amigos, projetos, o povo amado, dilacera o coração. Como lenitivo a tamanha amargura, que tal se pouséssemos um olhar profundo e demorado no peito chagado do Mestre Crucificado?!... Feliz aquele que aceita a oportunidade de dar um pouco do seu sangue por Ele e pelo Reino! É salutar colocar-se com Jesus na patena, fazendo de si oferta viva, ao celebrar a Eucaristia!
Estamos no tempo quaresmal. O Mestre amado encaminha-se ao Calvário. Assumamos a “cruz da transferência” e vamos com Ele até o fim, aconteça o que acontecer! No período de aceitação e de adaptação à nova realidade e às tarefas assumidas, somos como aqueles que, na partida e nessa fase da vida, semeiam entre lágrimas. Logo mais colheremos frutos entre gritos e cânticos de alegria, pois quem serve o povo com amor e por amor, recebe amor centuplicado. Jamais ficará na sepultura do esquecimento. Viverá para sempre no coração do povo.
Encaremos toda transferência como oportunidade de mais vida e ressurreição. São os votos pascais que faço aos coirmãos que, na alegria ou na tristeza, assumiram novo campo de trabalho na Província em prol do Reino.
Pe. Rodolpho Ceolin msf


(Artigo publicado em O Bertheriano, Ano XVII, n° 61, Março/1999, p. 8)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Comunidades Eclesiais de Base

Intereclesial emblemático

O 13º Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base tem, pelo menos, três elementos emblemáticos, como se fossem um divisor de águas entre os anteriores e o futuro das comunidades eclesiais de base.
Primeiro, ele foi realizado no Juazeiro do Norte, Ceará, nas terras do Pe. Cícero. Esse padre, influenciado por seu predecessor nas missões do sertão nordestino, Pe. Ibiapina, fez de sua vida uma radical opção pelos pobres. São da mesma linhagem os “beatos e beatas”, como Zé Lourenço, Maria Araújo e Antônio Conselheiro, pessoas que sentiram chamadas a dedicar suas vidas às populações esquecidas daquele tempo. Influenciados por Ibiapina, esses homens e mulheres fundaram suas comunidades inspirados nas primeiras comunidades citadas nos Atos dos Apóstolos.
É bom lembrar que há 150 anos, em tempos de seca, o sertão era praticamente um deserto. Foi aos famintos, sedentos, vítimas do cólera pela água contaminada, aos órfãos, que esses homens e mulheres dedicaram a plenitude de suas vidas. Por isso, para muitos, eles são os pioneiros no Brasil das atuais comunidades eclesiais de base e também da Teologia da Libertação, já que o ponto de partida eram os pobres, não como objetos de caridade, mas como sujeitos de sua história já ao final do século XIX.
Segundo, pela primeira vez um papa envia uma carta de apoio às comunidades eclesiais de base. O contentamento dos presentes era visível. Afinal, durante as últimas décadas, em grande parte do Brasil e do continente, essas comunidades foram abandonadas, quando não perseguidas e caluniadas, sobretudo por aqueles que desejam uma Igreja distante do povo e fechada em si mesma. Por isso, o povo também enviou uma carta de gratidão ao Papa.
Terceiro elemento é que não havia euforia e nem triunfalismo no Juazeiro do Norte, mesmo que tenha sido um evento grandioso, com belíssima liturgia e momentos de entusiasmo. Todos estão conscientes que, se a Igreja quer ser mesmo uma “rede de comunidades”, como diz o documento 104 da CNBB, então cabe um desafio pastoral imenso de formação das comunidades eclesiais de base, de retomada de sua organização, de apoio na formação em todos os níveis, da criação de espaços que lhes sejam próprios, liberação de pessoas, recursos e tudo mais que se faz necessário no cotidiano pastoral.
O novo é que elas sejam também missionárias, formando novas comunidades e novas lideranças. Além do mais, agora estamos em pleno século XXI, um contexto de mudança de época, com as novas tecnologias, as redes sociais, a pluralidade religiosa, pluralidade de valores, as mudanças radicais no clima do planeta, assim por diante. Esse é o desafio: como continuar tendo a inspiração originárias das primeiras comunidades num mundo em imensurável transformação?
Como será o futuro só a história dirá. Porém, quem tiver um pouco de boa vontade, pode ver aí claros sinais dos tempos.

Roberto Malvezzi (Gogó)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Segundo Domingo do Tempo Comum (2014 - Ano A)

Jesus elimina o pecado que aprisiona a nossa liberdade
A liturgia do batismo de Jesus, celebrada no último domingo, serviu que faz a passagem do ciclo litúrgico natalino para ciclo do tempo comum. Neste segundo domingo do tempo comum, a Igreja nos propõe uma espécie de apresentação de Jesus aos enviados do judaísmo. O pequeno trecho do Evangelho que nos é proposto hoje é rico de imagens e nos mostra um João Batista que atinge sua maturidade profética ao dar testemunho de Jesus e apresentá-lo como Cordeiro de Deus e como aquele que, doando-nos o Espírito, elimina o pecado do mundo e arca com suas consequências.
No dia anterior, ao ser interrogado sobre sua própria identidade, João respondera claramente que não era Elias, nem o Profeta, nem o Messias, mas alguém enviado a preparar o caminho para a vinda do Messias, diante do qual reconhecia sua própria pequenez e transitoriedade (cf. Jo 1,19-28). No dia seguinte, vendo Jesus vindo ao seu encontro, declara: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo.” E completa: “Mesmo tendo vindo depois de mim, ele passou à minha frente, me superou... Quando ele desceu às águas dos penitentes, tudo foi ficando claro para mim...”
Esta imagem de Jesus Cristo como Cordeiro de Deus adquiriu um lugar importante na tradição cristã e vem recordada até hoje em cada celebração eucarística. No livro do Apocalipse, esta a metáfora do cordeiro é aplicada a Jesus e aparece frequentemente: Jesus é apresentado como o cordeiro ferido mas vitoriosos e glorioso, sentado no trono, mas os cristãos também são chamados de cordeiros (cf. Jo 21,15).  Nesta imagem vemos quase que espontaneamente a mansidão e a docilidade, ou então a idéia de sacrifício ou de ‘bode expiatório’. Seria apenas isso?
É importante ressaltar que, apresentando Jesus como Cordeiro de Deus, João quer identificá-lo como o Cordeiro pascal da tradição judaica, o sinal de comunhão do povo na memória, no sonho e na luta pela liberdade. O cordeiro pascal celebrava a história e a utopia libertária do povo de Israel, mas, com o passar do tempo, acabou sendo ligada quase exclusivamente a uma etnia, uma nação e uma cultura. Ultimamente, com o processo de privatização da experiência religiosa, a imagem do cordeiro terminou sendo refém de uma espiritualidade intimista e desencarnada.
João apresenta Jesus como o Cordeiro que tira o pecado do mundo. Mas escutemos atentamente: trata-se de tirar, não de expiar; de pecado no singular, e não de pecados diversos; e de algo que existe antes de Jesus, que não se define apenas pela relação com ele. Este pecado se condensa na recusa do projeto de Deus e na submissão aos sistemas que se fecham em torno dos interesses privados e das violências e mentiras que sua manutenção exige. Somente o dom Espírito pode fazer o ser humano uma realidade nova, renascida e capaz de amar e dar a vida, como o próprio Jesus.
Enquanto Servo e Cordeiro de Deus, Jesus leva a sério esta missão sem fronteiras. E começa pelas ‘ovelhas perdidas’ ou marginalizadas do povo de Israel. Depois, abre as portas do Reino de Deus a todos as pessoas, classes, povos, etnias e crenças. Nele, com ele e por ele, nenhum povo ou indivíduo é considerado inapto, incapaz ou indigno da vida abundante do Reino. Todas as pessoas são chamadas à liberdade e à vida, a todas é prometido e concedido o Espírito de liberdade e de serviço. É isso que Paulo descata nas primeiras linhas da sua carta aos Coríntios.
O apóstolo diz que, em Jesus Cristo, todos os seres humanos, inclusive aqueles que são chamados de pagãos, são santificados e chamados a serem santos. Acabaram as hierarquias que privilegiam uns e descartam muitos! Então, acolhendo o anúncio convicto de Paulo e a palavra-de-ordem de João Batista, repetida em cada Eucaristia no convite à comunhão, assumamos alegremente nossa dignidade e engajemo-nos sem reservas na missão de tirar o pecado do mundo, a fim de que o mundo seja cada vez mais a casa comum dos filhos e filhas de Deus.
Jesus de Nazaré, Cordeiro pascal, memória e esperança de uma liberdade radical: confirma-nos como discípulos/as na escola do serviço despojado e fiel, lúcido e eficaz à plena liberdade dos nossos irmãos e irmãs. Faz do teu Espirito libertário e renovador a lei maior do nosso sentir, pensar e agir. Abre cada dia de novo nossos ouvidos à Palavra que pronuncias mediante os gemidos da criação. E ajuda tua Igreja a compreender que não queres sacrifícios, doutrinas e sacramentos, mas amor que serve, palavra que anuncia, celebração que resgata a dignidade e a grandeza dos pobres. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Isaías 49,3-6 * Salmo 39 (40) * Carta aos Coríntios 1,1-3 * João 1,29-34)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

CARTA FINAL DO 13º INTERECLESIAL

CARTA FINAL DO 13º INTERECLESIAL DE COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE DO BRASIL AO POVO DE DEUS

Irmãs e irmãos da caminhada,
“Maria pôs-se a caminho ... entrou na casa e saudou Isabel ... bem aventurada tu que acreditaste ... as crianças estremeceram de alegria no ventre ...” (cf. Lc 1,39-45)
Em atitude romeira, o povo das Comunidades Eclesiais de Base de todos os cantos do Brasil colocou-se a caminho respondendo ao chamado da grande fogueira acesa pela Diocese de Crato-CE, convocando para o 13º Intereclesial. A luz da fogueira alumiou tão alto que fez acorrer representantes de Igrejas irmãs evangélicas e de outras religiões. Até foi avistada em toda a América Latina e Caribe, Europa, África e Ásia.
O Cariri, “coração alegre e forte do Nordeste”, se tornou a “casa” onde se encontraram a fé profunda do povo romeiro, nascida do testemunho do padre Ibiapina e do padre Cicero, da beata Maria Madalena do Espírito Santo Araújo e do beato Zé Lourenço, com a fé encarnada do povo das CEBs nascida do grito profético por justiça e da utopia do Reino.
Houve um encontro entre a Religiosidade popular e a Espiritualidade libertadora das CEBs. As duas reafirmaram seu seguimento de Jesus de Nazaré, vivido na fé e no compromisso com a justiça a serviço da vida. Bem aventurado o povo que acreditou!
A moda da viola e da sanfona cantou este acreditar. As palavras de dom Fernando Panico, bispo de Crato, na celebração de abertura confirmaram este acreditar, proclamando: as CEBs são o jeito da Igreja ser. As CEBs são o jeito “normal” da Igreja ser. Jeito normal de o povo de Deus responder no hoje à proposta de Jesus: ser comunidade a serviço da vida.
Ao ouvir a proclamação desta boa noticia, o ventre do povo que veio em romaria para Juazeiro do Norte ficou de novo grávido deste sonho, desta utopia. A esperança foi fortalecida. A perseverança e a resistência na luta foram confirmadas. O compromisso com a justiça a serviço do bem-viver foi assumido.
E a alegria estourou como fogos a vista e do meio da alegria escutamos a memória da voz querida de dom Helder Câmara, a se fazer ouvir: Não deixem a profecia cair! Não deixem a profecia cair!
A profecia não caiu. Ecoou nas palavras do índio Anastácio: “Roubaram nossos frutos, arrancaram nossas folhas, cortaram nossos galhos, queimaram nossos troncos, mas não deixamos arrancar nossas raízes.” Raízes indígenas e quilombolas que afundam na memória dos ancestrais, no sonho de viver em terras demarcadas, livres para dançar, celebrar e festejar a terra que é mãe.
Emergiu a memória do padre Ibiapina, que já incentivava a construção de cisternas de pedra e cal e o plantio de árvores frutíferas, para conviver com a realidade do semiárido. Reanimava assim a esperança e a dignidade do povo sertanejo. O protagonismo da beata Maria Araújo canalizou os desejos mais profundos de vida e vida em abundância, o que incomodou os grandes e a hierarquia eclesiástica. O padre Cícero e o beato Zé Lourenço continuaram acolhendo os excluídos no mesmo espirito de Ibiapina. Organizaram a comunidade do Caldeirão movida pela fé, trabalho, fartura e liberdade. Esta forma de convivência com o semiárido tem continuidade nas CEBs, nas pastorais e entidades comprometidas com os pobres.
A profecia ecoou na análise de conjuntura, que levou a constatar que o Brasil ainda precisa reconhecer que no campo e na cidade, não basta realizar grandes projetos. O grande capital prioriza o agro e hidronegócio e as mineradoras, continuando a expulsar do campo para concentrar as pessoas nas cidades, tornando-as objeto de manipulação e exploração, de concepções dominadoras e produtoras de profundas injustiças. O povo continua sendo despojado de sua dignidade: seus filhos e filhas definham no mercado das drogas e no tráfico de pessoas; é destituído de seus direitos à saúde, educação, moradia, lazer; a juventude é exterminada, obscurecendo a possibilidade de se projetar no futuro por falta de oportunidades; ainda existem preconceitos e outras violências marcam as relações de etnia, cor, idade, gênero, religião. Percebemos que transformar os cidadãos e cidadãs em consumidores é ameaça para o “Bem Viver”.
Ranchos (miniplenários) e chapéus (grupos) tornaram-se espaços de partilha das experiências de busca para compreender a sociedade que é o chão onde as CEBs labutam e vivem.
E nos passos de padre Cícero, as CEBs se tornaram romeiras nas veredas do Cariri, conhecendo realidades e comunidades; vivenciando a firmeza dos mártires e profetas; experimentando a partilha e a festa do jeito que o povo nordestino sabe fazer.
A sabedoria dos patriarcas e das matriarcas nos acompanhou resgatando a memória e orando: “Só Deus é grande”, “Amai-vos uns aos outros”.
A grandeza de Deus se revela nos romeiros, povo sofrido que ao assumir a organização da romaria, na prática da solidariedade, na reza e no canto dos benditos se torna protagonista e ressignifica o espaço da vida diária.
O amor é manifestado na profecia da mulher que no acariciar, no amassar o pão, na liderança e revolução carrega em seu ventre nossa libertação; na profecia que por amor à justiça se torna ecumênica; em Jesus de Nazaré que por primeiro viveu a justiça e a profecia a serviço da vida e nos desafia a sermos CEBs Romeiras do Reino no campo e na cidade.
A vivência comunitária no terreiro do semiárido renovou nosso acreditar. Exultamos de alegria como as crianças que saltaram de alegria no ventre das mães vislumbrando o novo. O Reino se fez presente no meio de nós. Seus sinais estão presentes na irmandade: oramos e refletimos, reavivamos à nossa frente rostos de mártires e profetas da caminhada, refletimos e debatemos, formamos a mesma fila para comer juntos a gostosa comida do Cariri, à mesma pia lavamos nossos pratos. Na circularidade do serviço, do canto, do testemunho reafirmamos o compromisso de ser CEBs: Romeiras do Reino, profetas da justiça que lutam pela vida, a serviço do bem-viver, sementes do Reino e da sua Justiça, comunidades profetas de esperança e da alegria do Evangelho.
Romeiros e romeiras sempre voltam para seu chão, repletos de fé e esperança. Nós também voltamos como romeiros e romeiras grávidos da utopia do Reino que é das CEBs. Voltamos para nosso chão, com uma mensagem do papa Francisco, bispo de Roma e Primaz na Unidade. Dele recebemos reconhecimento, encorajamento, convite a continuarmos com pisada firme a caminhada de sermos Igreja Romeira da justiça e profecia a serviço da vida.
Juntamo-nos à voz de Maria que louvou ao Deus da vida que realiza suas maravilhas nos humilhados. Unamos nossas vozes á sua para com ela derrubar os poderosos de seus tronos e elevar os humildes, despedir os ricos de mãos vazias e encher de fartura a mesa dos empobrecidos.

Irmãs e irmãos, vos abraçamos com amorosidade. Amém, Axê, Auerê, Aleluia!