domingo, 2 de fevereiro de 2014

Reflexões do Pe. Ceolin msf (3)

Pedro, tu me amas?

Declarei o ano 1986 Ano da Espiritualidade, após demoradas reflexões e análises. Perguntava-me: neste momento histórico, qual é o aspecto mais importante, qual é a grande necessidade pessoal e comunitária sobre a qual devemos centrar as nossas atenções e buscar um cultivo peculiar? Escolhido o tema do ano, selecionamos subsídios bibliográficos. Por fim, nos decidimos pelo livro “Os caminhos da espiritualidade na América Latina”. Concomitantemente, a entidade máxima dos religiosos do Brasil – a CRB – fazia de 1986 o Ano do Profetismo. Muito se pensou e se falou no país inteiro sobre o tema “Os profetas bíblicos interpelam a Vida Religiosa”, condensado em opúsculo pela Comissão Teológica da CRB nacional.
Anteriormente a tudo isto, vinha percebendo que meu discurso e principalmente o de muitos outros já não era mais o mesmo. Em todo lado se ouviam hinos e cânticos cuja letra e melodia estufavam o peito de alguns e cerravam a garganta de outros. Viam-se pessoas cada vez mais envolvidas com sindicatos e com os Sem-Terra, atuando contra as barragens, clamando ostensivamente por eleições diretas e por reforma agrária, apoiando acampamentos, pichando muros e calçadas... Não tardaram os confrontos, as acusações e incriminações: “Você é pelego!” E o outro devolvia o troco: “E você é uma criançola, um agitador, um esvaziador de igrejas...” Esta ladainha de epítetos foi crescendo, e hoje é maior que a ladainha de todos os santos...
É inegável a necessidade de profetismo na Igreja. A Vida Religiosa é sem dúvida de natureza carismática e profética. Isso nem se discute. A questão que isso suscitava em mim mesmo era: Tudo o que se vem fazendo e dizendo em nome do profetismo é profetismo mesmo? Como se deve exercer acertadamente o profetismo hoje? Posso arvorar-me sem mais nem menos em profeta? O profetismo em voga é segundo os moldes dos profetas bíblicos, mormente do profeta do Pai, Jesus de Nazaré? O que move atualmente as pessoas a denunciar, a enfrentar os poderosos? Que espírito os compele? De que espírito estão possuídos? Posso eu calar-me diante da realidade anti-humana e anti-cristã que me cerca? Não estou sendo covarde e traidor da missão a mim confiada por Cristo? Pode ser tido como profeta quem pouco reza e medita?
Enquanto em minha mente bailava todo este questionamento resolvi declarar 1986 como Ano da Espiritualidade. Espiritualidade não como fuga e alienação, nem como retorno ao pietismo e às sacristias. Espiritualidade não como ensimesmação nem afrouxamento da evangelização libertadora. Mas uma espiritualidade cristã e bíblica, missionária, capaz de provocar conversão profunda, de tornar-nos religiosos autênticos, profetas de verdade. Profetas cuja vida seja permanente anúncio dos valores do Reino e denúncia verbal e não-verbal convincente. Profetas que tratam primeiro de arrancar a trave de seu próprio olho, em processo de cultivo assumido perseverantemente.
À medida que estudava, refletia e meditava sobre o opúsculo da CRB “Os profetas bíblicos interpelam a Vida Religiosa”, fui obtendo respostas ao farto questionamento que me fazia e me faziam outros. Já na introdução, dei de cara com a definição de profeta bíblico (é este tipo que eu estava interessado em definir e entender): crítico religioso da realidade. Três palavras apenas, mas que constituem um todo, que trataremos de desdobrar a seguir.
O profeta é especialmente um crítico
É alguém que anuncia e denuncia. É uma pessoa cheia de paixão (combatividade). É alguém que enfrenta os poderosos e defende os pequenos. É alguém que é perseguido. Portanto, quem não contesta, não questiona, não admoesta, é profeta? Quem evita criticar e desmascarar as causas e os causantes do pecado, das idolatrias hodiernas, das injustiças; os dominadores e exploradores que usam o poder, o ter e o saber em proveito próprio ou de uma minoria; quem não os enfrenta, é fiel à sua missão profética? Basta denunciar para estar sendo profeta?
O profeta é alguém que propõe mudanças de comportamentos, a conversão do povo. Anuncia um mundo novo, homens novos, uma nova sociedade. Propõe como devem ser as atitudes novas. Diz como mudar o coração e o espírito. Orienta como devem ser usados o poder, o ter e o saber, segundo os desígnios do criador e de Cristo. Então, isso é ser profeta? Basta isso? A muita gente parece que basta denunciar para se considerarem enviados de Javé e estarem falando as palavras de Jesus e de Deus, para se arvorarem em porta-vozes do Senhor... Do lado de quem mesmo estou eu? Dos pequenos ou dos poderosos? Já assumi e encarnei as opções da Igreja e da Vida Religiosa da América Latina? Ou minha voz se soma ao coro infernal dos matadores de profetas?
Mais de uma vez quase chorei quando na Província se erguiam barreiras e eram feitas críticas ligeiras aos jovens que solicitavam maior inserção nas periferias, desejosos de viver o novo social e geográfico da Vida Religiosa. Buscava-se abafar a voz desse profetismo silencioso mas questionante. Apontavam-se incoerências dos inseridos, exigindo deles suprema perfeição, enquanto apenas engatinhavam na caminhada renovadora da Vida Religiosa. Que espírito estava nos habitando e falando por nossa boca? Profetas são necessários dentro da própria Igreja, que a denunciam dos seus pecados. Profetas são indispensáveis dentro da Congregação, da Província, das Comunidades religiosas. Ai de nós se não os tivermos! E ai daqueles que os perseguem, que os matam!
O profeta é um crítico religioso
A segunda parte do referido opúsculo da CRB veio clarear e responder alguns dos questionamentos anteriormente explicitados. O profeta é um homem de Deus. O profeta é uma pessoa possuída e compelida pelo Espírito.
Profetas há e houve não só entre os israelitas e na Igreja católica. Determinadas pessoas carismáticas talvez nem tenham religiosidade alguma. Não é porém a estes que estamos interessados em definir. O profetismo que desejamos entender e viver melhor é diferente, é específico: profetas bíblicos, profetas do Reino, religiosos profetas é o que nos cabe ser. Esta é a tipologia de profeta que condiz e se adequa à nossa realidade de cristãos consagrados.
Na primeira parte ficou dito que o profeta é um crítico. Críticos da sociedade há muitos: economistas, políticos, filósofos, sociólogos e outros. O crítico religioso usa a ótica de Deus, é porta-voz de Deus, “fala o que ouve”, pronuncia “oráculos do Senhor”, é um confidente de Deus. Para melhor inteirar-se disso, basta ler na bíblia as passagens “vocação do profeta”.
Na raiz da missão profética há uma profunda experiência de Deus”, afirma o documento da CRB aqui já mais vezes mencionado. Diante disso, instituir na Província um ano acentuadamente dedicado à espiritualidade, em meio aos candentes debates acerca do profetismo, não teria sido providencial? Afinal, o que nos toca fazer para ser “homens de Deus, pessoas possuídas e compelidas pelo Espírito”? Denúncia acirrada sem uma sólida espiritualidade, sem uma experiência de Deus, ao menos em andamento, não seria uma ousadia, uma pretensão? Que é mesmo ser profeta do Reino? Todo mundo que vive falando alto por aí é mesmo profeta?
É sintomático o episódio narrado por Lucas (4,14-22), quando Jesus comparece à sinagoga de Nazaré e declara: “O Espírito do Senhor está sobre mim. Ele me consagrou e me enviou para anunciar a boa nova aos pobres, sarar os contritos de coração, anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, pôr em liberdade os cativos e publicar o Ano da Graça do Senhor.”
Em João 21,15-17 encontramos outro episódio que nos faz pensar: “Pedro, tu me amas mais do que estes?... Sim, Mestre, tu sabes que eu te amo!... Apascenta os meus cordeiros... Apascenta minhas ovelhas...”  Isto soa aos meus ouvidos mais ou menos assim: “O amor apaixonado pelo Cristo, pelo Reino, pelo seu Projeto, é a base, o ponto de partida, a exigência e a necessidade primordiais para abraçar e exercer a missão profética e pastoral.”
Concluindo, aproveito-me do slogan do próximo Encontro Latino-Americano dos Missionários da Sagrada Família (“Eu formo? Tu formas? Nós formamos? Somos Província formadora?”): “Eu sou profeta? Tu és profeta? Nossa comunidade é profética? Nossa Província é profética? Como vir a ser? Você já tem resposta? Então, não espere mais, e que o Senhor lhe dê forças e combatividade para suscitar MSF novos, comunidades renovadas, uma Província de Deus e arrojada na construção da nova sociedade.
Pe. Rodolpho Ceolin msf

(Reflexão publicada em O Bertheriano, Ano VIII, N° 24, setembro/1986, p. 1-2)

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