quinta-feira, 31 de julho de 2014

18° Domingo do Tempo Comum (Ano A - 2014)

Que em todas as mesas de pobre haja festa e pão!
Há um preceito que não está escrito na Constituição nem na Bíblia, mas é ensinado em lições que vão do berço à sepultura. Esta lei diz que cada um deve viver pra si e Deus se ocupará de todos. Uma variante afirma que quem pode mais sempre chora menos. Não é difícil perceber que estes princípios vão sendo assimilados tranquilamente na arena política, no sistema econômico, e até no âmbito da religião. Deus acaba sendo uma espécie de avalista ou financiador da prosperidade individual, tanto na dimensão social como econômica. Mas isso se opõe frontalmente ao seguimento de Jesus Cristo!
Depois de ter provocado escândalo na sua própria terra e de ter tomado conhecimento da prisão e do posterior martírio de João Batista, Jesus parte para uma região deserta e afastada. Resolutamente, toma distância dos lugares onde o poder mostra sua maior ferocidade. Ele se recusa a entrar no jogo de cartas marcadas e desposa conscientemente a periferia. Jesus sente necessidade de respirar outros ares e buscar inspiração em utopias mais divinamente enraizadas e mais humanamente concretizadas. Assim o fará cada dia de toda a sua breve existência sobre esta terra.
Sabendo disso, as multidões cansadas e abatidas deixam as cidades e o seguem à pé. Têm a intuição de que é da periferia que pode nascer a novidade. Sabem que os centros de poder são como uma figueira estéril, ou pior, estão pavimentados com o trabalho dos pobres e pintados com o sangue dos inocentes. Saindo da barca, Jesus vê a multidão e, movido pela compaixão, cura, resgata, emancipa e reinsere na sociedade muitas pessoas doentes que, por causa disso, acabaram dependentes e marginalizadas. Para Jesus, socorrer e libertar seu povo não é um apêndice da sua missão, mas sua razão de ser!
No fim da longa jornada, no entardecer das possibilidades de ajuda, os discípulos percebem a fome do povo mas não conseguem vislumbrar solução para este drama a não ser dentro da lógica do império. Sem um plano alternativo, pedem que Jesus despeça a multidão para que cada um supra suas próprias necessidades. Querem entregar os famintos às frias leis do mercado, bem ao estilo do “cada um pra si e Deus por todos”. Mas a resposta de Jesus é direta, e sua proposta abate mortalmente tanto o espiritualismo escapista como o elitismo corrosivo dos discípulos.
“Eles não precisam ir embora. Vocês é que têm de lhes dar de comer.” Os discípulos reagem e tentam disfarçar seu egoísmo elitista sublinhando os limites dos recursos disponíveis frente a tão grande demanda. O que representariam cinco pães e dois peixes para uma multidão de dez mil famintos? Longe de Jesus uma Igreja feita apenas de palavras e de ritos religiosos! Longe dele uma comunidade que se compraz em lavar as mãos diante das tragédias que se abatem sobre o povo. Basta de instituições que entregam seus membros à implacável lógica dos impérios!
“Tragam isso aqui”, determina o Mestre. Ele sabe, e quer deixar bem claro a quem o segue, que a saída não é nem cada um pensar em pra si, nem considerar o povo faminto um simples objeto de caridade. Do ponto de vista do Evangelho, o povo é soberano e as autoridades estão a seu serviço. E é claro que não se trata de povos nacionais, mas do único povo de Deus, pois, para os cristãos, as nações modernas são realidades fictícias e, às vezes, violentas, cujos confins foram traçados com lanças e baionetas. Não é cristão um amor que se preocupa apenas com a vida dos co-nacionais!
O alimento suficiente para saciar os que têm fome aparece quando Jesus assume o protagonismo e os discípulos se associam à sua ação. Se ele deixasse a solução às leis do mercado teríamos assistido à catástrofe de um povo, ao cinismo da religião e ao enriquecimento dos astutos. Hoje, o cumprimento da ordem “dêem vocês mesmos de comer” começa com a adoção de um estilo de vida sóbria pelos povos ricos e com a erradicação da exploração comercial dos países ricos sobre os pobres. Mas deve prosseguir na busca de um modelo de agricultura sustentável e da soberania alimentar dos povos.
Deus, pai justo e mãe compassiva: tu queres que ninguém fique fora da festa da vida e que nossa felicidade não seja o aumento de propriedades e de bens mas a redução das necessidades: suscita e sustenta em nós a mesma compaixão que moveu Jesus na cura dos doentes, na acolhida aos marginalizados, na libertação dos oprimidos e no socorro aos famintos. Ensina às nossas comunidades a responsabilidade de ensaiar formas de vida mais sóbrias e mais solidárias. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Isaías 55,1-3 * Salmo 144 (145) * Carta aos Romanos 8,35-39 * Mateus 14,13-21)

terça-feira, 29 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (8)

Como os servos dedicados... (Lc 17,7-10)
Não deixemos que nos roubem a paixão missionária!

Fixemos nosso olhar e sintonizemos nosso ouvido à boa notícia de Lucas 17,7-10. O contexto é de advertência sobre os escândalos provocados pelo amor às riquezas e pelo apego a uma história de observância, que se opõem aos valores do Reino e podem atrapalhar a fé dos pequenos; e sobre a generosidade do perdão e da acolhida aos marginalizados.
Aqui os discípulos são chamados de apóstolos, numa clara referência à missão. Os missionários se sentem radicalmente impotentes frente à força do mal enraizado na sociedade e na cultura e Jesus os censura pela falta de fé. “Com a fé que vocês têm como um grão de mostarda... Se alguém de vocês tem um servo que trabalha a terra e cuida dos animais, por acaso lhe dirá quando ele volta do campo: ‘Venha logo e sente-se à mesa’? Não lhe dirá, em vez: ‘Prepare o jantar para mim, aperte o cinto e me sirva, enquanto eu como e bebo; depois você poderá comer e beber’? Será que o Senhor vai agradecer ao servo porque cumpriu as ordens dele? Assim também vocês: quando tiverem cumprido todas as ordens, digam: ‘Somos simples servos. Apenas fizemos o que deveríamos ter feito’” (Lc 17,5.7-10).
Como os servos no Oriente antigo, os servidores do Reino não podem pensar num empenho part time, mas devem estar inteiramente e ad vitam a serviço (diakonia) do Senhor: de dia, trabalham no campo; de noite, trabalham em casa. O cumprimento da vontade de Deus e o engajamento no seu mandato missionário não têm data de vencimento jamais e não podem ser pretexto para afirmar direitos e méritos diante dele, pois são simplesmente a condição imprescindível para que alguém possa ser discípulo missionário.
O Papa Francisco afirma que a missão no coração do povo não pode ser apenas uma parte da nossa vida, um ornamento que podemos dispensar, um simples apêndice ou momento entre tantos outros: “É algo que não posso arrancar do meu ser, se não quero me destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso nos considerar como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar” (EG 273).
A missão nasce do encontro pessoal com Jesus Cristo e da adesão à alegre novidade do Reino de Deus. A primeira motivação para a missão é o amor que experimentamos em Jesus de Nazaré, a experiência de sermos acolhidos e salvos por ele, que nos impele a amá-lo cada vez mais. “Um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de apresentá-la, de torná-la conhecida, que amor seria?” (EG 264) O Papa Francisco insiste: “A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão reveste essencialmente da forma de comunhão missionária. Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, e não se pode excluir ninguém...” (EG 23)
É claro que nossa vocação missionária não pode ser vivida como um conjunto de tarefas assumidas como uma obrigação pesada, que quase não se tolera ou é suportado como algo que contradiz as nossas próprias inclinações e desejos. “Como gostaria de encontrar palavras para encorajar uma estação evangelizadora mais ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de amor até o fim e feita de vida contagiante! Sei, porém, que nenhuma motivação será suficiente se não arder nos corações o fogo do Espírito” (EG 261). A melhor motivação para anunciar o Evangelho e partir em missão é “contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração”. Por isso, é urgente resgatar o espírito contemplativo, que nos ajuda a descobrir que somos depositários de um bem que humaniza e ajuda a viver uma vida nova (EG 264).
Uma das coisas que nos levam a perder o entusiasmo missionário é o esquecimento de que o Evangelho dá resposta às necessidades mais profundas das pessoas.  O missionário deve estar convicto de que Jesus Cristo e seu Evangelho respondem aos anseios mais secretos e preciosos que habitam no coração das pessoas e culturas. A vida de Jesus, sua forma de tratar os pobres, seus gestos, sua coerência, sua generosidade simples e cotidiana fala à nossa vida e é um bem precioso. Quem descobre isso, convence-se de que é disso que as pessoas necessitam, mesmo que não saibam. E então não pode não evangelizar!
É verdade que a missão é hoje uma tarefa complexa e exigente, que pede discernimento e avaliação permanentes. Mas não podemos dizer que é mais difícil hoje que noutros tempos. É apenas diferente, pois, do ponto de vista histórico, devemos reconhecer o contexto cultural em geral não foi favorável ao Evangelho e à afirmação da dingidade da pessoa humana. “Em cada momento da história estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos” (EG 263). E não esqueçamos que “os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a au­dácia e a dedicação cheia de esperança. Não dei­xemos que nos roubem a força missionária!” (EG 109). Fixemos o olhar nos primeiros cristãos e na nuvem de testemunhas que nos antecederam!
Sem uma perspectiva mística, a missão perde força e beleza e acaba morrendo. “O verdadeiro missionário, que nunca deixa de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar segura do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém” (EG 266).
Ao esboçar breves linhas para uma espiritualidade missionária, o Papa Francisco dá um grande e surpreendente destaque à alegria de ser Igreja, que ele prefere chamar de “prazer espiritual de ser povo” (cf. EG 268-274). Para ser evangelizador e missionário, é preciso desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas, pois “a missão é uma paixão por Jesus e simultaneamente uma paixão por seu povo”.
Quando paramos diante de Jesus crucifica­do, reconhecemos todo o seu amor que nos dig­nifica e sustenta, mas lá também, se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige, cheio de afeto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente que Ele quer servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade não se compreende sem esta pertença” (EG 268).
“O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se falava com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor: «Je­sus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52) e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19). Ve­mo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando rece­be, de noite, Nicodemos (cf. Jo 3, 1-15). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos a fundo na socie­dade, partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações, colaboramos material e espi­ritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado com os outros” (EG 269).
Considerar-se superiores e melhores, tomar distância do povo sofredor, evitar o contato com a vida concreta dos outros, buscar abrigos pessoais e comunitários longe dos dramas humanos não é uma virtude mas uma tentação. Jesus quer que toquemos a carne sofredora do povo, que nos relacionemos com ele e conheçamos a força da ternura e experimentemos a intensa alegria de ser povo. “Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo” (EG 271).
Por fim, é importante lembrar que o amor às pessoas é uma força espiritual que favorece o encontro em plenitude com Deus. Bento XVI disse que “fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus”. Portanto, “quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a intenção de procurar o seu bem, amplia­mos o nosso interior para receber os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para reco­nhecer a Deus” (EG 272).
Assim, “se que­remos crescer na vida espiritual, não podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evange­lização enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais sensíveis para reconhecer a ação do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas espirituais limitados. (...) Só pode ser missionário quem se sente bem, procurando o bem do próximo, desejando a felicidade dos outros. (...) Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechan­do-se na comodidade. Isto não é senão um lento suicídio” (Idem).
Citando o papa Francisco, os bispos do Brasil assinalam que é a paixão e a ação missionárias o dinamismo que derruba as estruturas caducas e provoca a mudança dos corações dos cristãos (cf. Doc. 100, 50). “A conversão pastoral supõe passar de uma pastoral ocupada apenas com as atividades internas da Igreja a uma pastoral que dialogue com o mundo. A paróquia missionária há de ocupar-se menos com detalhes secundários da vida paroquial e focar-se mais no que realmente propõe o Evangelho” (Doc. 100, 58).
Esta conversão pastoral da paróquia consiste na formação de “pequenas comunidades de discípulos convertidos pela Palavra de Deus e conscientes da necessidade de viver em estado permanente de missão” (Doc. 100, 8). Estas comunidades devem se caracterizar por serem a casa dos cristãos para a missão sendo casa da Palavra, casa do Pão e casa da Caridade (cf. Doc 100, 177-189). E é claro que esse dinamismo tem um rumo – as periferias – e um destinatário prioritário – os pobres (cf. EG 46, 48).

Itacir Brassiani msf

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (7)

Como o negociante de pérolas... (Mt 13,44)
Não deixemos que nos roubem a alegria do Evangelho!
Tanto o encontro pessoal com Deus em Jesus Cristo como a vinda gratuita do seu reino são motivos de intensa alegria. Que Deus reine, isso é motivo de alegria! Maria já anunciava isso no seu cântico profético diante de uma Isabel profundamente comovida.
O reino dos céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o descobre e o esconde de novo. Cheio de alegria, ele vai, vende tudo o que possui e compra esse campo” (Mt 13,44). Na sua pobreza – ou seria generosa gratidão?! – este homem anônimo decide vender tudo para ficar com a única coisa que lhe parece verdadeiramente preciosa, mesmo que sua existência e seu valor seja escondido ou irrelevante aos olhos de muitos... A descoberta desestabiliza a vida desse personagem sem nome. O tesouro lhe parece tão valioso que ele não receia fazer coisas novas, arriscadas e dispendiosas para adquiri-lo. E nisso experimenta a alegria dos magos ao encontrar Jesus (Mt 2,10) e a alegria de quem acolhe e entende a Palavra de Jesus (Mt 13,20). A descoberta do Reino é uma notícia boa que traz profunda alegria e requer a relativização de todas as demais prioridades.
O Papa Francisco insiste que “a alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar” (EG 84). E pede: “Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!” (EG 83), pois somos tentados por uma espécie de “psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos em múmias de museu”; por um “pragmatismo cinzento da vida cotidiana” que, sob uma aparente normalidade, deteriora a fé e a transforma em mesquinhez” (idem). Assim, desiludidos com a realidade, com a Igreja e consigo mesmos, os cristãos acabam apegando-se a uma “tristeza melosa, sem esperança”.
Já no início da sua Exortação, o Papa Bergoglio assinala que “o grande risco do mundo atual, com sua múltipla a avassaladora oferta de consumo, é a tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, não se houve a voz de Deus, não se goza da doce alegria do seu amor nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem” (EG 2).
Para o Papa Francisco, uma das tentações mais sérias que sufocam o fervor e a ousadia é a sensação de derrota que nos transforma em pessoas pessimistas lamurientas e cristãos desencantados com cara azeda (cf. EG 85). Ninguém vai à luta se a considera de antemão uma causa perdida. E o derrotismo é irmão da tentação de separar prematuramente o trigo do joio, com todos os riscos que isso comporta... E podemos acabar transformando o confessionário, lugar por excelência da misericórdia, em uma espécie de câmara de tortura (cf. EG 44).
Uma vida eclesial missionária deve ser capaz de evitar a obsessão “pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir” (EG 35). Seu anúncio deve se concentrar naquilo que é “mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário”, pois mesmo procedendo da mesma fonte divina, algumas verdades são mais importantes porque exprimem mais diretamente o coração do Evangelho (idem, 36). Ademais, o anúncio deve acompanhar com paciência e misericórdia as etapas de crescimento das pessoas.
Precisamos salvar o núcleo gracioso e libertador da novidade cristã. “O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não há de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão a serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso maior perigo; é que então não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas” (EG 39). Quando nosso anúncio é fiel ao Evangelho, manifesta-se claramente a centralidade de algumas verdades e que a moral cristã não é uma ética estoica, é mais que uma ascese, que uma filosofia prática ou que um catálogo de pecados e proibições.
Mesmo com o risco de se alongar demais, é importante mencionar também a doença espiritual que o Papa Francisco chama de “mundanismo espiritual” (cf. EG 93-97). Esta doença se mostra em muitas atitudes aparentemente opostas: cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, sem a preocupação pela encarnação do Evangelho no povo e na história; fascínio pela ostentação de conquistas sociais e políticas; vanglória ligada a gestão de assuntos práticos e atração por dinâmicas de autoestima e realização autorreferencial; vida social plena de viagens, reuniões, jantares e recepções; funcionalismo empresarial carregado de estatísticas, planos e avaliações que não beneficiam o povo mas a organização eclesial. “Em qualquer um dos casos, não traz o selo do Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio de uma autocomplacência egocêntrica” (RG 95).
Esta doença se esconde por trás de aparências de religiosidade e de amor à Igreja, mas não passa de busca de bem-estar pessoal e de glória humana, de defesa dos próprios interesses. Este mundanismo espiritual se alimenta, por um lado, do fascínio por uma fé fechada no subjetivismo, de conhecimentos e experiências que confortam e animam, mas acaba enclausurando a pessoa nos próprios pensamentos e sentimentos; por outro lado, se enraíza num certo imanentismo antropocêntrico, confia unicamente nas próprias força e leva ao sentimento de superioridade por cumprir determinadas normas ou por ser fiel a normas de um catolicismo do passado.
É neste húmus que se nutre a “vanglória de quantos se contentam em ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados antes que simples soldados de um batalhão que continua a lutar” (EG 96). Tais cristãos olham os demais de cima e de longe, rejeitam a profecia dos irmãos, desqualificam quem os questiona, ressaltam os erros alheios e vivem obcecados pela aparência. “É uma tremenda corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais e pastorais!” (EG 96) Eles trocaram o tesouro precioso por bolsas corroídas pelas traças!
Mas o Papa Francisco sublinha que os males do mundo, e mesmo os da Igreja, “não deveriam servir como desculpa para reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer. (...) A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser transformada, e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio.” (EG, 84). Para ele, a cura deste mundanismo espiritual asfixiante vem da abertura ao Espírito Santo, que nos liberta da centração em nós mesmos, do esconderijo numa aparência religiosa vazia de Deus (cf. EG 97). Trata-se de trocar tudo pela despojada alegria de ter encontrado o precioso tesouro do Evangelho de Deus!
Segundo a CNBB, no contexto brasileiro o que preocupa é o surgimento de “grupos fechados em seus ideais, sem comunhão com a diocese e resistentes ao diálogo com o mundo”. Multiplicam-se pequenas associações de interesses religiosos particulares que, frequentemente, “promovem certo fundamentalismo católico”, comprometendo o conceito de Igreja-povo de Deus (Doc. 100, 34). Mas há também o problema de paróquias ou capelas que funcionam mais como instituição que como comunidade de discípulos de Jesus Cristo (idem, 35).
O fato é que o excessivo cuidado com as estruturas nos levou a formas de ativismo estéril. “A primazia do fazer ofuscou o ser cristão. Há muita energia desperdiçada em manter estruturas que não respondem mais às inquietações atuais (Idem, 45). Mas também aqui poderíamos aplicar a advertência de Francisco: a missão não é um negócio, nem uma atividade empresarial! (cf. EG 279).
Por isso, sem negar o valor do que já foi realizado, a CNBB diz que precisamos aprender e a agir e responder às inquietações novas. Isso pode significar: tornar as estruturas paroquiais mais missionárias; tornar a pastoral ordinária mais comunicativa e aberta; colocar os agentes pastorais em atitude constante de saída; e assim favorecer uma resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece sua amizade (cf. idem, 46; EG 27).
Daí a necessidade de redescobrir, degustar e proclamar a alegria original e tremendamente libertadora do Evangelho. E isso antes de tudo porque Deus não se cansa de nos perdoar, carrega-nos nos seus ombros. “Ninguém nos pode tirar a dignidade que esse amor infinito e inabalável nos confere” (EG 3). E esse amor é salvífico! O AT preanuncia a alegria da salvação, que seria gratuita e plena em Jesus Cristo. “Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo... Exultai de alegria!” (Is 9,2; 12,6) “Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece dos desamparados” (Is 49,13). “Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti...” (Zc 9,9).
Esta alegria do Evangelho marca os primeiros capítulos do evangelho de Lucas. “Não tenha medo, Zacarias!... Você terá alegria e felicidade, e muitos se alegrarão com o nascimento dele” (Lc 1,13-14). “Alegre-se, cheia de graça: o Senhor está com você!” (Lc 1,28). “Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, o bebê pulou de alegria em seu ventre” (Lc 1,41). “Meu espírito se alegra em Deus, meu salvador...” (Lc 1,47). “Os vizinhos e parentes ouviram dizer que o Senhor havia tido misericórdia para com Isabel, e se alegraram com ela” (Lc 1,58). “Não tenham medo! Pois eis que lhes anuncio a boa notícia, uma grande alegria para todo o povo...” (Lc 2,10). Mas é também a alegria que enche a terra e o céu pela acolhida que Deus dispensa aos pecadores e excluídos. “Alegrem-se comigo, porque encontrei minha ovelha perdida... Haverá mais alegria no céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15,6-7). “Alegrem-se comigo, porque encontrei a moeda que eu tinha perdido... Da mesma forma, há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte” (Lc 15,9-10). “Mas era preciso festejar e se alegrar, porque este seu irmão estava morto e voltou a viver, estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,32).
A alegria do Evangelho é verdadeira e duradoura, mas discreta e serana. “É a alegria vivida no meio das pequenas coisas da vida cotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai” (EG 4). Como o próprio Jesus, que estremece de alegria no Espírito Santo ao contemplar a dedicação apostólica dos setenta e dois discípulos (cf. Lc 10,21). É uma alegria que brota da capacidade de ser amigo, que tem força para vencer a tristeza, uma alegria que ninguém pode roubar, nem mesmo a perseguição (cf. Jo 15,11; 16,20-22; At 13,52). Não podemos ser cristãos que vivem uma quaresma sem fim e sem páscoa! (cf. EG 6).
Os bispos do Brasil ensinam que a conversão pastoral da paróquia passa pela volta às fontes bíblicas (Doc. 100, 62), e a Sagrada Escritura testemunha que as primeiras comunidades cristãs “tomavam o alimento com alegria” (At 2,46) e que havia grande alegria por onde os discípulos passavam (At 8,8). Com Jesus, eles aprenderam um novo jeito de viver: comunhão com ele; igualdade de todos em dignidade; partilha de bens; amizade fraterna; serviço recíproco e aos mais pobres; acolhida e perdão ilimitado; oração comum; alegria, mesmo em meio à perseguição (cf. Doc. 100, 74).
Para a missão, os discípulos receberam de Jesus quatro recomendações fundamentais: hospitalidade; partilha; comunhão de mesa; acolhida aos excluídos (cf. Doc. 100, 75). “Estas recomendações sustentavam a vida dos missionários do Evangelho. Tratava-se de uma nova forma de ser e agir numa sociedade marcada por grandes contrastes” (Doc. 100, 76). E as comunidades que nasceram dessa missão tinham quatro elementos distintivos: o ensinamento dos apóstolos (Palavra); a comunhão fraterna (Comunhão); a fração do pão (Eucaristia); e a oração (Liturgia).
Itacir Brassiani msf

domingo, 27 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (6)

Como as crianças que brincam na praça (cf. Lc 7,31-36)
Caminhemos e dancemos ao ritmo do Evangelho
Somos o que somos, estamos onde estamos, fazemos o que fazemos “por causa da Palavra”, em atenção à Palavra de Jesus que nos manda ir mais a fundo... E é por isso também que nos reunimos para os “exercícios espirituais”, apesar de tantas atividades e urgências. Quremos caminhar sob o olhar de Jesus, escutar e acolher sua Palavra, guardá-la e ruminá-la nas nossas entranhas, anunciá-la e testemunhá-la, viver ao ritmo da Boa Notícia...
Na bela e instigante passagem do capítulo sete de Lucas, Jesus se lamenta porque alguns discípulos o escutam mas não são consequentes, se fecham e não se movem. Logo no início da sua missão, assim que foi informado de que João Batista estava com dificuldades de reconhecer seu messianismo, Jesus enfatiza e elogia a profecia de João, e desabafa: “Com quem eu vou comparar os homens desta geração? Com quem se parecem eles? São como crianças que se sentam nas praças, e se dirigem aos colegas dizendo: ‘Tocamos flauta e vocês não dançaram; cantamos música triste e vocês não choraram” (Lc 7,31-36).
Com essa parábola popular Jesus pretende sacudir os fariseus e doutores da lei, fazê-los sair do fechamento doutrinal e movê-los numa outra direção, diversa daquela que estava esclerosando a cabeça deles. Esta é uma doença que costuma atacar as pessoas que ocupam altos escalões das instituições religiosas e doutrinárias. A propósito deste desvio psico-religioso, Madeleine Debbrel escreveu: “Senhor, penso que estás cansado de gente que sempre diz te servir, mas assume ares de capitão; de gente que diz te conhecer, mas tem postura de professor; de gente que pretende te encontrar praticando estritas regras esportivas; de gente que pensa te amar como se ama um velho casal... E no dia que desejavas algo diferente, inventaste São Francisco, e fizeste dela a tua imagem. Precisamos permitir que nos reinventes, a fim de que sejamos gente alegre, gente que dança a vida em par contigo.”
Certo, mas não esqueçamos que não é unicamente em Francisco que reencontramos a Palavra na sua original frescura. Cada santo ou santa é uma espécie de raio de luz que brota da Palavra de Deus (cf. VD, 48), uma hermnêutica da escritura da qual não podemos prescindir, de modo que entrar na escola deles “é um caminho seguro para uma viva e eficaz hermenêutica da Palavra” (VD, 49). A interpretação mais profunda da Escritura provém das pessoas que se deixaram plasmar pela Palavra de Deus mediante sua leitura, escuta e meditação assídua (cf. VD, 48).
Penso que a ênfase exagerada na dimensão ética do cristianismo, junto com os resíduos de uma velha tendência perfeccionista e de um legalismo que pensávamos ter superado, podem ainda estar mais que latentes em secretos ângulos da nossa vida e nos fazem pessoas rígidas e privadas de verdadeira e intensa alegria. Às vezes até me pergunto se, não conseguindo experimentar a verdadeira alegria, não nos resignamos a ser apenas cáusticos gozadores... Na verdade, sentimo-nos mais à vontade com os imperativos que com os indicativos... E a seriedade da austeridade pode acabar ressecando a alegre e viva Boa Notícia do Evangelho... Precisamos urgentemente aprender a conjugar equilibradamente ética e estética, contemplação e ação, gratuidade e eficácia, indicativo e imperativo, presente e futuro.
Na vida religiosa e pastoral, os convites à radicalidade e à conversão apresentados no modo imperativo podem produzir um efeito contrário daquele que desejamos, e nós acabamos transformados em pessoas frustradas por não conseguirmos atingir metas tão altas. Ou então, para continuar na senda da parábola em questão, em pessoas tímidas e enrijecidas, que permanecem sentadas nos bancos da praça, surdas e incapazes de captar a música que quer nos envolver e mover por seu ritmo, resistentes a entrar num movimento que não sabemos para onde vai nos levar...
O que aconteceu com os vinte séculos de pregação, catequese e pastoral para que tenha ficado tão forte a idéia de que é preciso renunciar, fazer sacrifícios, ser austero, abster-se, cobrir-se de cinzas e voltar-se a Deus implorando: “Não permaneças eternamente irado conosco!...” Parece que a alegria deve ficar nas margens da vida, como se fosse uma virtude de menor importância ou vergonhosa, da qual poderíamos tranquilamente prescindir... Há cristãos que, como diz o Papa Francisco, parecem ter escolhido viver uma quaresma sem páscoa e mostram sempre uma cara de funeral... (cf. EG 6; 10).
Pergunto-me sinceramente: por que nos dizemos que convocados e animados pelo Evangelho e nos deixamos sufocar por uma inflação de palavras ditas, escritas, pregadas, proclamadas, comentadas e explicadas? Por que não voltar à simples melodia dos gestos silenciosos, que realmente valem e estão na origem da Palavra que liberta? Há hoje tanta gente que caminha saturada, cansada, cética e impermeável a tantos discursos, documentos, exortações, sermões, projetos, declarações... Se a nossa saúde psíquica e espiritual dependesse do equilíbrio e da justa relação entre as palavras que pronunciamos e a afetiva mudança que provocam no nosso modo de viver, seria necessário reconhecer que o nosso quadro pode ser diagnosticado como catastrófico ou esquisofrênico...
E que tal se ousássemos tomar uma decisão radical: submetermo-nos (um dia, uma semana, um mês...) à dieta do silêncio? Ou seja: substituir as palavras que pronunciamos ou escrevemos ordinariamente pela imitação concreta de Jesus, que passou pelo mundo fazendo o bem, e fez desse modo de viver a dança com a qual respondeu ao ritmo que lhe dava o Pai... Cada um de nós deveria traduzir esse “passou fazendo o bem” (esse passeio benfeitor) nas nossas circunstâncias concretas e fazer o possível para que todo o nosso corpo – o olhar, as mãos, os pés, a escuta, toda a nossa capacidade expressiva e operativa – substitua aquelas palavras que tantas vezes acabam substituindo a nua simplicidade do amor e do serviço gratuito e generoso.
E agora imaginemos que uma daquelas crianças da praça, cansada de ver imóveis, atônitos e resistentes à dança, como seus colegas, toma a palavra e se dirige a nós...
“Vocês não lembram que na vida de Jesus tudo começou com aquele hino que os pastores escutaram em Belém: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados”? Aquele foi o primeiro som que seus ouvidos escutaram, e se transformou na abertura da sinfonia de toda a sua existência. Foi o som da flauta que ritmou a dança da sua vida... O mestre de vocês não permaneceu rígido e imóvel. Aquele hino o inebriou totalmente, levou-o para fora de si mesmo. E desde então ele nunca mais conseguiu viver senão “fora de si”, “alienado”, “alterado”, incapaz de outro ritmo senão esse de dar-se em excesso, da generosidade e da superação das fronteiras e limites. A Palavra que cantava a glória de Deus e a paz entre os homens, escutada naquela noite da boca dos anjos, apaixonou Jesus de tal modo e o invadiu com tal profundidade que o fez viver definitivamente “des-centrado”, “des-encardinado”, porque seu centro e seu eixo foram sempre seu Pai e seus irmãos.”
“Recordem aquilo que se disse dele: “Ele está fora de si...” (Mc 3,21). Com certeza, eles tinham razão, porque seu amor não tinha senso nem medida. O que ele diria ao vê-los tão rígidos e zelosos da vossa prudência, dos vossos compromissos tão razoáveis e dos vossos cálculos tão equilibrados? Ele iniciou a formação dos seus discípulos levando-os a uma festa de casamento e a trilhar estradas e estradas, e não a uma escola da lei, ao deserto ou ao seminário...”
Aproximem-se da sua Palavra, façam silêncio e escutem-na, porque somente quando os ouvidos captaram a música é que os pés podem acompanhar o ritmo. Deixem que a melodia da sua flauta chegue até vocês. “Glória a Deus e paz na terra!” Deixem-se conduzir e guiar por esta melodia. Cantem-na, sussurem-na no segredo do coração, ruminem-na demoradamente. E, se for possível, dancem no ritmo dela, mesmo que inicalmente isso pareça uma loucura. Não esqueçam que a Palavra de Deus é como uma sinfonia. Ela é única, mas se exprime em diversos modos. É um cântico em diversas vozes (cf. VD, 7).”
A Palavra de Deus é fonte segura de alegria, é boa notícia. Ela suscita uma alegria verdadeira, não superficial ou efêmera (cf. VD, 123). Pois nós podemos muito bem organizar uma festa, inclusive com sucesso, mas não podemos programar a alegria! Não esqueçamos que Maria é feliz porque acreditou: acolheu o Verbo de Deus no seu ventre e o doou ao mundo. “A alegria recebida da Palavra de Deus estende-se a todos aqueles que por ela se deixam transformar” (VD, 124).
A alegria verdadeira e profunda não pode ser induzida ou provocada artificialmente pelo alcool, pelo sucesso, pelos cultos “turbinados”. A alegria cristã não é a alegria cínica ou de fachada, promovida e vendida nas festas e banquetes que ignoram os lázaros que ficam do lado de fora. A alegria evangélica é aquela que experimentamos na “festa dos pequenos”, na festa espontânea e inocente daqueles que se encontram com a Boa Notícia do Reino e fazem dela a luz do próprio olhar, a regra suprema da vida e o ritmo dos seus passos e da sua dança. Caminhar e dançar ao ritmo da Palavra de Deus, da Boa Notícia aos pobres, significa fazer dela o nosso alimento cotidiano, o critério que orienta e julga nossas opções, o princípio dinamizador das nossas prédicas e práticas.
Itacir Brassiani msf

(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)

Alimentando-nos da Palavra de Deus (5)

Como o administrador esperto (cf. Lc 16,1-9)
Sejamos espertos e diligentes em fazer amigos
Em Lucas 16,1-9 temos uma história singular na qual, diversamente daquelas mais apreciadas nos ambiantes devotos, o personagem proposto como modelo inspirador se caracteriza pelo desperdício e pela desonestidade. Jesus prescinde claramente de qualquer juízo sobre sua conduta e se concentra unicamente naquilo que lhe parece digno de admiração e imitação: aquele homem se mostra muito esperto e inteligente na conquista de amigos, mesmo lançando mão de meios ilícitos. Aqui Jesus não nos convida à simplicidade das pombas mas à astúcia das serpentes... E a inteligência se evidencia no uso de bens, e a burrice se mostra no contrário.
E se ousássemos dar a este administrador o cargo de conselheiro especial em nossas paróquias, dioceses, comunidades ou congregações?! Se o convidássemos como confessor ou orientador espiritual? Certamente ele nos diria algumas coisas interessantes...
Para começar, ele nos diria que o bom andamento das nossas intituições não depende apenas de “questões espirituais”, mas também do uso que fazemos dos recursos materiais concretos dos quais dispomos. E para nos convencer através da Palavra, talvez ele nos oferecesse uma lectio divina muito particular desta parábola, sublinhando que quem nos dá acesso às “moradas eternas” são os amigos que fazemos com os nossos bens.
Dir-nos-ia que o ingresso na festa do esposo que chega depende da reserva de óleo dos discípulos prudentes. Ensinar-nos-ia que a participação na alegria do Senhor que pede conta dos talentos depende do modo como os servos os empregaram, arriscando a si mesmos. Insistiria também que o lugar à direita do juiz é reservado àqueles que repartiram o pão, a água, a casa e as vestes com os seus irmãos menores.
E talvez nos recordaria que que no Evangelho não encontramos uma orientação para não nos ocuparmos do dinheiro, mas para relacionarmo-nos com ele corretamente, com critérios evangélicos. E talvez terminasse assim: “Não pensem que a espiritualidade consista em desinteressar-se das coisas materiais ou no refúgio numa esfera separada das coisas da terra. O mundo inteiro é confiado ao vosso talento, habilidade e competência...” Talvez isso tudo nos levasse a deixar a sala pensativos, perguntando-nos como poderemos ser espertos em fazer amigos...
De fato, como religiosos fizemos muitos progressos organizativos e pastorais, mas ainda conservamos resquícios e entulhos de antigos messianismos e iluminismos, e discretas (mas nem tanto!) atitudes de superioridade em relação ao clero, aos leigos, às demais igrejas. E somos mais habituados a dar que a receber, a ensinar que aprender, a falar que escutar. Olhamos os outros mais como filhos e filhas que como verdadeiros irmãos e irmãs, amigos e amigas com quem se pode manter relações de reciprocidade. “Fazer amigos” não faz parte das nossas prioridades de vida... Somos formados para ser agentes e professores, mestres e pregadores, formadores e conselheiros... Mas a Palavra de Deus nos pede para fazer amigos, nos convida a ser condiscípulos ao lado de outros na comunidade cristã, a escutá-los não como especialistas mas como pessoas de coração humilde e aberto...
O melhor curso de introdução à Bíblia que podemos fazer nos é oferecido pelo Evangelho que nos inicia na arte da escuta de Jesus, no seu modo de reconhecer “o dialeto” ou “a gramtática” do Pai nas pessoas que não significam nada para o mundo. Escutando a voz silenciosa dessas pessoas, Jesus se familiarizou com a linguagem dos sinais mediante a qual Deus se comunica com ele, e sintonizou com a sua frequência:
·      Percebeu que o Pai lhe falava e chamava através daquela mulher encurvada, e foi em seu socorro (Lc 13,10-17);
·      Escutou o grito do Pai na dor da mulher que sofria de hemorragia, e fez fluir em direção a ela a força restauradora que vem de Deus pai (Mc 5,25-34);
·      Encheu-se de alegria ao escutar no relato missionário dos discípulos os sinais da preferência de Deus pelos pequenos (Lc 10,21-22);
·      Descobriu na súplica da mulher sírio-fenícia que o Pai lhe pedia para ir além das ovelhas perdidas do povo de Israel, e obedeceu-lhe curando a menina (Mt 15,21-28);
·      Deixou-se atrair pelo chamado daquele personagem singular que subiu numa árvore para vê-lo, e se auto-convidou para visitá-lo (Lc 19,1-10)...
Contemplando os encontros de Jesus com o povo, aprendemos pouco a pouco o que significa conhecer a Escritura e alimentar-se da Palavra. Nesses encontros, Jesus se comporta como um autêntico escriba: ele não se dedica a pesquisar e destrinchar velhos manuscritos, mas a traduzir, decodificar, discernir, intuir e compreender a Palavra de Deus que lhe chega mediante os clamores silenciosos, as súplicas, a gratidão ou os lamentos que brotam do ventre das pessoas que se aproximam dele. Sua missão consiste em ser para elas alguém capaz de compreendê-las e responder-lhes, em ser um hermeneuta sábio e capaz de interpretar aquilo que elas sequer eram capazes de expressar claramente...
Se desejamos ser recebidos “nas moradas eternas” junto com o administrador esperto, precisamos começar a ser desde agora especialistas em escuta e humanidade, peritos no olhar e na atenção seletiva para fazer muitos amigos nos lugares onde tanta gente “sem eira nem beira” pode nos ensinar a balbuciar a linguagem secreta do Evangelho. São eles que nos ajudam a escutar a Palavra, porque dela são os portadores anônimos. E então escutaremos uma versão maravilhosa e adaptada de Mateus 25,31-46: “Vinde, benditos do meu Pai, porque me descobristes naqueles que não tinham voz e me escutates; porque vos falei através de quem não tinha palavra nem direitos, e me respondestes...”
Isso tudo não é exagero militante ou espiritualista! O magistério da Igreja reafirmou recentemente que, embora a Sagrada Escritura contenha de fato a Palavra divina, esta precede e excede aquela (cf. VD, 17); que a Palavra divina se exprime (no presente!) verdadeiramente nas palavras humanas (cf. VD, 11); que a Bíblia é precisamente a voz do povo de Deus peregrino, e é somente no interior da fé deste povo que estamos em condições de entender a Sagrada Escritura (cf. VD, 30). Por isso, é necessário respeitar a natureza específica do texto sagrado e evitar leituras arbitrárias, subjetivantes ou espiritualizantes.
Verbum Domini afirma também que a revelação está “profundamente radicada na história” e representa várias e sucessivas etapas da educação do povo de Deus (cf. VD, 42), e que “o sujeito vivo da Escritura é o povo de Deus”. E é por isso que a Bíblia deve ser lida comunitariamente, na perspectiva do povo, que é seu sujeito original e permanente. “A Palavra está sempre viva no sujeito vivo” (cf. VD, 86), e não no texto frio ou nas explicações doutrinárias!
Permanecendo verdade que precisamos ler e interpretar a Palavra de Deus em comunhão com a Igreja (com todas as testemunhas desta Palavra, começando pelos primeiros pais e chegando aos santos e santas de hoje e ao Magistério eclesial), é também certo que “os pastores são chamados a ouvir os pobres, a aprender deles, a guiá-los na sua fé e a motivá-los para serem construtores da própria história (cf. VD, 107) social e eclesial. Sim, ouvir os pobres, porque neles ressoa a Palavra viva de Deus!

Finalmente, Santo Agostinho nos recorda: a plenitude da lei e das Escrituras é a vivência do amor. “Por isso, quem julga ter compreendido as escrituras ou uma parte delas mas não se empenha a construir, através da sua inteligência, este duplo amor a Deus e ao próximo, demonstra que ainda não as compreendeu” (VD, 103). Fazer amigos, construir fraternidade, reunir todos os homens e mulheres na única família do Pai ou num povo unido e solidário: eis a urgência e a finalidade das Escrituras, mas também a prova de que a compreendemos realmente!
Itacir Brassiani msf
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

17° Domingo do Tempo Comum (Ano A - 2014)

Onde está nosso tesouro, aí está também nosso coração!
Todos já fizemos a experiência do risco. Dando por descontado que viver é em si mesmo um perigo, sabemos o risco que é escolher uma vocação, iniciar um curso superior, investir numa atividade nova, apostar todas as cartas num determinado relacionamento afetivo. Quanto mais precioso nos parece o objeto, maior é a disposição para o sacrifício e menores são ponderações e receios. Para Jesus de Nazaré, a alegria contagiante de um ser humano que recupera a cidadania representa um tesouro precioso e impagável, diante do qual tudo o resto parece lixo.
Nos últimos domingos, Jesus vem nos falando do mistério do Reino de Deus. O sonho de Deus é semelhante a um semeador que, mesmo sabendo que parte da semente se perderá, não deixa de semear. É comparável também a um plantador que, apesar de ter usado boa semente, é surpreendido pelo o capim que cresce junto com o trigo. E pode também ser comparado à semente de mostarda: apesar de sua pequenez, está na origem de um apreciável arbusto. Seu dinamismo é comparável enfim ao fermento que desaparece na farinha e faz crescer a massa.
Jesus nos apresenta hoje a imagem do trabalhador rural que encontra um precioso tesouro no campo do seu patrão. Ao encontrar o tesouro, o homem é tomado pela surpresa, pois não o procurava. Então ele o mantém escondido e, sem dizer nada a ninguém e cheio de alegria, se desfaz de tudo o que tem e compra o campo no qual encontrou o tesouro. Para um simples empregado diarista, este é um negócio ousado e arriscado, que só se justifica pelo valor que o tesouro tem ao seus olhos. Ele vende, arrisca ou perde tudo para ficar com o único bem que vale a pena.
Um segundo personagem que Jesus nos apresenta como modelo é um comerciante de pérolas preciosas. Este sim está empenhado na procura de uma pérola de grande valor e, quando a encontra, vende todos os seus bens e compra tal pérola. Este parece ser um negócio um pouco mais seguro, mas é comparável ao anterior no que diz respeito à necessidade de vender tudo para realizá-lo. Em ambos os casos, a experiência de encontrar algo precioso desestabiliza o equilíbrio dos negócios, relativiza as propriedades e chama a arriscar.
Eis o desafio para os discípulos e discípulas de Jesus: tendo descoberto a preciosidade do Reino de Deus – o valor irredutível e impagável da liberdade e da vida digna de cada pessoa em sua singularidade, o horizonte deslumbrante de um mundo de irmãos e irmãs de fato – quem segue Jesus de Nazaré é impulsionado a hipotecar ou subordinar tudo o mais – reputação, carreira, bem-estar individual e até família e religião – em função desse bem maior. Deus não tem tempo para tratar de pequenos negócios conosco. É tudo ou nada. E já!
Nosso batismo pressupõe esta opção de risco. Parece que poucas pessoas têm clara consciência disso, pois se não for assim, como explicar o descompromisso com que muitas o celebram? Dá vontade de aumentar as exigências de preparação ou até interditar o batismo a quem não acorda para o compromisso que ele implica. Mas o próprio Jesus ensina que o Reino de Deus é também semelhante a uma rede lançada ao mar, que recolhe peixes bons e peixes de qualidade questionável... E nós precisamos prestar atenção à sabedoria dos pescadores!
Um pescador experiente sabe que não é sensato esperar que a rede recolha apenas peixes bons e apropriados para o consumo e o comércio. E o trabalho árduo e criterioso de separar peixes bons e peixes ruins não pode ser feito durante a pesca e em alto mar, pois vem depois. Mas não tiremos conclusões apressadas e superficiais. Estre trabalho judicial não é de nossa responsabilidade, nem mesmo das nossas Igrejas. Mais que pescadores, somos peixes, e não estamos seguros da nossa própria qualidade! Deixemos ao fim dos tempos e aos anjos de Deus esta difícil tarefa de separar.
Deus Pai e Mãe, amante das criaturas e condutor da história: teu projeto de comunhão solidária de todas as criaturas é o presente mais precioso e a herança mais comprometedora que poderias nos entregar. Teu filho é o verdadeiro doutor da lei, aquele que aprendeu e ensinou o mistério do teu Reino: ele sabe vasculhar o baú da história e tirar dele coisas novas e velhas, e nos convida a fazer o mesmo. Dá-nos, Senhor, a alegre ousadia de investir com imensa alegria tudo o que somos e temos neste sonho de igualdade e libertação. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

(1° Livro dos Reis 3,5-12 * Salmo 118 (119) * Carta aos Romanos 8,28-30 * Mateus 13,44-52)

Apelo aos que continuam humanos

Por favor, nos ajudem a pôr fim a esse massacre!
Queridos amigos! A noite passada foi muito dura para todos nós aqui. A "invasão por terra" em Gaza provocou dezenas de mortos e um montão de mutilados, feridos, ensanguentados e moribundos. Todos palestinos, de todas as idades. Todos civis e que nada têm a ver com essa guerra fraticida.
Os enfermeiros e voluntários/as são verdadeiros herois que estão passando com as ambulâncias em meio aos escombros para ver se conseguem salvar ainda algumas vítimas. Estão trabalhando todos 24 horas por dia, quase caindo de cansaço e sob o peso de um trabalho desumano, além de não receberem nenhum pagamento. Há quatro meses, o hospital Shifa não tem dinheiro para pagar a ninguém. Assim mesmo, os funcionários estão correndo atrás de sangue e de leitos para socorrer esses seres humanos que são mortos pelo Estado de Israel como se fossem mosquitos. E são seres humanos...
Como médico, só posso testemunhar minha profunda admiração pelos voluntários e minha proximidade espiritual dessa resistência ("sumud") palestina. Verdadeiros mártires que nos dão força, mesmo se somente em vê-los, tenho vontade de gritar de dor, de chorar. Muitos pais, agarrados a uma criança, morta ou ferida, coberta de sangue, para lhe proteger em um abraço sem fim, mas nós temos de lhes dizer: nos entreguem suas crianças. Isos é perigoso. Elas e vocês podem morrer.
E de repente, um barulho, uma explosão, mais cinzas... Aí vem outras dezenas de ensanguentados e feridos. Verdadeiro lago de sangue no nosso átrio de emergência. São mais de cem casos chegados nessa noite ao hospital e aqui já não temos eletricidade, nem água, nem material de curativo, remedios, nada. E o próprio hospital teve uma ala bombardeada e está em escombros. 
É difícil acreditar que tudo isso está acontecendo apenas para que o Estado de Israel possa firmar sua ocupação militar nos territórios palestinos, sob qualquer pretexto, como esse da morte de três adolescentes judeus. Às vezes, custa a acreditar que, em pleno século XXI, uma coisa dessas possa estar acontecendo.
Preciso parar essa mensagem porque exatamente nesse minuto, escuto a orquestra macabra da máquina de guerra israelita, com sua artilharia atirando diretamente de navios no porto sobre as pessoas que passam nas ruas, os F16 norteamericanos que rugem sobre o nosso céu e os aviões não pilotados (Zenanis) que passam muito baixo quase sobre nossas cabeças. Tudo pago pelos Estados Unidos e países ocidentais que financiam tudo isso.  
Convido o presidente dos Estados Unidos e as pessoas que ainda acham que o Estado de Israel possa ter alguma razão de vir aqui passar uma noite no nosso hospital - uma noite no Shifa Hospital basta. 
Por favor, nos ajudem a pôr fim a esse massacre!  Se vocês se omitem e fazem de conta de não saberem, serão cúmplices diante de Deus de tanto sangue derramado. Em nome do Deus de todas as crenças, façam o que puderem para parar esse massacre. Isso não pode continuar.
Dr. Mads Gilbert  (médico voluntário no Hospital de Gaza),

norueguês sem religião, sem partido político, mas com humanidade no coração.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Estórias do Rubem Alves

O travesti e os religiosos
Daquele dia em diante, Mestre Benjamim parou de esperar que lhe fizessem perguntas. Ele se assentava e a cada noite contava uma das parábolas do Senhor das Estórias.
Um homem perguntou ao Senhor das Estórias sobre os mandamentos. Ele respondeu: ‘O primeiro mandamento é que devemos amar a Deus mais do que amamos as coisas que possuímos. E o segundo mandamento é que devemos amar o nosso próximo com o mesmo amor que temos para conosco mesmos.’ E “quem é o meu próximo?”, o homem perguntou. E foi essa a estória que ele contou:
Era uma vez um garçom que, depois de uma noite de trabalho, voltava para a sua casa com o pouco dinheiro que havia recebido como gorjetas para sustentar a sua família.
Eram quatro horas da madrugada, as ruas estavam vazias e escuras. Valendo-se da escuridão, dois ladrões atacaram o garçom e, além de roubarem o seu dinheiro, bateram nele, deixando-o como morto na calçada.
O tempo passou. O sol anunciou a manhã. Passava por aquela rua, no seu carro, um sacerdote que se dirigia à igreja para celebrar a primeira missa. Vendo o homem caído, ele se lamentou e disse: ‘Se não fosse pela missa, eu pararia para ajudá-lo’. Rezou um Padre-Nosso e uma Ave-Maria em intenção do ferido e foi cumprir suas obrigações religiosas.
Logo depois passava por aquela mesma rua, no seu carro, um pastor evangélico que se dirigia para sua igreja a fim de dirigir uma reunião de adoração. Ao ver o ferido ele perguntou: ‘Meu Deus, que terá feito este homem para que o Diabo assim o castigasse?’. Premido pelas suas obrigações religiosas ele de longe executou gestos de exorcismo e continuou na direção de sua igreja.
Levantando o sol, manhã clara, passava por ali um travesti, em sua lambreta, vindo de uma noite de farras. Ao ver o homem caído, o seu coração se comoveu. Parou, colocou o homem na garupa e levou-o a um hospital. Lá, tirou do seu bolso todo o dinheiro que tinha e disse: ‘Para pagar os gastos que houver...’. E desapareceu antes que a polícia chegasse.
Terminada a parábola, Jesus perguntou aos que o ouviam: ‘Desses três, qual foi aquele que cumpriu o mandamento do amor?’ Todos ficaram em silêncio por saberem a resposta. Mas os religiosos não gostaram...”
Rubem Alves