terça-feira, 29 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (8)

Como os servos dedicados... (Lc 17,7-10)
Não deixemos que nos roubem a paixão missionária!

Fixemos nosso olhar e sintonizemos nosso ouvido à boa notícia de Lucas 17,7-10. O contexto é de advertência sobre os escândalos provocados pelo amor às riquezas e pelo apego a uma história de observância, que se opõem aos valores do Reino e podem atrapalhar a fé dos pequenos; e sobre a generosidade do perdão e da acolhida aos marginalizados.
Aqui os discípulos são chamados de apóstolos, numa clara referência à missão. Os missionários se sentem radicalmente impotentes frente à força do mal enraizado na sociedade e na cultura e Jesus os censura pela falta de fé. “Com a fé que vocês têm como um grão de mostarda... Se alguém de vocês tem um servo que trabalha a terra e cuida dos animais, por acaso lhe dirá quando ele volta do campo: ‘Venha logo e sente-se à mesa’? Não lhe dirá, em vez: ‘Prepare o jantar para mim, aperte o cinto e me sirva, enquanto eu como e bebo; depois você poderá comer e beber’? Será que o Senhor vai agradecer ao servo porque cumpriu as ordens dele? Assim também vocês: quando tiverem cumprido todas as ordens, digam: ‘Somos simples servos. Apenas fizemos o que deveríamos ter feito’” (Lc 17,5.7-10).
Como os servos no Oriente antigo, os servidores do Reino não podem pensar num empenho part time, mas devem estar inteiramente e ad vitam a serviço (diakonia) do Senhor: de dia, trabalham no campo; de noite, trabalham em casa. O cumprimento da vontade de Deus e o engajamento no seu mandato missionário não têm data de vencimento jamais e não podem ser pretexto para afirmar direitos e méritos diante dele, pois são simplesmente a condição imprescindível para que alguém possa ser discípulo missionário.
O Papa Francisco afirma que a missão no coração do povo não pode ser apenas uma parte da nossa vida, um ornamento que podemos dispensar, um simples apêndice ou momento entre tantos outros: “É algo que não posso arrancar do meu ser, se não quero me destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso nos considerar como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar” (EG 273).
A missão nasce do encontro pessoal com Jesus Cristo e da adesão à alegre novidade do Reino de Deus. A primeira motivação para a missão é o amor que experimentamos em Jesus de Nazaré, a experiência de sermos acolhidos e salvos por ele, que nos impele a amá-lo cada vez mais. “Um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de apresentá-la, de torná-la conhecida, que amor seria?” (EG 264) O Papa Francisco insiste: “A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão reveste essencialmente da forma de comunhão missionária. Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, e não se pode excluir ninguém...” (EG 23)
É claro que nossa vocação missionária não pode ser vivida como um conjunto de tarefas assumidas como uma obrigação pesada, que quase não se tolera ou é suportado como algo que contradiz as nossas próprias inclinações e desejos. “Como gostaria de encontrar palavras para encorajar uma estação evangelizadora mais ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de amor até o fim e feita de vida contagiante! Sei, porém, que nenhuma motivação será suficiente se não arder nos corações o fogo do Espírito” (EG 261). A melhor motivação para anunciar o Evangelho e partir em missão é “contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração”. Por isso, é urgente resgatar o espírito contemplativo, que nos ajuda a descobrir que somos depositários de um bem que humaniza e ajuda a viver uma vida nova (EG 264).
Uma das coisas que nos levam a perder o entusiasmo missionário é o esquecimento de que o Evangelho dá resposta às necessidades mais profundas das pessoas.  O missionário deve estar convicto de que Jesus Cristo e seu Evangelho respondem aos anseios mais secretos e preciosos que habitam no coração das pessoas e culturas. A vida de Jesus, sua forma de tratar os pobres, seus gestos, sua coerência, sua generosidade simples e cotidiana fala à nossa vida e é um bem precioso. Quem descobre isso, convence-se de que é disso que as pessoas necessitam, mesmo que não saibam. E então não pode não evangelizar!
É verdade que a missão é hoje uma tarefa complexa e exigente, que pede discernimento e avaliação permanentes. Mas não podemos dizer que é mais difícil hoje que noutros tempos. É apenas diferente, pois, do ponto de vista histórico, devemos reconhecer o contexto cultural em geral não foi favorável ao Evangelho e à afirmação da dingidade da pessoa humana. “Em cada momento da história estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos” (EG 263). E não esqueçamos que “os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a au­dácia e a dedicação cheia de esperança. Não dei­xemos que nos roubem a força missionária!” (EG 109). Fixemos o olhar nos primeiros cristãos e na nuvem de testemunhas que nos antecederam!
Sem uma perspectiva mística, a missão perde força e beleza e acaba morrendo. “O verdadeiro missionário, que nunca deixa de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar segura do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém” (EG 266).
Ao esboçar breves linhas para uma espiritualidade missionária, o Papa Francisco dá um grande e surpreendente destaque à alegria de ser Igreja, que ele prefere chamar de “prazer espiritual de ser povo” (cf. EG 268-274). Para ser evangelizador e missionário, é preciso desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas, pois “a missão é uma paixão por Jesus e simultaneamente uma paixão por seu povo”.
Quando paramos diante de Jesus crucifica­do, reconhecemos todo o seu amor que nos dig­nifica e sustenta, mas lá também, se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige, cheio de afeto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente que Ele quer servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade não se compreende sem esta pertença” (EG 268).
“O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se falava com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor: «Je­sus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52) e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19). Ve­mo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando rece­be, de noite, Nicodemos (cf. Jo 3, 1-15). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos a fundo na socie­dade, partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações, colaboramos material e espi­ritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado com os outros” (EG 269).
Considerar-se superiores e melhores, tomar distância do povo sofredor, evitar o contato com a vida concreta dos outros, buscar abrigos pessoais e comunitários longe dos dramas humanos não é uma virtude mas uma tentação. Jesus quer que toquemos a carne sofredora do povo, que nos relacionemos com ele e conheçamos a força da ternura e experimentemos a intensa alegria de ser povo. “Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo” (EG 271).
Por fim, é importante lembrar que o amor às pessoas é uma força espiritual que favorece o encontro em plenitude com Deus. Bento XVI disse que “fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus”. Portanto, “quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a intenção de procurar o seu bem, amplia­mos o nosso interior para receber os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para reco­nhecer a Deus” (EG 272).
Assim, “se que­remos crescer na vida espiritual, não podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evange­lização enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais sensíveis para reconhecer a ação do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas espirituais limitados. (...) Só pode ser missionário quem se sente bem, procurando o bem do próximo, desejando a felicidade dos outros. (...) Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechan­do-se na comodidade. Isto não é senão um lento suicídio” (Idem).
Citando o papa Francisco, os bispos do Brasil assinalam que é a paixão e a ação missionárias o dinamismo que derruba as estruturas caducas e provoca a mudança dos corações dos cristãos (cf. Doc. 100, 50). “A conversão pastoral supõe passar de uma pastoral ocupada apenas com as atividades internas da Igreja a uma pastoral que dialogue com o mundo. A paróquia missionária há de ocupar-se menos com detalhes secundários da vida paroquial e focar-se mais no que realmente propõe o Evangelho” (Doc. 100, 58).
Esta conversão pastoral da paróquia consiste na formação de “pequenas comunidades de discípulos convertidos pela Palavra de Deus e conscientes da necessidade de viver em estado permanente de missão” (Doc. 100, 8). Estas comunidades devem se caracterizar por serem a casa dos cristãos para a missão sendo casa da Palavra, casa do Pão e casa da Caridade (cf. Doc 100, 177-189). E é claro que esse dinamismo tem um rumo – as periferias – e um destinatário prioritário – os pobres (cf. EG 46, 48).

Itacir Brassiani msf

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