quarta-feira, 30 de abril de 2014

Vivências da Semana-Santa (8)

Vigília e Páscoa: onde estão os sinais da ressurreição?

Nas partilhas anteriores, já enumerei um rosário de surpresas que tive na vivência da semana-santa na Vila do Morro. E aqui está mais uma, a última: a comunidade católica costuma iniciar a celebração da vigília, com a bênção do fogo, em frente ao cemitério da vila! Jamais havia pensado nessa possibilidade... E faz sentido!
É no cemitério que deixamos os restos físicos das pessoas que amamos, e também daquelas que ignoramos. É nele que repousará aquilo que vai sobrar deste corpo no qual somos reconhecidos, que é mediação e expressão de tantas coisas belas e no qual frequentemente experimentamos dores. O cemitério é símbolo da longa e silenciosa espera da ressurreição da carne, elemento constitutivo da nossa fé.
O início da vigília pascal estava previsto para as 19:30h. Cheguei às portas do cemitério às 19:00h, e já encontrei um bom número de fiéis reunidos em torno de um belo monte de lenha, preparada por um generoso fiel, cada qual preparado com sua vela e um frasco com água. Aproveitamos o tempo de espera e, na falta de alguém que entoasse um “bendito” próprio para as vigílias, começamos a entoar cânticos populares, convocando todas as criaturas a esta vigília celebrada sob o céu estrelado, mas ainda sem a vita de luca cheia. “Luar do Sertão”, “Calix Bento”, “Oh Minas Gerais”, “Sim, eu quero...” foram canções que vieram expontaneamente à nossa memória e que foram cantadas com entusiasmo por aquela gente simples, pura e fiel.
Depois de decorar o círio pascal, com todos os pormenores simbólicos que isso comporta, e depois de abençoar o fogo, partimos em direção à igreja, sempre cantando, pontilhando a escuridão com um sem número de pequenas luzes que faziam sorrir as estrelas. Paramos na porta do templo e perguntamos, cantando: “Senhor, quem entrará no santuário prá te louvar?” E nós mesmos cantamos a resposta que que nos foi revelada: “Quem tem as mãos limpas e o coração puro, quem não é vaidoso e sabe amar!” E, então, declaramos, em uníssono: “Senhor, eu quero entrar!...” E adentramos no templo dando graças a Deus pela luz de Cristo materializada no círio que nos precedia.
Depois da bela memória e profecia do “exultet”, ainda na penumbra, abrimos a mente e o coração para escutar e deixar ressoar a Palavra de Deus. Infelizmente tivemos que decidir pela simplificação deste tempo de escuta, focalizando apenas três perícopes do Antigo Testamento, mais a carta aos Romanos e o Evangelho. O calor intenso e a presumida impaciência do povo nos levou a tomar esta decisão. Mas poderia ter sido diferente... E penso que seria melhor, mais expressivo e frutuoso... Solenidades como esta são também formadoras de consciência e de hábitos...
A invocação das testemunhas do ressuscitado, mediante a ladainha de todos os santos, abriu o rito de renovação do batismo. Pois o mistério da páscoa de Jesus se realiza de um modo todo especial neste sacramento que sela a nossa lealdade com o senhor-servo: nas águas do batismo morremos com Jesus para o mundo do “cada um para si” e ressuscitamos com ele para o mundo do “dom generoso e solidário de si”. É por isso que, sem deixar de ser uma festa eucarística – a Aliança se torna definitivamente nova! – a páscoa é também uma festa rdicalmente batismal.

Itacir Brassiani msf

terça-feira, 29 de abril de 2014

Vivências da Semana-Santa (7)

Pão, cruz, luz: o que é mais significativo?

Sabemos todos, e mesmo pessoas religiosamente indiferentes o intuem, do profundo significado humano e espiritual do tríduo pascal, dos eventos que celebramos no período que vai do entardecer da quinta-feira ao anoitecer do domingo de páscoa: a última ceia de Jesus e o gesto simbólico do lava-pés; a traição de que foi vítima, a condenação fajuta que sofreu, as torturas que lhe foram impostas e sua execução na cruz; a tenebrosa vigília de pouca espera e muita desilusão dos discípulos; a notícia da sua ressurreição e a manifestação aos frustrados discípulos que vltavam a Emaús. É uma passagem difícil e lenta do pão à cruz, e, desta, à luz.
Como você sabe pelos relatos anteriores, celebrei este memorável tríduo com a comunidade católica da Vila do Morro, em São Francisco (MG). Um grupo improvisado de pessoas de diferentes categorias deu um tom realista ao gesto do lava-pés, evitando em parte o risco da teatralização. Não deixa de ser paradoxal o movimento de um Deus que se inclina diante da humanidade, inclusive da humanidade resistente e pecadora, para lavar-lhe os pés, expressando com isso sua hospitalidade e acolhida, sua desconsideração para com as hierarquias sociais e seu serviço despojado e libertador. A aliança – nova e definitiva! – celebrada na partilha do pão e do vinho incluiu também as crianças, que receberam um delicioso biscoito.
O encontro que tive com um grupo de casais depois da missa foi, para mim, uma agradável surpresa. Perguntava-me se alguém estaria disposto a permanecer na igreja depois de uma longa celebração, e depois das 21:00h. E lá estavam aproximadamente cinquenta casais, abertos, sequiosos, desejosos de aprofundar o sentido e as consequências da aliança matrimonial à luz da aliança pascal de Jesus. Segundo o testemunho expontâneo de algumas pessoas, foram 40 minutos que passaram como se fossem apenas 10... Meus receios se transformaram em alegria e satisfação...
Na sexta-feira de manhã, como já partilhei anteriormente, celebramos a via-sacra da Campanha da Fraternidade, uma estação na casa de cada doente. E, no calor das 15:00h, os moradores da vila foram convocados à celebração da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Para mim, mais uma surpresa... Um refrão repetido nas escolas de teologia e encontros pastorais é que o povo brasileiro celebra mais a paixão que a ressurreição de Jesus, se indentifica mais com a cruz que com a luz. Isso não se confirmou na Vila do Morro! De todas as celebrações da semana-santa, a adoração da cruz foi a que menos atraiu e reuniu fiéis. Teria sido por causa do horário e do calor? Ou por causa da grande encenação da paixão de Jesus que seria oferecida logo no final da tarde? Mas poderia ser também – por quê não?! – a intuição do sentido da ressurreição...
O espetáculo teatral da paixão reunião uma multidão, talvez a maioria do povo da Vila. A apresentação se estendeu por mais de duas horas e fez da praça ao redor da igreja um imenso palco. Os atores e atrizes improvisados, muitos deles com notável competência artística, eram majoritariamente jovens. O grupo de mais de trinta atores investiu muito tempo nos ensaios e uma boa soma de dinheiro nos figurinos. O que me chamou a atenção é que os mesos jovens que resistem à participação nas celebrações engajam-se generosamente na preparação e apresentação de uma peça teatral. Não estaria aqui um frutuoso caminho para uma pastoral da juventude? A compreensão e assimilação do texto pode levar ao aprofundamento da fé, e o teatro pode oferecer aos jovens a possibilidade de exorcizar e vencer a passividade à qual em geral as celebrações os condenam.
Acho que isso ficou confirmado no sábado... Na parte da manhã, aproximadamente cinquenta crianças, a maioria catequizandos, compareceu ao encontro especial agendado para eles. Na parte da tarde, apenas vinte jovens, nenhum dos que participaram da encenação, compareceram, um pouco contra a vontade, no encontro que oferecemos à juventude.
Itacir Brassiani msf

domingo, 27 de abril de 2014

Vivências da Semana-Santa (6)

Missa da unidade: em torno de quem?
Na quinta-feira levantei cedo, como de costume. Pouco depois das 6:00h da manhã fui para a beira da estrada que liga São Francisco a Montes Claros. Esperei os colegas Genivaldo e Germano, que vinham de São Francisco, e segui com eles a Januária. Lá aconteceria a missa da unidade diocesana, a celebração dos santos óleos e a renovação dos compromissos presbiterais. Antes que o relógio assinalasse 8:00h, estávamos, com outros presbíteros, tomando o café da manhã na casa de Dom José Moreira. Lá também, mais tarde, partilharíamos um fraterno e saboroso almoço.
Não obstante ser um dia normal de trabalho, o povo de Januária praticamente lotou a catedral para a missa, que começou às 8:30h. A maioria dos padres – a exceção foram dois colegas MSF e um diocesano – estavam presentes. Isso é muito significativo se levarmos em consideração que alguns padres, para se deslocar de suas paróquias até Januária, devem viajar até cinco horas na ida e cinco horas na volta, percorrendo péssimas estradas. No nosso caso, o tempo gasto não chegava a duas horas para cada trecho. Certamente, este é um esforço que supõe motivação e convicção.
Na missa matutina da quinta-feira santa se cruzam diferentes motivos e focos. O primeiro é a bênção anual dos três óleos (dos catecúmenos, do crisma e dos enfermos), utilizados nas celebrações sacramentais de cada Igreja particular. O segundo, por causa de uma antiga tradição que identifica a missão do presbítero quase que exclusivamente com a eucaristia, é celebrar a “instituição” do “sacerdócio cristão”. E o terceiro, é a celebração da unidade do presbitério, em torno do bispo diocesano.
É claro que dois destes motivos são discutíveis. Primeiro, porque não é correto identificar o ministério presbiteral exclusivamente com os sacrementos ou com a Eucaristia, de modo que não podemos deduzir automaticamente da última ceia de Jesus a instituição da ordem presbiteral. Além de “sacerdote”, o padre é também chamado a ser pastor e profeta! Ademais, é perigoso imaginar que a unidade da Igreja diocesana seja garantida pelo bispo... Qual é o lugar da Palavra de Deus, da Eucaristia e, mais ainda, do Espírito Santo nesta unidade?
Estes questionamentos não impediram que celebrássemos com fé e gratidão este momento, e que renovássemos nosso sincero propósito de servir o povo de Deus como presbíteros, a exemplo de Jesus, o bom pastor. E o fizemos invocando Nossa Senhora das Dores, padroeira da diocese de Januária. “Gerando o amor num mundo de tantos amores, de ilusões sofrimentos e temores, tu és, ó Mãe, excelsa Senhora das Dores. Dá-nos a bênção, Nossa Senhora das Dores! E, fervorosos, cheguem a ti nossos louvores!”
Graça especial para mim foi encontrar dois velhos conhecidos. O primeiro é o padre João Juvêncio Alves Pereira, com quem estudei o primeiro ano de filosofia (1980), fiz o noviciado (1983) e convivi durante o primeiro ano dos estudos do mestrado (1990). Ele passou por momentos muito complicados e hoje é padre diocesano. O outro é o simpático padre Manoel, diocesano que trabalha na paróquia de Maria da Cruz, às margens do Rio São Francisco. Há mais de vinte anos ele está praticamente cego, mas isso não impede que continue animando a pastoral da sua paróquia.
Itacir Brassiani msf

sábado, 26 de abril de 2014

Vivências da Semana-Santa (5)

Via-Sacra: quantas são as estações?

Na Semana-Santa vivida na Vila do Morro aprendi uma prática que considero muito significativa: rezar e meditar a Via-Sacra de Jesus Cristo, na Sexta-feira Santa de manhã, nas casas de pessoas idosas e doentes. Estas, contatadas com antecedência, prepararam pequenos e simples “altares” diante de suas pobres casas, com “flores tristes e baldias, como a alegria que não tem onde encostar”.

Começamos bem cedo, às 7:30 da manhã, pois o sol prometia ser implacável. Começamos com um grupo de umas trinta pessoas, inclusives algumas bem idosas. Com o passar das horas e estações, alguns deixavam a caminhada e outros nela se incorporavam. Tudo organizado por eles mesmos. Eu só entrei, na última hora, como dirigente, pois “o padre sabe”...

Sou da geração que acredita firmemente que a via-sacra de Jesus se encarna e continua na sagrada via dos homens e mulheres de hoje. Mas percebi de forma mais viva e profunda que a santa via de Jesus tem tudo a ver com a via-crucis dos doentes e idosos. E isso tanto no que se refere ao “rosário” de dores que ferem a carne e a alma deles como em relação aos tantos cirineus e verônicas que os consolam solidariamente.

Mas a Comunidade, sintonizada com a caminhada da Igreja do Brasil, seguiram a Via-Sacra proposta pela Campanha da Fraternidade, fazendo desfilar diante destes rostos cansados e corações sofridos, a lembrança do sofrimento ainda maior das vítimas do tráfico de pessoas humanas. Diante dos nossos olhos e no pó no qual mergulhavam nossos pés se uniam o sofirmento de Jesus, dos doentes e das vítimas do tráfico de pessoas humanas.

Estavam previstas paradas em quinze casas, conforme o número das estações. Mas quantas são mesmo as estações e visitas da caminhada de Jesus ao calvário das dores humanas? Algumas pessoas idosas, mesmo sem terem sido contempladas na lista, arrumaram altares diante das suas casas? Como desconhecer o apelo surdo que eles gritavam e passar adiante como se nada fosse?

Concluíamos a parada e a meditação diante de cada casa com o pedido de bênção sobre os idosos e doentes que nelas habitam. Estendendo as mãos sobre eles, cantávamos “este doente será abençoado, pois o Senhor vai derramar o seu amor”. E de fato, em muitos casos, as lágrimas dos doentes sinalizavam materialmente o amor e a bênção que Deus ia derramando, atendendo o pedido do seu povo amado.

Esta caminhada de fé e solidariedade na sagrada via de Jesus durou mais de duas horas. O sol começava a queimar quando celebramos a ressurreição de Jesus em frente à casa de dona Ana, nome com tantas e belas ressonâncias bíblicas. Deus seja louvado por este povo valente e forte, sensível e humano, que vive sua fé de modo tão simples, expressivo e solidário!


Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Vivências da Semana-Santa (4)

Doentes: quem pode contar as dores deles?

A visita aos doentes foi parte importante da agenda preparada pela Comunidade para minha missão na Semana-Santa. Aos poucos fui descobrindo que esta visita faz parte da agenda essencial desta semana especial. Parece que participa diretamente do mistério da paixão e morte de Jesus Cristo.
Visitei em torno de vinte doentes e idosos. Levando em conta o número de habitantes de Vila do Morro, é muito. E isso ainda sem contar os muitos idosos que participam normalmente da Comunidade e o impressionante número de pessoas, especialmente crianças, com algum tipo de deficiência, física ou mental.
A doença e a fragilidade que costumam acompanhar a velhice avançada são experiências muito duras e pesadas para todos, especialmente para aqueles que nos habituamos à autonomia e independência. Mas, quando se situam num contexto de pobreza, miséria e abandono, são quase insuportáveis, podem nos desumanizar quem as sofre e assustar quem as conhece.
Esta é a situação da maioria dos doentes que visitei: idosos, doentes, pobres, solitários. Nesta condição, como esperar que se apresentem limpos, perfumados, arrumados? A situação em que encontrei muitos deles me fez lembrar do Servo Sofredor: “Ele não tinha aparência nem beleza para atrair o nosso olhar, nem simpatia para que pudéssemos apreciá-lo. Desprezado nDesprezado e rejeitado pelos homens, homem do sofirmento e experimentado na dor; como indivíduo de quem a gente eaconde o rosto...” (Is 53,2-3).
De fato, vários doentes e idosos que visitei vivem sozinhos, com saudade dos filhos esparramados pelo mundo em busca de sobrevivência. Muitos vivem acompanhados por um neto ou neta, pouco mais que crianças, que parecem ter já incorporado o olhar distante e a melancolia dos seus avós. “Ele cresceu como raiz em terra seca... Por suas feridas é que veio a cura para nós...”
O que significaria para estes irmãos e irmãs “experimentados na dor” a minha visita? Que mensagem passaria se os saudasse de longe, se dissesse apenas algumas palavras de ocasião, recomendadas pelo meu dever de ofício? E como vencer a instintiva barreira que se ergue entre mim e pessoas em estado tão deprimente? E para elas, isso não é ainda mais deprimente?
Senhor, derruba estas barreiras e abre minha mente, meu coração e minha vontade, para que eu me aproxime destas pessoas e seja uma tênue mas real expressão da tua proximidade compassiva, do teu carinho que reanima, do teu toque curador, do teu perdão consolador, do teu abraço regenerador, tanto para eles como para mim.

Itacir Brassiani msf

Segundo Domingo da Pascoa (Ano A - 2014)

Ressuscitados, somos enviados para transfigurar o mundo!
Nós nunca vimos Jesus, mas isso não nos impede de segui-lo, amá-lo e testemunhá-lo. Aprendemos pouco a pouco que a fé que nos faz renascer para uma esperança viva e nos ajuda a ver com novo olhar e agir com novo vigor. Ver e tocar não são condições indispensáveis para crer. Imprescindível é o vínculo vivo com uma comunidade de irmãos e irmãs. Nela temos a possibilidade de estender a mão e tocar as chagas do Senhor ressuscitado, de prostrarmo-nos em humilde adoração e de prosseguir a missão de Jesus Cristo, tanto de forma individual como em ritmo comunitário.
É impressionante a experiência pascal dos discípulos e discípulas de Jesus. Doía-lhes na consciência a traição, a negação, a deserção e o abandono de Jesus no caminho da cruz. A esta dor acrescentava-se o medo de que a perseguição violenta por parte das autoridades judaicas e romanas se voltasse também contra eles. Com medo, eles se reuniam a portas fechadas. Mas, ao se manifestar a eles, a primeira palavra de Jesus é de acolhida e pacificação, e não de cobrança: “A paz esteja com vocês!” Jesus lhes mostra as feridas nas mãos e no lado esquerdo, sem lamentar ou acusar pelo abandono sofrido.
Tomé não está reunido com os demais discípulos quando Jesus ressuscitado vai ao encontro deles. Quando os outros dez discípulos lhe anunciam “nós vimos o Senhor”, sua reação não esconde a frustração transformada em desconfiança e ceticismo: “Se eu não vir a marca dos pregos nas mãos dele, se eu não colocar o meu dedo na marca dos pregos, e se eu não colocar a minha mão no lado dele, eu não acreditarei.” Falta-lhe o sentido de pertença à comunidade. O abandono do caminho de Jesus leva-o ao isolamento, e esta separação da comunidade impedia a continuidade da missão.
Tomé reata os laços com os condiscípulos e seus olhos se abrem. Nos corpos concretos e feridos dos irmãos e irmãs, Tomé recorda o projeto de Jesus Cristo, “toca” suas feridas e acredita nele. São felizes aqueles que alcançam a fé sem ver, apenas vendo e tocando indiretamente o Senhor que está no meio de nós. Como comunidade apostólica, damo-nos conta também de que podemos ficar de tal modo envolvidos pela idéia de um Cristo exaltado e pela possibilidade da nossa ressurreição depois da morte que corremos o risco de esquecer que o mundo ainda não foi totalmente transfigurado...
Por isso, Jesus Cristo confere claramente uma missão aos discípulos: continuar seu próprio trabalho de tirar o pecado do mundo. “Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês”. É como se ele nos confiasse a tarefa de lixeiros, de passar pelas ruas recolhendo os males que o egoísmo gera e sustenta. Isso é o que significa ser o “Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo”. Este pecado tem muitos nomes e se manifesta nas diversas formas de dominação, de exploração, de discriminação, ou também na indiferença diante das vítimas destas ações. É esta a herança que não se corrompe!
E esta herança e missão urgem, não podem ser postergadas para amanhã, para quando tivermos mais tempo. Não pode também ser terceirizada ou enviada à responsabilidade dos outros. O pecado que não tirarmos do mundo permanecerá aqui, diminuindo e ferindo a vida de muita gente. A comunidade que se reúne para continuar a memória de Jesus crucificado e ressuscitado, depois de receber o Espírito Santo, teve coragem para inovar e forças para perseverar no ensinamento dos apóstolos, na união fraterna em torno de Jesus Cristo; na partilha do pão, na oração e na liturgia. Eis nosso caminho!
É a nós que Jesus se dirige hoje, convidando-nos a tocar seu corpo. Nesta celebração, seu corpo está ao nosso alcance na eucaristia, mas também no corpo eclesial, nos irmãos e irmãs que estão ao nosso lado no templo e do lado de fora da igreja. Saudemos, abracemos sirvamos estes irmãos e irmãs, membros vivos do corpo de Cristo. Com eles, vivamos em paz e sejamos portadores de paz. E mais ainda: busquemos no pão pascal a força para perseverar na tarefa impostergável de tirar o pecado do mundo, começando pelos pecados que ferem e maculam a própria Igreja. Fomos guardados para a salvação!
Deus, Pai e Mãe da vida: celebrando a memória de teu filho e nosso irmão Jesus de Nazaré, te agradecemos pelo dom da fé. É graças à fé que cremos e caminhamos, mesmo sem ter tocado as feridas de Jesus. E te pedimos que este tempo de passagem nos faça renascer para uma esperança viva e vivificadora, para uma herança que não murcha. Faz com que sejamos membros da família de Jesus Cristo a partícipes da sua missão de tirar o pecado do mundo, testemunhar o evangelho do serviço e fazer da humanidade uma só família, como o fizeram os santos João XXIII e João Paulo II. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 2,42-47 * Salmo 117 (118) * Primeira Carta de Pedro 1,3-9 * João 20,19-31)

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Vivências da Semana-Santa (3)

Matrimônio e família: qual base e qual horizonte?

Os animadores insistiram na importância de aproveitar a semana-sante para oferecer encontros específicos direcionados aos casais. Mesmo com uma certa resistência interior da minha parte – devo entender o por quê! – acertamos dois momentos: uma celebração penitencial por ocasião da missa da terça-feira e um encontro de reflexão na quinta-feira, depois da missa da ceia e do lava-pés.

Para a celebração penitencial da terça-feira, substituí o evangelho do dia pela perícope de Jesus no templo, aos doze anos (Lc 2,41-52). À luz do episódio, destaquei como perspectivas para a revisão de vida: a participação, como família, das tradições religiosas do povo; a confiança dos pais no filho e nos parentes; o empenho dos pais na educação integral dos filhos; a necessidade de os pais ajudarem os filhos a descobrirem sua vocação; os pais também precisam aprender comì os filhos; os filhos aprendem e crescem permanecendo aberto aos pais e afirmando suas raízes populares.

A participação no encontro depois da missa do lava-pés foi uma bela surpresa. A missa se estendera das 19:30 às 21:00 horas. Mesmo assim, em torno de uma centena de pessoas, majoritariamente casais, permaneceram na igreja para esta reflexão. Obviamente, o encontro não poderia ser muito longo, mas a atenção e o envolvimento dos casais me comoveu. Como não frustrar tamanha expectativa e generosidade?

Preparei-me para desenvolver a reflexão voltada ao relacionamento conjugal, à luz da teologia e da espiritualidade da ceia: a aliança e o serviço. Tive o propósito de ser concreto e não perder-me em psicologismos e espiritualismos, mas sem abandonar a perspectiva evangélica. Busquei ajuda em velhas e inspiradas canções do Pe. Zezinho, como “Utopia” e “Estou pensando em Deus”. O simples fato de um padre tocar violão, mesmo precariamente, impressiona e sensibiliza... O resto, a canção e o Espírito se encarregam de fazer.

Desenvolvi a reflexão em torno de alguns eixos: a vida matrimonial é aliança entre duas pessoas diferentes em muitas coisas, mas iguais no valor e na dignidade; à luz da santa ceia e do lava-pés, a aliança implica em hospitalidade, delicadeza e serviço recíprocos; esta aliança corre perigos e é ameaçada por discordâncias, resistências, carências, traições; a prova dos nove da aliança matrimonial é a vida cotidiana – em casa, no trabalho, na carência de meios, com os filhos, pais e sogros – e não os grandes momentos de festa ou comemoração; para ser um projeto viável, a aliança matrimonial precisa buscar inspiração e força na fé, especialmente na aliança de Deus conosco, sacramentalizada na eucaristia e na reconciliação.

Os quarenta minutos do encontro correram apressadamente, e ninguém os viu passar. A maioria voltou para casa com gosto de quero mais. E eu com a clara convicção de que temos nos casais uma terra fértil e generosa a ser semeada com boa semente e cultivada com respeito e apreço. E o povo de Deus não tem o direito de esperar isso de um Missionário da Sagrada Família? “Tudo seria bem melhor se o natal não fosse um dia, se as mães fossem Maria e se os pais fossem José; e se a gente parecesse com Jesus de Nazaré...”

Itacir Brassiani msf

quarta-feira, 23 de abril de 2014

As mulheres e a pascoa

As mochilas das mulheres da Páscoa
Novamente a memória dos discípulos e discípulas de Jesus, nos convida a continuar  aprendendo a sermos mulheres da páscoa. Nossas antecessoras, aquelas que seguiam Jesus como peregrinas, que serviam as mesas com ele e o acompanharam na subida para Jerusalém, foram guardando desses dias, pequenas lembranças.
Uma delas recolheu do chão de alguma rua de Jerusalém um raminho de oliveira, para poder contar e não esquecer a força que tem um povo, quando compreende seu destino. Ela mesma guardou o gosto do pão e do vinho. Depois da ceia, num guardanapo que conservava umas gotas do vinho, ela recolheu e guardou umas migalhas do pão que foi partido nessa noite, para não esquecer como é complicado aprender a ser comunidade, ou a eloquência dos gestos e a intensidade quando se come com um nó na garganta, quando ser fiel a si mesmo, assusta, e é ao mesmo tempo uma vocação irrenunciável. Essas migalhas de pão e essas gotas de vinho, iam recordar às futuras gerações que vale a pena.
Outra delas guardou um pedacinho do tipo de toalhas com que secaram os pés dos presentes, esse gesto transgressor que surpreendeu a todos (as). Outra quis guardar um dos vidros de perfume que usaram para a unção do corpo depois que o desceram da cruz, e que faz recordar sempre o mérito de se estar presentes lá onde ninguém quer estar... Guardaram  também na mochila alguns panos que mostravam que o túmulo não é o lugar de Jesus e que seriam para a humanidade, o sinal e a evidência da liberdade da vida, quando se ama...
Todos os anos, as mulheres da páscoa nos oferecem essa mochila, para que olhemos novamente, toquemos e contemplemos essas pequenas lembranças. Sobretudo nestes tempos em que queremos animar-nos para novos projetos, será importante contemplarmos juntas novamente essas memórias sentidas, para que nos ajudem a projetar o novo, sem esquecer que somos parte de um povo, que vale a pena comer e beber juntas, lavarmos os pés umas das outras, partilhar os nós da garganta, julgarmos  por nossos sonhos, estar lá onde ninguém quer estar e abandonar os sepulcros, mulheres livres e amantes.
Cada uma de nós está convidada a guardar nessa mochila as pequenas lembranças destes dias das discípulas de Jesus no século XXI! Felicidades a todas e a cada uma, desejando profundamente partilhar a mochila das lembranças e sermos mulheres da páscoa. Com muito carinho,

Irmãs da Imaculada Conceição da Província da Argentina Uruguai

Vivências da Semana-Santa (2)

Escola: quais são as lições mais importantes?

Por-de-sol na praça da Vila do Morro
Começo confessando que não tenho muito prazer em visitar as escolas. Até resisto um pouco. Por quê? Os motivos são vários. Tenho a impressão que os estudantes, especialmente os adolescentes e jovens, não estão muito interessados em assuntos de religião. Quando a agenda é definida pela direção, a desmotivação deles pode ser ainda maior. E, por que não dizer, tenho dificuldades de pensar uma mensagem relevante e oportuna para estudantes.

O primeiro grupo com quem me encontrei foi com as crianças da “escola especial”, logo na segunda-feira pela manhã. A escola é especial porque ecolhe crianças com graves dificuldades de aprendizagem. Mas este caráter especial se vê também, negativamente: é indescritível a precariedade das instalações desta escola. Uma escola para escórias, não para gente. Que mensagem transmitir a estas crianças especiais? Como estabelecer um diálogo pegagogicamente significativo com eles? Eis o grande desafio.

Dediquei três momentos da terça-feira para os três turnos da escola estadual, de ensino fundamental e médio. O primeiro encontro, às 8:00, foi com adolescentes da quinta à oitava séries. O segundo, às 13:00, com crianças da primeira à quarta séries. O terceiro, às 18:00, com jovens do ensino médio. Com todos os três grupos preparei uma reflexão, centrado no diálogo e em uma dinâmica, sobre o tráfico de pessoas humanas e a páscoa. Quando me dei conta do tamanho dos grupos (sempre mais de cem estudantes), descartei o diálogo.

Destaco o encontro com as crianças e o encontro com os jovens. Com as crianças de primeira à quarta séries propus algumas brincadeiras, e com isso ganhei a simpatiua delas e consegui despertar a atenção para os temas. O encontro com os jovens me preocupava bastante. Eram mais de cento e cinquenta!... Mas fiquei boquiaberto: refletimos durante quarenta e cinco minutos num clima de silêncio e atenção que jamais imaginei! Não tinha como não agradecer e elogiar os jovens publicamente... Mesmo sem entrar na questão dos frutos da reflexão, o respeito e a atenção que eles demonstraram valeu por si mesmo.


Talvez o aprendizado que resulta destes encontros seja mais para mim que para eles!... Preciso valorizar mais os espaços não-eclesiais de diálogo e testemunho. Preciso melhorar minha capacidade pedagógica, pois estou habituado a falar para crentes adultos. Preciso preparar melhor e ser mais concretos em minhas intervenções, especialmente em temas como o da Campanha da Fraternidade. Preciso correr o risco de me expor e de ser questionado. Preciso amadurecer uma mensagem de caráter religioso e humano, que possa ser relevante também àqueles que não participam das práticas eclesiais.

Itacir Brassiani msf

terça-feira, 22 de abril de 2014

Vivências da Semana-Santa (1)

Domingo de Ramos: quem é este que está chegando?

Igreja da Vila do Morro (S. Sebastiao)
Partimos de Belo Horizonte sábado, 12 de abril, às 5:00 da manhã. Fizemos uma viagem tranquila e chegamos a Montes Claros pouco depois das 10:00. Fizemos uma breve visita ao Seminário Sagrada Família, que estava envolvido com a Feira Vocacional da Arquidiocese, e almoçamos com o coirmão Jorge Paulo e com os seminaristas. Logo partimos de novo: Oberdan e Milton para Januária, eu e Wanderson para São Francisco. Nestes lugares viviríamos nossa Semana Santa.
Wanderson e eu pousamos e passamos a manhã de domingo com nossos coirmãos da Paróquia São José, em São Francisco. No início da tarde, parti para meu destino: a Comunidade São Sebastião, na Vila do Morro, uma vila com aproximadamente 1.500 habitantes, situada a vinte e quatro quilomêtros de São Francisco. Aqui me esperavam Kazim e Lucienne, animadores da Comunidade, para discutir uma proposta de agenda para esta santa semana. Bastou uma hora para definir a agenda e me deixar uma certeza: a semana seria muito intensa. Em seguida, fui conhecer minha anfitriã, cuja fama de simplicidade e generosidadejá tinha chegado aos meus ouvidos: Dona Lia.
A agenda básica da smunitária todas as noites; visita a todos os doentes da vila; encontro com os estudantes de todos os turnos da escola; celebrações poenitenciais e confissões; encontro específicos com crianças, jovens e casais; participação na missa da unidade, em Januária; procissão do Encontro; Via-sacra com estações nas casas dos doentes; celebração da paixão, com via-sacra viva; vigília pascal; celebração da páscoa.
Logo em seguida, às 17:30, iniciamos a missa do domingo de Ramos. A celebração começou na igreja e, com os ramos abençoados nas mãos, o povo saiu igreja a fora e girou em torno do quarteirão, animada por cânticos e orações puxados pelo povo do local. O templo estava repleto de gente curiosa para conhecer o padre que chegava para passar toda a semana-santa na vila, fato inédito na história recente do povoado. Mas a curiosidade ficava claramente muito aquém da piedade.
Jesus entrou em Jerusalém acolhido entusiasticamente pelo povo simples da periferia e com desconfiança pelas autoridades da cidade. E foi acompanhado com crítica expectativa pelos discípulos. Não foi uma entrada que possa ser qualificada de triunfal. Como em Jerusalém há dois mil anos, na Vila do Morro, as vozes saudavam “Bendito aquele que vem em nome do Senhor!” E em ambos os lugares era grande a expectativa e o desejo de conhecer o estranho que estava chegando...
No meu caso, eu tinha certeza de que o desfecho da visita deveria ser diferente da visita de Jesus a Jerusalém. Em que pese minha conhecida lentidão no estabelecimento de contatos e vínculos e a proverbial reserva dos mineiros, pouco a pouco fomos dando-nos a conhecer, mais eu que eles. E fui sendo progressivamente surpreendido pela fé, pela simplicidade, pela humanidade e pela dedicação dessa gente à Igreja. E a semana foi sendo marcada diariamente por sinais pascais.

 Itacir Brassiani msf

A pascoa de Jesus em nossa vida

Uma confissão plenamente pascal

Talvez devêssemos aproveitar este tempo pascal para uma confissão. E começaríamos com as seguintes palavras:
“Assim somos nós, Senhor... Chegamos a Jerusalém para estar entre os primeiros a te saudar com ramos de oliveira e estender no chão nossos mantos para demonstrar que somos teus súditos. Já o éramos, aliás, desde que alimentaste aquela multidão de um modo que não entendemos bem...
E se fosse a um de nós que teus amigos pedissem emprestada a sala de jantar para a Páscoa, de bom grado teríamos oferecido não apenas a mesa e os bancos, mas o que de melhor tivéssemos em matéria de toalha, pratos, copos, talheres, iguarias...
Mas de repente, sem razão que explique – a não ser nossa proverbial dificuldade de ser diferentes entre os iguais – começamos a gritar impropérios no meio da multidão à qual Pilatos te apresenta. E, quase sem perceber, juntamo-nos ao coro dos que dizem ‘crucifica-o’, como se fosse possível trocar um criminoso contumaz por um inocente que só fizera o bem, que incluíra os marginalizados, curara os enfermos, anunciara o Reino aos pobres!
Levados pela massa, como quem participa de uma passeata por convocação de seus pares, embora sem convicção acerca dos princípios a defender, te acompanhamos na via crucis diária, indiferentes aos necessitados, surdos aos apelos dos injustiçados, cegos aos gemidos dos que sofrem violência, mudos diante da exploração dos indefesos...
E quando nos demos conta, já estavas erguido entre dois malfeitores; tua vida se esvaindo, tua voz – ainda audível – pedindo ao Pai que perdoasse teus algozes, prometendo a um dos condenados que ele seria salvo.
E talvez devêssemos concluir suplicando que continues a nos amar com um amor que não merecemos. Porque, embora possamos fazer promessas que quebraremos a seguir, de uma coisa temos certeza: só tu tens palavras de vida eterna. E delas precisamos, desesperadamente.
Ajuda-nos então a escutar voz firme e direta a nos dizer, no cenáculo onde estamos reunidos com os nossos medos e com as nossas esperanças: ‘Paz!’ E tenhamos, pois, como a comprovar que Tu nunca desistes de nós.”
Uma Feliz Páscoa de Ressurreição.


Maria Elisa Zanelatto

segunda-feira, 21 de abril de 2014

90 anos da presença dos MSF em Santo Angelo

Noventa anos de história MSF em Santo Ângelo

Sinal da presença MSF em S. Angelo: construçao da Catedral
Os acontecimentos e personagens do passado nada têm a ver comigo? A partir do momento em que começamos a fazer da história não uma narrativa fria e distante, mas dela nos sentirmos personagens ativos, ela começa a tomar vida, movimento, colorido, e a despertar sentimentos e emoções. E vai tornando-se interessante e atraente.
Transportando-nos à Casa-Mãe de Grave, ver-nos-emos recebendo o abraço de acolhida daquele homem admirável, escolhido por Deus, a oferecer-nos a venturosa possibilidade de sermos Missionários da Sagrada Família. O dia 28 de setembro de 1895 é dia memorável de todo discípulo de Berthier. Treze anos depois, naquela manhã de 16 de outubro de 1908, o nosso coração sobe-nos à garganta ao ouvirmos sobressaltados a notícia: “Notre bon Père est à la mort!... Nosso bom pai agoniza!...” Nesse momento, assumimos os sentimentos e atitudes, quiçá, de um De Lombaerde, dando apoio à cabeça do Fundador agonizante em nossos braços.
Se tais eventos históricos forem considerados parte também da minha e da nossa história, sentir-nos-emos comprometidos e corresonsáveis com a ‘obra’ de Berthier – que é a nossa! – assim como um Josef Carl, primeiro Superior Geral, e como um Anton Maria Trampe, ambos figuras exponenciais da história da Congregação, particularmente para o Brasil e, em especial, para a nossa Província.
A nossa história avança! No dia 8 de janeiro de 1911, às 21h30, aportávamos em Recife, como missionários pioneiros da Congregação enviados ad gentes, “àqueles que estão longe”. Éramos sete: cinco padres e dois irmãos. Nos dois anos seguintes, recebíamos ajuda de outros sete. Veio a grande guerra mundial de 1914 a 1918, e dela somos personagens sofredores, praticamente sem contato com os coirmãos e Superiores de Grave. E eles, por sua vez, sem saberem de nossas malárias e peripécias outras que enfrentávamos na região amazônica.
A tua e a minha história prossegue! O segundo Superior Geral, eleito em 1920, Pe. Anton Maria Trampe, desembarcava no porto de Recife no dia 20 de junho de 1920, para sua primeira visita a nós brasileiros. Enfrentando contratempos de toda ordem, visitou-nos um a um!... Trazía-nos notícias dos coirmãos da Europa, algumas tristes e muitas alvissareiras. Com atenção e emoção, ouvia e registrava nossas experiências missionárias e as injustiças que sofrêramos de autoridades civis e eclesiásticas.
Nossa história está cada vez mais perto de hoje! Com calma bertheriana, em busca de campos vocacionalmente férteis, o Pe. Trampe põe-se em marcha para o Sul, vindo à nossa procura. Passa pela Bahia, pelo Rio de Janeiro, por São Paulo e por Florianópolis. Parece Berthier, de lugar em lugar, buscando um canto para os seus futuros filhos... Penetra no solo gaúcho pelo porto de Rio Grande. Vai a Pelotas, Porto Alegre, Uruguaiana, Santa Maria e... chega a Santo Ângelo. Volta a Porto Alegre cansado e desanimado, para não dizer decepcionado, com determinados antístites da Igreja. Em sua peregrinação penosa, vez por outra chegou a adoecer, precisando acamar-se por alguns dias. São as dores e náuseas da nossa gestação! Está próximo o nascimento dos primeiros bertherianos em terras brasileiras.
Nosso berço, inicialmente, foi Rolante, assumida no mês de fevereiro de 1923. Santo Ângelo, todavia, havia sido o lugar escolhido para acolher nossos vocacionados. Aqui será a nossa Grave! É na terra das missões que serão cultivados os primeiros missionários autóctones! A diocese de Santa Maria dispusera-se a entregar-nos Ijuí ou Ajuricaba. Dom Hermeto, bispo de Uruguaiana, prometera confiar-nos Cerro Largo, mas forças que não nos são ocultas levaram Dom Hermeto a mudar sua decisão. Em troca, ofereceu-nos Santo Ângelo.
Em encontro pessoal, nosso Superior Geral e Dom Hermeto celebraram, no dia 9 de novembro de 1922, o seguinte convênio: “Entre a diocese d Uruguaiana e a Congregação dos Missionários da Sagrada Família, representados pelo bispo diocesano Dom hermeto José Pinheiro e pelo Superior Geral Pe. Anton Maria Trampe, pelo presente convenia-se o seguinte: 1) A entrega da paróquia de Santo Ângelo e São Miguel, pelo espaço de cinco anos; decorrido esse tempo, se o bispo julgar oportuno, será devolvida ao clero diocesano, ou o contrato será renovado; 2) O término do prazo para a entrega é o dia 1° de janeiro de 1923; 3) O excelentíssimo prelado diocesano, pelo presente, autoriza a construir, em lugar de sua escolha, a sua residência canônica, com a respectiva capela. Outrossim, podem os padres em sua residência abrir uma escola apostólica.”
O nosso coirmão Pe. Henrique Ofenhitzer foi o primeiro a chegar em Santo Ângelo. Ele deixou escrito o seguinte: “Aos sete de maio de 1924 cheguei ao meu novo posto e iniciei meu trabalho com as maiores dificuldades.” No corrente ano (1999), pois, completam-se 75 anos de nossa presença na ‘capital das missões’. Há 75 anos muitos de nós nem nascêramos, mas capítulos e capítulos da história de cada membro da nossa Provincia – da sua e da minha história! – já estavam sendo escritos.
Sinal da presença MSF em S. Angelo: Seminario Sagrada Familia
Essa antiga história é parte da nossa história de hoje. Sem aquela, a nossa seria muito diferente, com certeza. Como poderei narrar a minha vida olvidando-me do acontecido e dos personagens que me antecederam? Como pode alguém ler a história do mundo, da salvação, da Igreja, da Congregação, da Província, sem sentir-se parte integrante e nem personagem de toda uma longa história?
Desde que assim venho me posicionando frente à história, sinto que crescem meu amor e meu interesse por Berthier e, em especial, por nossa Província. Meu coração é tomado de gratidão aos coirmãos, de ontem e de hoje, com os quais venho construindo minha biografia. É-me significativo retornar, neste ano de 1999, a Santo Ângelo, exatamente nos 75 anos da nossa vinda para cá. E convido todos os coirmãos a louvarem a Deus e a renderem graças à Sagrada Família pelo evento histórico dos 75 anos de nossa vida missioneira.
Pe. Rodolpho Ceolin msf

(Este texto foi publicado em O Bertheriano, Ano XVII, N° 61, março/1999, p. 3-4. O título foi, obviamente, adaptado)

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Missa da Pascoa de Jesus (Ano A - 2014)

Nossa verdadeira liberdade está com Cristo, em Deus!

A festa cristã da Páscoa celebra o reconhecimento de Jesus – o profeta perseguido e assassinado, o irmão e servidor da humanidade – como Filho de Deus. Proclama que nele Deus vence todas as formas de morte, desde a morte física dos indivíduos até a morte progressiva e massiva que resulta das estruturas iníquas e dos poderes despóticos, passando pelo dolorido flagelo do tráfico de seres humanos. A páscoa anuncia que Jesus, a pedra sem utilidade e problemática na construção do mundo, foi considerado por Deus como pedra fundamental da construção de um mundo novo.
É isso que escutamos no testemunho entusiasmado e corajoso de Pedro. Ele recorda que Jesus andou por toda parte fazendo o bem e agindo sem medo, apesar da violência que havia levado João Batista à morte. Pedro anuncia que Deus estava com Jesus, inclusive no vazio e escuro da cruz, quando parecia havê-lo abandonado. Foi o próprio Deus que o ressuscitou dos mortos e transformou em juiz aquele que fora réu de morte. E os discípulos da primeira hora, apesar da dificuldade de acreditar nele e de tê-lo abandonado, são constituídos testemunhas e pregadores desta Boa Notícia.
A Páscoa de Jesus de Nazaré e dos cristãos celebra as infinitas possibilidades escondidas na vida de cada criatura e de cada pessoa, e também na história da humanidade. Afirma que a última palavra não será do discurso frio daqueles que impõem sua injusta ordem e mandam calar os profetas. Proclama que a ação realmente eficaz e grávida de futuro é aquela que estabelece a absoluta superioridade do outro, da vítima, do pequeno. Evidencia que a direção certa e o sentido da vida estão no esquecimento de si, no fazer-se semente de uma outra vida, no viver uma liberdade que se faz solidariedade.
E é claro que esta não é uma realidade que se manifesta apenas depois da morte. Paulo afirma surpreendentemente que os cristãos já foram ressuscitados. Ele fala do dinamismo pascal do nosso batismo, que possibilita e requer a passagem de uma vida fechada para uma vida plena e solidária. “Procurem as coisas do alto”, exorta Paulo. E isso significa assumir um estilo de vida centrado no dom e no amor, no serviço e na partilha, no compromisso perseverante e generoso com a gestação de um outro mundo, na conversão permanente da Igreja ao Evangelho de Jesus Cristo.
Mas a ressurreição de Jesus não é algo que se impõe com força de evidência, que vem acompanhado de manifestações potentes. Começa com uma sepultura vazia, diante da qual Maria Madalena foge alarmada para avisar Pedro e João. Também eles correm e, chegando, entram na sepultura vazia e vêem os panos e o sudário. Somente mais tarde, Madalena abrirá os olhos, quando será chamada pelo nome. E os discípulos desanimados encontrarão Jesus com fisionomia de peregrino no caminho de Emaús. E os outros apóstolos o reconhecerão numa manhã cinzenta, depois de uma pesca frustrada...
O dia já havia amanhecido, mas, na cabeça de Maria Madalena e dos demais discípulos e apóstolos, a experiência do fracasso pairava como escuridão intransponível. Só muito lentamente eles foram percebendo que os lençóis estendidos não estavam lá para cobrir um cadáver, mas para acolher as núpcias de uma nova aliança. O sudário sim, depois de cobrir a cabeça de Jesus, estava à parte e envolvia totalmente o templo, o lugar onde a morte era tramada e deliberada. Precedido e encorajado por Maria Madalena, o discípulo amado entrou na sepultura escura e fria, “viu e acreditou”.
A Páscoa de Jesus de Nazaré inaugura a nova criação. Não se trata de uma simples correção do passado, de perdão dos pecados, de vitória sobre a morte física e individual. Jesus de Nazaré, o ressuscitado que traz no corpo as marcas dos pregos e da lança, que passou fazendo o bem, é o Homem Novo, o primogênito de todas as criaturas e o irmão de todos os homens e mulheres. Os discípulos e discípulas se reúnem em torno de sua memória e organizam comunidades que continuam sua pró-existência e desconhecem limites de sangue, de raça ou de qualquer outra ordem.
Deus Pai e Mãe, útero sagrado no qual a vida é gerada e regenerada: obrigado pela luz e pela força da ressurreição de Jesus Cristo que hoje estamos celebrando. Aqui renovamos a convicção de que o Filho do Homem e Irmão dos Pequenos se tornou juiz dos vivos e dos mortos, dos que escravizam e dos que são escravizados, dos que morrem e dos mandam matar. Hoje redescobrimos nossa vocação de ser semente que morre para ser fecunda, e voltaremos às nossas casas caminhando e cantando, para demonstrar nossa alegria e para espantar o medo. Que a vida seja sempre mais forte que a morte! Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 10,34-43 * Salmo 117 (118) * Carta aos Colossenses 3,1-4 * João 20,1-9)

Vigilia Pascal (Ano A - 2014)

Tiremos da lista dos mortos Aquele que está vivo!
Como fazemos quando falece uma pessoa querida, neste sábado reunimo-nos em vigília para ruminar a dor da perda, para recapitular uma história, para regar as frágeis sementes da nossa esperança. A escuta atenta e ritmada da Palavra que cria e sustenta a vida e a esperança pode nos ajudar neste tempo de espera vigilante e de decisões responsáveis. As vigílias sempre têm o objetivo de assumir a herança humana e espiritual de quem partiu, levantar o olhar, contemplar o horizonte...
Sendo recordação, a vigília é também saudade, espera e vazio: o vazio da libertação perdida, do desejo de plenitude prometida, do futuro que é espera. É também um dolorido processo de despojamento dos estreitos conceitos, ambíguas ambições e despóticos senhores a fim de purificar nosso olhar e sintonizar nossa vida com o mistério de Deus. Deus assume esse vazio e nele faz sua morada! No início de tudo, o Espírito pairava sobre a terra informe e vazia... Pelo batismo, fomos sepultados com Cristo...
O vazio da sepultura não comprova a ressurreição, mas nos ajuda a intuir que as marcas dos pregos no corpo torturado não são a última palavra de Deus sobre a história. Na sepultura vazia, mulheres e anjos ensinam que o caos do lixo pode dar lugar a uma criação harmoniosa, que o mar ameaçador pode ser atravessado a pé enxuto, que os grupos dispersos podem ser reunidos, que os crucificados caminham à nossa frente rumo às fronteiras, onde novas possibilidades estão em gestação...
É verdade que o Dia ainda não amanheceu plenamente e a liberdade não alcançou todos os seres humanos. Mas os guardas do sistema tremem diante do vulto de mulheres e de homens que caminham corajosamente. O poder sobre a vida e a morte não está mais nas mãos deles! Precisamos nos abrir às novas possibilidades escondidas nas pessoas e nos caminhos da história, vibrar de alegria e sair correndo para anunciar aos outros esta Boa Notícia: “Ele não está aqui! Ressuscitou, como havia dito!”
As mulheres madrugadeiras nos ensinam que os sinais palpáveis da ressurreição só podem ser tocados na periferia – “ele vai à vossa frente para a Galiléia. Lá vós o vereis!” – ou na missão – “Ide anunciar aos meus irmãos que se dirijam para a Galiléia. Lá eles me verão...” É neste caminho de êxodo missionário que as duas mulheres reconhecem o Ressuscitado que vem ao encontro delas pedindo que se alegrem e não tenham medo. O lugar onde ele estava perde importância diante do lugar onde ele está agora!
Como cristãos, somos chamados a completar em nossos corpos os sofrimentos de Cristo, a prolongar os sinais do esvaziamento por amor e fazer germinar as sementes do Reino de Deus. A ressurreição se multiplica como semente no testemunho e nas iniciativas dos discípulos e discípulas, comunidades e Igrejas, grupos e movimentos. Os sinais são pequenos, mas reais e promissores. Como naquela parábola, a semente é pequena, mas tem um impressionante dinamismo de crescimento.
O batismo, recordado nesta vigília, expressa este dinamismo pascal na vida de cada um de nós e da comunidade eclesial. Nele, dizemos que por Cristo, com Cristo e em Cristo fomos mortos e sepultados para os interesses egoístas e nascemos para uma outra realidade. Mortos para a lei que nos pede para levar vantagem em tudo e fechar os olhos ao tráfico humano, somos livres para começar uma vida nova, no caminho aberto por Jesus Cristo. Morreu o velho homem, nasceu uma nova criatura!
Jesus é como uma pedra que os construtores descartaram mas Deus transformou em pedra de ângulo, em pedra que sustenta todo o teto em forma de abóbada. Por isso, a Páscoa pede que abramos os olhos e as portas às pessoas e grupos sociais que são descartados como desnecessários ou eliminados como incômodos. Se não os tivermos no coração das nossas preocupações e projetos eclesiais, nossa fé é construção sobre a areia, nosso amor pode virar patologia e nossa utopia se deteriora em ideologia.
Deus Pai e Mãe, que nos criastes com a dignidade de filhos e filhas e nos chamais à verdadeira liberdade. Aqui estamos com as mãos calejadas nas semeaduras e os corpos grávidos de louca esperança. Aqui viemos sem perfumes, trazendo apenas com a ansiedade do amor e as marcas das lutas que travamos. Tua Palavra confirma que teu desejo é que todos tenhamos liberdade e vida. As testemunhas da primeira hora nos ensinam que teu filho vive e marcou encontro conosco longe dos sedutores centros de poder. Ensina-nos a afagar a terra e fecundar o chão, nesta propícia estação de renascimento. E que todos vivamos para universalizar a liberdade para a qual Cristo nos libertou. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Gênesis 1,1-2,2 * Gênesias 22,1-18 * Exodo 14,15-15,1* Isaías 51,1-11 * Ezequiel 36,16-28 * Carta aos Romanos 6,3-11 * Salmo 117 (118) *  Mateus 28,1-10)