quarta-feira, 23 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (2)

 Como o porteiro encarregado de vigiar (cf. Mc 13,33-36):
Sejamos especialistas na arte de escutar

Vai acontecer como um  homem que partiu para o estrangeiro. Ele deixou a casa, distribuiu a tarefa a cada um dos empregados, e mandou o porteiro ficar vigiando. Vigiem, portanto...” (Mc 13,33-36).
Comecemos prestando atenção aos dois personagens desta brevíssima parábola. Antes de sair de casa, o dono dá responsabilidades a duas categorias de servidores: confia tarefas gerais aos servos; ao porteiro, pede especificamente que vigie.
O porteiro é ao mesmo tempo um personagem de dentro e de fora da casa, e sua missão tem algo de fronteira, de limiar. Ele pertence à casa e, mesmo não sendo patrão, conhece os tesouros que ela guarda e tem a responsabilidade de protegê-los. Enquanto os demais servos realizam seus trabalhos no interior da casa, o porteiro está na fronteira entre o interior e o exterior, com a atenção voltada para além dos muros, atento para proteger a casa e reconhecer com a vista e com o ouvido os sinais que anunciam o esperado retorno do patrão ou as notícias que alguém pode trazer sobre ele. Ao porteiro cabe abrir ou fechar a porta da casa, permitir ou negar o acesso a ela, e isso é muito importante!
Francisco pede que os cristãos sejam guardiães da beleza e da alegria, e não fiscais do perigo. A Igreja é mais uma enfermaria que uma alfândega! (cf. 47-49; 168). Como religiosos, podemos nos compreender como porteiros, convocados pela Palavra a ser pessoas da porta, pessoas situadas na fronteira entre o dentro e o fora, pessoas que são chamadas a ser especialistas na atenção, na escuta, na acolhida, no olhar amplo e perspicaz. E penso que a nossa atenção fundamental se volta antes de tudo à Palavra viva de Deus. Se ela é o coração da vida cristã (cf. VD, 3), merece esta atenção, inclusive nos pequenos detalhes, como a reverente atenção que dispensamos às migalhas do pão eucarístico... Trata-se de permanecer como que pendentes da Palavra que sai da boca de Deus, alimento que pode saciar nossa fome e sede de vida.
Eis o que diz Bento XVI sobre a nossa relação com a Palavra de Deus: “O Sínodo lembrou em primeiro lugar que esta (a vida consagrada) «nasce da escuta da Palavra de Deus e acolhe o Evangelho como sua norma de vida». Deste modo, viver no seguimento de Cristo casto, pobre e obediente é uma «“exegese” viva da Palavra de Deus». O Espírito Santo, por cuja virtude foi escrita a Bíblia, é o mesmo que ilumina «a Palavra de Deus, com nova luz, para os fundadores e fundadoras. Dela brotou cada um dos carismas e dela cada regra quer ser expressão», dando origem a itinerários de vida cristã marcados pela radicalidade evangélica. [...] A grande tradição monástica sempre teve como fator constitutivo da própria espiritualidade a meditação da Sagrada Escritura, particularmente na forma da lectio divina. De igual modo, hoje, as realidades antigas e novas de especial consagração são chamadas a ser verdadeiras escolas de vida espiritual onde se há-de ler as Escrituras segundo o Espírito Santo na Igreja, de modo que todo o Povo de Deus disso mesmo possa beneficiar. Por isso, o Sínodo recomenda que nunca falte nas comunidades de vida consagrada uma sólida formação para a leitura crente da Bíblia” (VD, 83). Ou seja: somos convidados a cultivar uma profunda familiaridade com a Palavra de Deus!
Mas a tradição cristã ousa proclamar em alto e bom som que a Palavra de Deus se fez carne, pão e cruz. Por isso, a atenção e a sensibilidade devem ser ainda maiores. “A fé apostólica testemunha que a Palavra de Deus se fez um de nós. A Palavra de Deus exprime-se (no presente!) em palavras humanas” (VD, 11). Em Jesus de Nazaré, a Palavra de Deus se fez urgente, breve, concreta, pequena; “tão pequena que cabe numa manjedoura”. Mas, na cruz, “o Verbo emudece, torna-se silêncio de morte, porque se disse até calar, nada retendo do que nos deveria comunicar”. Na cruz a Palavra torna-se gemido, grito lancinante e clamor surdo na garganta da vida. E é concretamente na garganta da humanidade – nas suas dores e angústias, esperanças e alegrias – que Deus continua nos falando com eloquência, insistência e urgência.
Foi escutando os homens e mulheres cansados e abatidos, esquecidos e tratados como ‘últimos’ que Jesus descobriu a Palavra da misericórdia do Pai. Foi na acolhida do espantoso grito do crucificado de Nazaré e dos os crucificados de todos os tempos e latitudes que aos discípulos se abriu a boa notícia do Reino de Deus e da Ressurreição. Por isso, cultivemos a atenção própria dos porteiros, atenção ao que acontece no interior (no nosso interior, no interior da Igreja) e àquilo que acontece além dos muros, no exterior (nosso e da nossa Igreja).
A atenção à interioridade e a espera não são atitudes muito apreciadas na cultura que predomina hoje, inclusive em alguns setores da vida religiosa. Somos mais atraídos pelas “grandes questões” e discussões, pelas atividades e diversões. Também nós corremos o risco de entrar num dinamismo centrífugo, enveredar pelo caminho do barulho, da pressa, da quantidade, do stress. E o resultado nefasto poderá ser uma geração de pessoas adormecidas e surdas, cegas e mudas, absorvidas e inertes, privadas de horizontes significativos, prisioneiras nas redes vazias da banalidade, superficiais e incapazes de viver a interioridade e a compaixão. Como latas que, quanto mais vazia mais barulho faz...
Ninguém de nós está livre dessa pressão do ambiente. A disciplina da atenção e da vigilância nos parece difícil. Somos constantemente assediados por mil convites para que permaneçamos na periferia de nós mesmos, na superfície da onda. Parece que tudo quer nos empurrar para fora, tudo faz pressão para que vivamos distraídos e ambalados por uma música que é tanto mais bela e envolvente quanto mais vem de fora...
Às vezes este tsunami de distração parece ter um bom objetivo. Em vez de sermos posteiros vigilantes que acolhem a Palavra, abandonamos nosso posto de guarda e corremos de curso em curso, de palestra em palestra; acumulamos livros e livros, carroçadas de fotocópias e anotações que jamais iremos ler; gravamos tudo em CDs e pen-drives que dormirão imperturbáveis nalguma gaveta; as palavras se acumulam nas prateleiras do nosso coração e da nossa mente; as idéias, discursos, opiniões, raciocínios e comentários vão ocupando todos os espaços e acabam devorando os ângulos de silêncio e deserto nos quais Deus deseja nos conduzir... E então a sua Palavra permanece no umbral da nossa casa, porque a porta está fechada e ninguém atende Aquele que bate...
Se perdermos ou deixarmos subdesenvolvida a atitude de atenção e se ignorarmos nossos desejos mais profundos, podemos ler muitos textos bíblicos, mas jamais seremos surpreendidos por Deus. A Palavra de Deus se parecerá a um palito de fósforo já riscado, velho e usado... Cresceremos em idéia, mas não em sabedoria. Seremos consultados como especialistas, mas nossas respostas não terão aquela vibração que pulsa atrás das palavras de uma pessoa fascinada e apaixonada. Nessa situação, o que poderia nos dizer e ensinar este porteiro da parábola, homem habituado a vigiar e esperar?
Talvez ele começasse convidando-nos a abrir a porta que nos conecta à nossa própria interioridade; a desobrir novamente que somos habitados e chamados a viver em contato com o nosso coração; a descobrir e dar nome aos medos e desejos que nos habitam. Talvez ele nos tomasse pela mão e nos conduzisse às complexas estradas do mundo, onde homens e mulheres roubados e machucados jazem nas margens; onde samaritanos e cirineus resgatam e sustentam os sutis fios da vida. Em todos os casos, ele não deixaria de pedir que sintonizemos nossos ouvidos à Palavra viva de Deus, aquela Palavra que precede e excede as escrituras... E pediria que não esqueçamos que Jesus nos pede que, quando quisermos rezar, devemos entrar no nosso quarto e fechar a porta (cf. Mt 6,6), porque a iniciativa é sempre daquele que chama e atrai.
Às vezes penso que cultivamos uma secreta mas intensa resistência em aceitar que somos queridos e desejados por Deus, que é ele que desde sempre nos busca... Mas é exatamente sobre isso que os autores bíblicos querem nos convencer, do Gênesis ao Apocalipse. “Em seguida, eles ouviram o Senhor Deus passeando no jardim à brisa do dia. Então o homem e a mulher se esconderam... E o Senhor Javé chamou o homem: “Onde está você?” (Gn 3,8-9). Santo Ambrósio diz que quando tomamos nas mãos e lemos com fé as Sagradas Escrituras, voltamos a passear com Deus no paraíso! “Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele e ele comigo” (Ap 3,20). E nessa ceia, nossos olhos e nossa inteligência podem se abrir, e então nos poderemos reconhecer a presença de Deus nos companheiros de viagem, nos lutadores e crucificados, como ocorreu com os discípulos no caminho de Emaús.
Tanto no texto do Apocalipse como no de Mateus aparece uma porta que separa dois âmbitos: o exterior e o interior. No Apocalipse se fala da “testemunha fiel” que está fora e convida a abrir aquela porta que a separa daquele que está dentro. Em Mateus, Jesus convida a fechar a porta. Mas em ambos os casos, o encontro ocorre no espaço interno, e as imagens que expressam intimidade são a ceia partilhada, a troca de olhares e o diálogo.
A experiência de ser atraído nos ajuda a descobrir que somos habitados, e que quando conseguimos entrar em contato com a nossa interioridade descobrimos que ali Alguém está nos esperando. Não somos vazios; somos habitados! Não chegamos por primeiro, nem estamos sozinhos! “Se alguém me ama, guarda a minha Palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos a ele e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,23). Trata-se da mesma experiência que Jacó fez em Betel: “De fato, Javé está presente neste lugar e eu não sabia disso...” (Gn 28,16).
A partir dessa certeza de fé, podemos perder o medo de entrar em contato com tudo o que é obscuro, inquietante ou desordenado em nós (cf. Rm 8,15-26). O Espírito derramado em nós ajuda na aceitação positiva da nossa fragilidade e dos nossos limites porque, encarregando-se de nós, ajuda-nos a não considerá-los obstáculos entre Deus e nós. E então começamos a alegrarmo-nos por não sermos nem puro espírito nem espíritos puros, mas algo muito melhor: filhos amados do Pai!
Não seria esta uma dimensão importante da nossa missão de pessoas consagradas hoje: propor percursos para acessar a interioridade, percursos diversos daqueles badalados pela new age? A missão de porteiros nos convida a olhar para fora, a identificar as buscas anônimas do povo inquieto e insatisfeito, a abrir as portas das nossas comunidades e oferecer a nossa companhia a quem deseja ir além da realidade e da aparente banalidade. E a experiência nos ensina que quando abrimos as portas, entra por elas muita gente ferida pelo fracasso e pela solidão, pela fragilidade e pelo amor doentio. Nosso mundo aparentemente satisfeito e cheio de mercadorias é habitado por muita gente acorrentada ao medo da doença, da loucura, do sofrimento, do silêncio, da velhice, da exclusão, da morte. Hoje a Palavra nos pede para abrir as portas e oferecer escuta, acolhida, calor e companhia a um mundo que corre o risco de se congelar...

Talvez o porteiro encarregado de vigiar a porta esteja a nos dizer: “Vivam despertos e esperem. Não deixem diminuir vossa atenção. É na espera vigilante e na escuta atenta que se revela o imenso e silencioso trabalho de Deus no coração de vocês e do mundo. Deixem a porta entre-aberta, para que por ela entrem aqueles que vivem ao relento. O Senhor que vocês esperam virá escondido entre estes últimos e lhes abrirá a mente para que entendam o Verbo que se fez carne, pão e cruz...”
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)

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