sábado, 31 de janeiro de 2015

O contexto do evangelho do 4° domingo

Mc 1, 21-28: O primeiro impacto da Boa Nova de Jesus no povo

1.     SITUANDO
O texto de hoje descreve várias atividades de Jesus: a admiração do povo diante do ensinamento de Jesus (Mt 1,21-22), o primeiro milagre da expulsão de um demônio (Mt 1,23-28), a cura da sogra de Pedro (Mc 1,29-31), a cura de muitos doentes (Mc 1,32-34). Marcos recolheu estes episódios, que eram transmitidos oralmente nas comunidades, e os uniu entre si como tijolos numa parede.
Nos anos 70, época em que Marcos escreveu, as comunidades necessitavam de orientação. Descrevendo como foi o início da atividade de Jesus, Marcos indicava como elas deviam fazer para anunciar a Boa Nova aos que viviam oprimidos pelo medo dos demônios, pela imposição arbitrária de normas ultrapassadas, pela perseguição por parte do Império Romano. Marcos fez catequese contando para as comunidades os fatos e acontecimentos da vida de Jesus.

2. COMENTANDO
Marcos 1,21-22: Admirado com o ensino de Jesus, o povo cria consciência crítica
A primeira coisa que Jesus faz é chamar gente para formar comunidade (Mc 1,16-20). A primeira coisa que o povo percebe é o jeito diferente de Jesus ensinar. Não é tanto o conteúdo, mas sim o jeito de ensinar, que impressiona. Por este seu jeito diferente, Jesus cria consciência crítica no povo com relação às autoridades religiosas da época. O povo percebe, compara e diz: Ele ensina com autoridade, diferentemente dos escribas. Os escribas da época ensinam citando autoridades. Jesus não cita autoridade nenhuma, mas fala a partir da sua experiência de Deus e da vida.
Marcos 1,23-26: Jesus combate o poder do mal
O primeiro milagre é a expulsão de um demônio. O poder do mal tomava conta das pessoas e as alienava de si mesmas. Hoje também, muita gente vive alienada de si mesma pelo poder dos meios de comunicação, da propaganda do governo e do comércio. Vive escrava do consumismo, oprimida pelas prestações e ameaçada pelos cobradores. Acha que  não vive direito como gente se não comprar aquilo que a propaganda anuncia. Em Marcos, o primeiro gesto de Jesus consiste em expulsar e combater o poder do mal. Jesus devolve as pessoas a si mesmas. Devolve a consciência e a liberdade.
Marcos 1,27-28: A reação do povo - o primeiro impacto
Os dois primeiro sinais da Boa Nova que o povo percebe em Jesus são estes: o seu jeito diferente de ensinar as coisas de Deus e o seu poder sobre os espíritos impuros. Jesus abre um novo caminho para o povo conseguir a pureza através do contato com ele. Naquele tempo, uma pessoa que era declarada impura já não podia comparecer diante de Deus para rezar e receber a bânção prometida por Deus a Abraão. Teria que se purificar primeiro. Assim, havia muitas leis e normas que dificultavam a vida do povo e marginalizavam muita gente como impura. Agora, purificadas por Jesus, as pessoas impuras podiam comparecer novamente à presença de Deus.
Marcos 1,29-31: Jesus restaura a vida para o serviço
Depois de participar da celebração do sábado, na sinagoga, Jesus entra na casa de Pedro e cura a sogra dele. A cura faz com que ela se coloque imediatamente de pé. Com a saúde e a dignidade recuperadas, ela se põe a serviço das pessoas. Jesus não só cura, mas cura para que a pessoa se coloque a serviço da vida.
Marcos 1,32-24: Jesus acolhe os marginalizados
Ao cair da tarde, terminado o sábado, na hora do aparecimento da primeira estrela no céu, Jesus acolhe e cura os doentes e os possessos que o povo tinha trazido. Doentes e possessos eram as pessoas mais marginalizadas naquela época. Elas não tinham a quem recorrer. Ficavam entregues à caridade pública. Além disso, a religião as considerava impuras. Elas não podiam participar da comunidade. Era como se Deus as rejeitasse e as excluísse. Jesus as acolhe. Assim, aparece em que consiste a Boa Nova de Deus e o que ela quer atingir na vida da gente: acolher os marginalizados e os excluídos e reintegrá-los na convivência.

2.     ALARGANDO
Os oito pontos da missão da comunidade
Um duplo cativeiro marcava a situação do povo na época de Jesus: o cativeiro da religião oficial, mantida pelas autoridades religiosas da época, e o cativeiro da política de Herodes, apoiada pelo Império Romano e mantida por todo um sistema bem organizado da exploração e de repressão. Por causa disso, uma grande parte do povo vivia excluída, enxotada e sem lugar, nem na religião nem na sociedade. Era o contrário da fraternidade que Deus sonhou para todos! É neste contexto que Jesus começa a realizar sua missão.
Após a descrição da preparação da Boa Nova (Mc 1,1-13) e da sua proclamação (Mc 1,14-15), Marcos reúne, um depois do outro, oito episódios ou atividades de Jesus para descrever a missão das comunidades (Mc 1,16-45). É a mesma missão que Jesus recebeu do Pai (Jo 20,21). Estes oito episódios são oito critérios para as comunidades fazerem uma boa revisão e verificar se estão realizando bem a sua missão. Vejamos:

Mc 1,16-20: Criar comunidade
A primeira coisa que Jesus faz é chamar pessoas para segui-lo. A tarefa básica da missão é congregar as pessoas em torno de Jesus e criar comunidade.
Mc 1,21-22: Despertar consciência crítica
A primeira coisa que o povo percebe é a diferença entre o ensino de Jesus e o dos escribas. Faz parte da missão contribuir para que o povo crie consciência crítica frente à religião social.
Mc 1,23-28: Combater o poder do mal
O primeiro milagre de Jesus é a expulsão de um espírito impuro. Faz parte da missão combater o poder do mal que estraga a vida e aliena as pessoas de si mesmas.
Mc 1,29-31: Restaurar a vida para o serviço
Jesus curou a sogra de Pedro, ela levantou-se e começou a servir. Faz parte da missão preocupar-se com os doentes de tal modo que possam levantar-se e voltar a prestar serviço aos outros.
Mc 1,32-34: Acolher os marginalizados
Depois que o sábado passou, o povo trouxe até Jesus todos os doentes e endemoniados, para que Jesus os curasse, e ele curou a todos, impondo-lhes as mãos. Faz parte da missão acolher os marginalizados.
Mc 1,35: Permanecer unido ao Pai pela oração
Após um dia de trabalho até tarde, Jesus se levantou cedo para poder rezar num lugar deserto. Faz parte da missão permanecer unido à fonta da Boa Nova que é o Pai, através da oração.
Mc 1,36-39: Manter a consciência da missão
Os discípulos gostaram do resultado e queriam que Jesus voltasse. Mas ele seguiu adiante. Faz parte da missão não se fechar no resultado já obtido e manter viva a consciência da missão.
 Mc 1,40-45: Reintegrar os marginalizados na convivência
Jesus cura um leproso e pede que se apresente ao sacerdote para poder ser declarado curado e voltar a conviver com o povo. Faz parte da missão reintegrar os marginalizados na convivência humana.
Esses oito pontos, tão bem escolhidos por Marcos, mostram o rumo e o objetivo da missão de Jesus: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundânci" (Jo 10,10). Estes mesmos oito pontos podem servir como avaliação para a nossa comunidade. Por aí a gente vê como Marcos constrói o seu Evangelho. Construção bonita, que leva em conta duas coisas ao mesmo tempo (1) informa as pessoas a respeito das coisas que Jesus fez e ensinou; (2) forma as comunidades e as pessoas para a missão de anunciadores e anunciadoras da Boa Nova.
Carlos Mesters e Metcedes Lopes

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

QUARTO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 01.02.2015)

Este mundo amante da guerra não é o único possível.
 

Há algunos anos atrás, quando Israel bombardeava o Líbano – a bola da vez no bilhar dos donos do poder no Oriente Médio – o uruguaio Eduardo Galeano lançava no ar perguntas contundentes: “Até quando continuaremos a aceitar que este mundo enamorado da morte é nosso único mundo possível? Até quando continuarão a soar em sinos de madeira as vozes da indignação? A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai: como alguns deuses cruéis, comem os vivos e os mortos...” Mas as vozes que se opõem às mudanças que urgem sempre se fazem ouvir, como no episódio da sinagoga de Cafarnaum...
 O problema é que são muitas e diversas as imagens de Jesus que circulam em nosso meio, desde aquelas que o aproximam da majestade dos reis até aquelas que o identificam com o jovem de bem com a vida, sem esquecer aquelas de um torturado banhado de sangue e as outras que o apresentam como um ser absolutamente sereno e tranquilo diante de tudo. E, ao lado das imagens pintadas ou esculpidas, temos aquelas que criamos mentalmente e revelamos nos textos teológicos e espirituais, como aquela de um doce e ingênuo pregador dos valores do céu, da importância da alma...
A imagem de um Jesus ocupado em curar doenças também está bastante presente em nosso meio. É verdade que os evangelhos nos dizem que Jesus curou muitas pessoas, mas disso não podemos passar à imagem de Jesus como a de um médico ou curandeiro. As curas de Jesus foram poucas e em contexto muito preciso. E não esqueçamos que a doença como é fato social, e não uma simples complicação orgânica. Em situações de alto grau de insegurança e tensão as doenças se multiplicam. A verdadeira cura é a recuperação do bem-estar pessoal e social das pessoas, e é isso que Jesus faz.
Jesus não saiu pelos caminhos da Galiléia simplesmente oferecendo curas a preços módicos, fazendo concorrência com os médicos e hospitais, como querem dar a entender alguns pregadores de hoje. Para Jesus, o resgate do pleno bem-estar, especialmente dos pobres e doentes, é um sinal da chegada do Messsias. Quando cura, sua intenção não é afirmar o proprio poder ou divindade e fazer fama, mas oferecer sinais de que o Reino de Deus chegou de fato como vida em abundância para as pessoas mais sofridas. E não pensemos que as curas que ele realizava eram aceitas com unanimidade...
As ações mediante as quais Jesus restaura a vida e a cidadania das pessoas em sua integralidade são denúncias tácitas da inoperância do sistema político, cultural e religioso que não só não possibilita a saúde como também provoca o adoecimento físico e psíquico do povo. Esse enfrentamento com a ordem estabelecida fica claro no luta de Jesus contra os ‘espíritos impuros’. Mas, para compreender o sentido profundo e revolucionário dos “exorcismos” de Jesus precisamos esquecer aquilo que vimos nos filmes de exorcismo e o que vemos hoje nos cultos pentecostais...
No texto do Evangelho deste domingo a questão não é propriamente a possessão ou o exorcismo. Lembremos que esta é a primeira ação pública de Jesus relatada por Marcos, que o palco da cena é a cidade de Cafarnaum, que o lugar é a sinagoga – espaço dominado pelos escribas! – e o dia é sábado. Os escribas tinham o poder declarar alguém puro ou impuro, e isso estava ligado com saúde e doença. Pos ali, diante de um povo admirado com a autoridade do ensinamento de Jesus, uma pessoa possuída por um espírito mau começa a protestar: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir?”
Está muito claro que na voz desse cidadão anônimo e despersonalizado ressoa a voz dos escribas, ‘donos do campo’. O que está em jogo nesta cena é a autoridade de ensinar, orientar e liderar o povo: ela pertence a Jesus ou aos escribas? O medo de perder a liderança pode provocar ações e discursos enlouquecidos... Na voz desse homem dominado se manifesta o pânico e a desestabilização provocadas pela autoridade alternativa de Jesus. E isso é confirmado pela própria ação de Jesus: ele luta, ameaça o ‘espírito mau’ e manda que ele se cale e deixe de dominar as pessoas.
Jesus de Nazaré, profeta corajoso na palavra e ousado na ação: Somos teus discípulos, e conosco estão os irmãos e irmãs de milhões de comunidade cristãs, além de homens e mulheres de boa vontade que se fazem movimento. Não permitas que vendamos nossa esperança por preço nenhum. Não nos deixes trocar teu Evangelho por ‘antigas lições’, ou fazer de ti um mestre doce e inofensivo. Ajuda-.nos a romper com as estruturas de um mundo enamorado da morte, e faz ressoar em nossos sinos de bronze tua boa notícia, a indignação e a esperança! Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Deuteronômio 18,15-20 * Salmo 94 (95) * 1ª Carta aos Coríntios 7,32-35 * Evangelho de Marcos 1,21-28)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A banalidade do mal... e do bem...

De volta à 'banalidade do mal': reflexões em torno do 'Charlie Hebdo'

Quando em 1963 Hanna Arendt publica o livro Eichmann em Jerusalém e aborda a questão da "banalidade do mal” a partir do julgamento do nazista, Adolf Eichman, muitos intelectuais e leitores acharam sua reflexão descabida de sentido. Aliás, bem antes da publicação do livro, quando seus textos eram relatos jornalísticos publicados no The New Yorker, a polêmica e a controvérsia em relação a eles era grande. Achavam um desrespeito falar da "banalidade do mal” frente ao crime de extermínio de tantos judeus. Eichman, na realidade, era um homem banal, cumpridor de seus deveres e não hesitou em seguir cumprindo-os nos campos de extermínio, obedecendo a ordens.
Os leitores não entenderam Hanna e hoje seguimos na mesma ignorância de antes em relação à expressão ‘banalidade do mal’ e aos acontecimentos atuais. Ela queria simplesmente reafirmar que fazer o mal é responsabilidade do ser humano e que não há forças superiores ou uma natureza diabólica que nos obrigue a tirar vidas, a roubar, a nos apossar do que não nos pertence e a nos julgar superiores uns aos outros. A banalidade do mal consiste nas ações destrutivas da vida naquilo que vivemos e observamos, na superfície visível da história. Se mostra através de uma cadeia de relações e decisões, de micro-poderes que acabam se tornando macro poderes e forças de aniquilação. A banalidade do mal é a alienação frente às ordens fundamentalistas quer de direita, de centro ou de esquerda. A banalidade do mal é nossa vida quotidiana eivada de ódios contra pequenas e grandes coisas.
Hoje, acompanhando, na medida do possível, os incidentes em torno do jornal satírico ‘Charlie Hebdo’ e das muitas manifestações em torno da chacina, me vieram ao espírito algumas reflexões inspiradas em Hanna Arendt. Não só é preciso reafirmar a "banalidade do mal”, mas afirmar certo uso da defesa contra o mal também como um mal. Livrar-se do mal com mal, livrar-se da intransigência religiosa dogmática pela intransigência humorista e política, livrar-se da culpa pela afirmação do direito à liberdade de imprensa, continuar a desenvolver preconceitos em relação aos ‘diferentes’ coloca-nos de novo no dualismo entre inocentes e culpados. E de novo ficamos num beco sem saída sempre acusando uns e outros, sempre buscando os inimigos e, aparentemente dando as mãos aos que aparecem como defensores da democracia.
O "olho por olho” que vivemos hoje significa a restauração da lei da barbarie, significa nossa regressão coletiva em qualidade de humanidade. Sabemos bem que embora haja responsabilidades diferentes e graus de cumplicidade não há mais inocentes e nem culpados puros. Estamos imersos na trivialização do mal pelos meios de comunicação e na banalização da violência. Em outros termos a imprensa que chega ao grande público opera e convence a partir de dualismos: o bom e o ruim, o culpado e o inocente, o cidadão de bem e o mau cidadão ou o marginal, o meliante e assim por diante. Já de antemão se sabe quem será condenado. O noticiário do dia nos conduz ao bondoso e ao malvado e incita vontade de fazer justiça com as próprias mãos. Nem precisamos pensar, nem fazemos perguntas, nem suspeitamos da veracidade das informações. Com isso acentua-se a maldade aparente, imediata, que aponta o culpado ou os culpados e os acusa de terroristas, de criminosos ou de traidores da pátria. Não há análise crítica, não há história mais ampla a ser considerada, não há responsabilidades coletivas a serem pesadas e cobradas.
Hanna Arendt explicava que a banalização do mal era algo para além de uma consideração do mal como uma essência no ser humano, algo que se explicaria a partir da má índole dos seres humanos ou de uma natureza perversa ou corrompida. Dizia ela, que o mal era algo cometido na superfície dos fatos através dos mecanismos e das relações que nos impomos uns aos outros. É o mal da arbitrariedade no qual cada um faz a sua lei segundo seus interesses e comete com isso atrocidades e crimes com conseqüências históricas grandiosas, tanto próximas quanto remotas. É o mal da obediência cega onde a desculpa é rainha e onde se afirma inocentemente "fiz porque me mandaram”. A vontade do sujeito se torna submissa a vontade de outros, às ordens de uma máquina sem nome capaz de exterminar muitos nomes.
Os totalitarismos de nosso tempo disfarçados de democracia parecem ser os mais perigosos. Criam redes de cumplicidades sem que essas apareçam às claras, sem que se expliquem as razões de suas propostas e de seus atos, sem dar conta de suas iniciativas e de sua finalidade. Sem dúvida, nesse silencio escolhido algo dizem. Por exemplo, dizem defender a democracia. Mas, qual? Apregoam o direito: de quem? Falam de liberdade, fraternidade e igualdade. Mas, o que são elas, a quem pertencem e como as vivemos hoje?
Tudo isso é vasto demais como o ‘vasto mundo’ de Fernando Pessoa. Por isso quero pensar um pouco nas coisas pequenas. Penso nas esposas, nas mães, nos filhos e filhas e nas tensas relações entre os diferentes países como conseqüência da ação dos que executaram os assassinatos em Paris. Penso nos preconceitos que crescem e nas raivas obscuras que mantêm uns contra outros. Mas, afinal quem matou quem? Quantas são as vítimas? Sem dúvida houve mais mortos e feridos do que os computados pelos jornais e sistemas internacionais de inteligência. Houve muita gente envolvida nos jogos de poder e contra-poder, não apenas no dia da tragédia, mas bem antes. Entretanto, isso foge da emoção do momento, dos ruídos de bombas necessários à imprensa.
Para os próximos, os da família, expressões como "defesa da liberdade de imprensa” nada significam quando o corpo amado está inerte, quando o filho de minhas entranhas acaba de ser morto, quando a palavra "pai” já não poderá ser pronunciada pelos filhos e filhas que ficaram. Esta dor é muitas vezes esquecida ou lembrada apenas quando pode fazer "efeito” de sensacionalismo periodista. Mas, para quem fica e perde laços de amizade, de filiação, de cumplicidade afetiva não há categorias claras que expressem o doloroso vazio que os/as habita. E, sabemos que essa dor é a primeira dor dentro do coração do mundo.
Os ‘campos de extermínio’ da segunda guerra mundial causam ainda arrepios em muitos de nós e ainda rendem páginas escritas e cinematográficas para muitos. Entretanto, os sofrimentos do momento nascidos de uma velha e longa espiral de violência, as perdas de entes queridos, a fome epidêmica, a violência cotidiana vivida, antes de serem transformadas em história passada são incomensuráveis. Desconhecemos sua intensidade e sua variedade. Dilaceram tanto quanto ou talvez muito mais do que a bala que eliminou vidas. Abrem feridas cujo sangue dificilmente é estancado de imediato, deixam marcas indeléveis naqueles cuja história de agora é marcada pelo assassinato de uns e outros, pela fuga em massa, pelo flagelo do medo de muitas caras. Tanto o julgado agressor quanto o agredido têm suas relações próximas e estas se vêem transformadas violentamente. Os muitos "pedaços de mim” que se vão "para além do bem e do mal”, que não podem ser midiatizados e polemizados, que não ouvem e não obedecem a nenhum apelo, a nenhuma súplica de amor, a nenhuma paixão, a nenhuma ordem superior permanecem na memória inefável dos próximos. A dor de ontem revive e prolonga a dor de hoje, dor anônima, sem importância, talvez até sem conseqüências políticas para o acirramento das guerras. Dor que pode até ser um estopim para novos combates, para vinganças revolvidas dos arquivos da história.
Lembro-me de uma mãe norte-americana que perdera o único filho na guerra do Iraque e recusava os títulos de honra que queriam dar a ele. Não queria prêmios para sua dor, não queria triviliarizar seu sofrimento, não queria recompensas pela perda sem volta, não exigia desculpas inúteis. Há muito mais dores do que imaginamos e muito mais dignidade do que a que computamos. Mas, é difícil entender porque não conseguimos transformar as "espadas em arados”, porque necessitamos matar uns aos outros para manter a estabilidade da economia mundial e porque não somos capazes de superar os limites dos Estados e das religiões.
As armadilhas da barbárie parecem crescer, provocam enganos, ocultam fatos, sentimentos, emoções. A vingança pequena ou grande é a moeda de troca mais comum. Ofenderam meu povo, falaram mal de meu pai, roubaram meu carro, queimaram minha casa, criticaram minha religião... Acabo com você e com vocês, seus desgraçados! Banalidade do mal, banalidade do bem. O que seria mesmo o bem? As armadilhas que nós preparamos para agir à flor da pele parecem ser a matéria prima de muitas notícias. Fazem os "furos de reportagem”, a caça aos bandidos, o enfrentamento emocionante de perigos, a exposição aos tiros de bandos ilegais, da polícia legal e ilegal... Todos são bandos de meninos brincando de mocinho e bandido carregando armas letais. BUM, Bum, bum, bum ... Mãe me ajuda, Mãe, Mãe, Mãezinha... Onde está você, mãe? O grito pela mãe entrega a terra o último suspiro do filho que se foi. Morreu mais um... Aquele estendido no chão é "meu filho” gritou uma mulher... E aquele que matou e foi depois foi eliminado pela polícia é "o meu” gritou outra. Todos mortos, estupidamente mortos, chacina geral. Saiu em primeira página e hoje o jornal estourou em vendas. Saímos do vermelho porque o sangue dos marginais fez entrar em ‘azul’ as contas do mês. Ficaram vermelhos de sangue os corações das mulheres saudosas de serem mães. Os gritos de ajuda ainda ressoam nos seus ouvidos apesar do silencio dos mortos; continuam lá como eco colado ao tímpano, como dor colada às entranhas, como lágrima interior que não quer estancar. Mas, isso é nada dizem alguns; logo vai passar... E o mundo não vai mudar, pois seguimos sendo lobos uns para os outros.
Hoje, já não há mais a força confiável do Estado ao qual se delega poderes, mas cada grupo e mesmo cada cidadão se sente no "direito” de interferir na ordem pública segundo os seus instintos. Há uma farsa do bem, um faz de conta que buscamos juntos a justiça, uma aparência de ordem estabelecida pelas armas e garantida pelos mísseis escondidos. A produção de armas de guerra continua sendo nosso lucro e nossa defesa! Bendita guerra que nos ajudou a vender tanto...
Já não queremos ser discípulos/as da solidariedade, nem da justiça e da paz mesmo reconhecendo sua fragilidade. Não queremos buscar o amor e o respeito ao próximo como gerenciador de nossas relações. Perdemos o pé no bem comum em meio a tanta arbitrariedade e corrupção.
Acho que me sinto meio perdida... Preciso acender uma lâmpada em pleno dia. Talvez seja a velhice que me torne mais limitada e descrente. Já não vejo com clareza por onde vai o caminho do diálogo humano, do cuidado de uns com os outros, do pão partilhado, das rodas e cirandas ritmadas, do respeito às diferenças. Estou cansada da hipocrisia das políticas e dos que ousam falar em nome de seu deus. Estamos enfeitiçados pela felicidade barata do consumismo, pelas sem razões de muitas crenças, pelas ordens e desordens da mídia, pelo ouro negro, pelo ouro amarelo e ouro branco que comandam o mundo. E apesar disso tudo... Imaginem, hoje, comprei um sorvete para um menino de rua que me pediu sorrindo: "Dona, compra um sorvete de chocolate para mim?”

Ivone Gebara

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Chamados a ser discipulos

Marcos 1,14-20: Jesus anuncia a Boa Nova de Deus e chama pessoas para segui-lo

1.       SITUANDO
A Boa Nova de Deus foi preparada ao longo da história (Mc 1,1-8), foi proclamada solenemente pelo pai na hora do batismo de Jesus (Mc 1,9-11), foi testada e aprovada no deserto (Mc 1,12-13). Agora aparece o resultado da longa preparação: Jesus anuncia a Boa Nova publicamente ao povo (Mc 1,14-15) e convoca outras pessoas a participar do anúncio (Mc 1,16-20).
Nos anos 70, época em que Marcos escreveu, os cristãos, lendo essa descrição do início da Boa Nova, olhavam no espelho e viam retratado nele o início da sua própria comunidade. Aquela fonte que brotou na vida daqueles quatro primeiros discípulos podia, a qualquer momento, brotar também na vida deles.

2. COMENTANDO
Marcos 1,14: Jesus inicia o anúncio da Boa Nova de Deus
Marcos dá a entender que, enquanto Jesus se preparava no deserto, João Batista tinha sido preso pelo rei Herodes. Diz o texto: “Depois que João foi presto, Jesus voltou para a Galiléia proclamando a Boa Nova de Deus.” A prisão de João Batista não assustou a Jesus! Pelo contrário! Ele viu nela um sinal da chegada do Reino. Hoje, os fatos da política e da polícia também influem no anúncio que nós fazemos da Boa Nova ao povo. Marcos diz que Jesus proclamava a Boa Nova de Deus. Pois Deus é a maior Boa Notícia para a vida humana. Ele responde à aspiração mais profunda do nosso coração.
Marcos 1,15: O resumo da Boa Notícia de Deus
O anúncio da Boa Nova de Deus tem quatro pontos: (1) Esgotou-se o prazo! (2) O Reino de Deus chegou! (3) Mudem de vida! (4) Acreditem nesta Boa Notícia! (Mc 1,14-15). Estes quatro pontos são um resumo de toda a pregação de Jesus. Cada um deles tem um significado importante:
1)    Esgotou-se o prazo! Para os outros judeus, o prazo ainda não tinha se esgotado. Faltava muito para o Reino chegar. Para os fariseus, por exemplo, o Reino só chegaria quando a observância da Lei fosse perfeita. Para os essênios, quando o país fosse purificado ou quando eles tivessem o domínio sobre o país. Jesus pensa de modo diferente. Ele tem outra maneira de ler os fatos. Diz que o prazo já se esgotou.
 2)   O Reino de Deus chegou! Para os fariseus e os essênios, a chegada do Reino dependia do esforço deles. Só chegaria depois que eles tivessem realizado a sua parte, a saber, observar toda a lei, purificar todo o país. Jesus diz o contrário: "O Reino chegou!" Já estava aí! Independentemente do esforço feito! Quando Jesus diz "O Reino chegou!", ele não quer dizer que o Reino estava chegando só naquele momento, mas sim que já estava aí. Aquilo que todos esperavam já estava presente no meio do povo, e eles não o sabiam nem o percebiam (cf. Lc 17,21). Jesus o percebeu! Pois ele lia a realidade com um olhar diferente. E é esta presença escondida do Reino no meio do povo que Jesus vai revelar e anunciar aos pobres da sua terra. É esta a semente do Reino que vai receber a chuva da sua palavra e o calor do seu amor.
3)    Mudem de Vida! Alguns traduzem "Fazei Penitência". Outros, "Convertei-vos ou arrependei-vos". O sentido exato é mudar o modo de pensar e de viver. Para poder perceber essa presença do Reino, a pessoa terá que começar a pensar, a viver e a agir de maneira diferente. Terá que mudar de vida e encontrar outra forma de convivência! Terá que deixar de lado o legalismo do ensino dos fariseus e permitir que a nova experiência de Deus invada sua vida e lhe dê olhos novos para ler e entender os fatos.
4)     Acreditem nesta Boa Notícia! Não era fácil aceitar a mensagem. Não é fácil você começar a pensar de forma diferente de tudo que aprendeu, desde pequeno. Isto só é possível através de um ato de fé. Quando alguém vem trazer uma notícia diferente, difícil de ser aceita, você só aceita se a pessoa que traz a notícia for de confiança. Aí, você dirá aos outros: "Pode aceitar! Eu conheço a pessoa! Ela não engana, não. É de confiança. Fala a verdade!" Jesus é de confiança!  
Marcos 1,16-20: O objetivo do anúncio da Boa Nova é formar comunidade
Jesus passa, olha e chama. Os quatro escutam, largam tudo e seguem a Jesus. Parece amor à primeira vista! Conforme a narração de Marcos, tudo isto aconteceu logo no primeiro encontro com Jesus. Comparando com os outros evangelhos, a gente percebe que os quatro já conheciam a Jesus (Jo 1,39; Lc 5,1-11). Já tiveram a oportunidade de conviver com ele, de vê-lo ajudar o povo ou de escutá-lo na sinagoga. Sabiam como ele vivia e o que pensava. O chamado não foi coisa de um só momento, mas sim de repetidos chamados e convites, de avanços e recuos. O chamado começa e recomeça sempre de novo! Na prática, coincide com a convivência dos três anos com Jesus, desde o batismo até o momento em que Jesus foi levado ao céu (At 1,21-22). Então, por que Marcos o apresenta como amor à primeira vista? Marcos pensa no ideal: o encontro com Jesus deve provocar um mudança radical na vida da gente!

3.       ALARGANDO
O chamado para seguir Jesus 
O chamado é de graça. Não custa. Mas acolher o chamado exige compromisso. É o momento de entrar na nova família de Jesus, na comunidade (Mc 3,31-35). Jesus não esconde as exigências. Quem quer segui-lo deve saber o que está fazendo: deve mudar de vida e crer na boa Nova (Mc 1,15), deve estar disposto ou disposta a abandonar tudo. Do contrário, "não pode ser meu discípulo" (Lc 14,33). O peso não cai na renúncia, mas sim no amor que dá sentido à renúncia. É por amor a Jesus (Lc 9,24) e ao Evangelho (Mc 8,35) que o discípulo ou a discípula deve renunciar a si mesmo, carregar sua cruz, todos os dias, e segui-lo (Mc 8,34-35; Mt 10,37-39; 16,24-26; 19,27-29).

Os discípulos são o xodó de Jesus. No Evangelho de Marcos, a primeira coisa que Jesus faz é chamar discípulos (Mc 1,16-20), e a última que faz é chamar discípulos (Mc 16,7.15). Jesus passa e chama. Eles largam tudo e seguem a Jesus. Parece que não lhes custa nada. Largam a família. Largam os barcos e as redes (Mc 1,16-20). Levi largou a coletoria, fonte da sua riqueza (Mc 2,13-14). Seguir Jesus supõe ruptura! Eles começam a formar um grupo, uma comunidade itinerante. É a comunidade de Jesus (Mc 3,13-14.34).
Os discípulos acompanham Jesus por todo canto. Entram com ele na sinagoga (Mc 1,21) e nas casas até dos pecadores (Mc 2,15). Passeiam com ele pelos campos, arrancando espigas (Mc 2,23). Andam com ele ao longo do mar, onde o povo os procura (Mc 3,7). Ficam a sós com ele e podem interrogá-lo (Mc 4,10.34). Vão à casa dele, convivem com ele e vão com ele até Nazaré, a terra dele (Mc 6,1). Com ele atravessam o mar e vão para o outro lado (Mc 5,1).
Participam da dureza da nova caminhada. Tanta gente os procura, que já não têm tempo para comer (Mc 3,20). Eles começam a sentir-se responsáveis pelo bem-estar de Jesus: ficam perto dele, cuidam dele e mantêm um barco pronto para ele não se esmagado pelo povo que avança (Mc 3,9; cf. 5,31). E no fim de um dia de trabalho levam a ele, exausto, para o outro lado do lago (Mc 4,36). A convivência se torna íntima e familiar. Jesus chega a dar apelidos a alguns deles. A João e Tiago chamou de Filhos do Trovão, e a Simão deu o apelido de Pedra ou Pedro (Mc 3,16-17). Ele vai a casa deles e se preocupa com os problemas da família deles. Curou a sogra de Pedro (Mc 1,29-31).
Andando com Jesus, eles seguem a nova linha e começam a perceber o que serve para a vida e o que não serve. A atitude livre e libertadora de Jesus faz com que criem coragem para transgredir normas religiosas que pouco ou nada têm a ver com a vida: arrancam espigas em dia de sábado (Mc 2,23-24), entram em casa de pecadores (Mc 2,15), comem sem lavar as mãos (Mc 7,2) e já não insistem em fazer jejum (Mc 2,18). Por isso, são envolvidos nas tensões e brigas de Jesus com as autoridades e são criticados e condenados pelos fariseus (Mc 2,16.18.24). Mas Jesus os defende (Mc 2,19.25-27; 7,6-13).
Distanciam-se das posições anteriores. O próprio Jesus os distingue dos outros e diz claramente: "A vocês é dado o ministério do Reino, mas aos de fora tudo acontece em parábolas" (Mc 4,11), pois "os de fora" têm olhos mas não enxergam, têm ouvidos e não escutam (Mc 4,12). Jesus considera os discípulos e as discípulas como seus irmãos e suas irmãs. É a sua nova família (Mc 3,33-34). Eles recebem formação. As parábolas narradas ao povo, Jesus as explica a eles quando estão sozinhos em casa (Mc 4,10s.34).
Na raiz desse grande entusiasmo está a pessoa de Jesus que chama. Está a Boa Nova do Reino que atrai! Eles seguem Jesus. Ainda não percebem todo o alcance que o contato com Jesus implica para a vida deles. Isto, por enquanto, nem importa! O que importa é poder seguir Jesus que anuncia a tão esperada Boa Nova do Reino. Até que enfim, o Reino chegou (Mc 1,15)!

Resumindo: Seguir Jesus era uma expressão que os primeiros cristãos usavam para indicar o relacionamento deles com Jesus e entre eles mesmos na comunidade. Significava três coisas:
1)  Imitar o exemplo do Mestre: Jesus era modelo a ser imitado. A convivência diária com Jesus na comunidade permitia um confronto constante. Nesta "Escola de Jesus" só se ensinava uma única matéria: o Reino! E o Reino se reconhecia na vida e na prática de Jesus.
2)  Participar do destino do Mestre: Quem seguia Jesus devia comprometer-se com ele e "estar com ele nas tentações" (Lc 22,28), inclusive na perseguição (Jo 15,20; Mt 10,24-25). Devia estar disposto até a morrer com ele (Jo 11,16).
3)  Ter a vida de Jesus dentro de si: Depois da Páscoa, acrescentou-se uma terceira dimensão: identificar-se com Jesus ressuscitado, vivo na comunidade. "Vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). Participar da sua morte e ressurreição (Filipenses 3,8-11).
Carlos Mesters e Mercedes Lopes

(http://www.cebi.org.br/noticias.php?secaoId=1&noticiaId=5357)

TERCEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B– 25.01.2015)

Um outro mundo é possível: acreditemos nessa boa notícia!

Há quinze anos o Fórum Social Mundial nascia como um grito visceralmente evangélico: ‘Um outro mundo é possível’. E desde então o mundo não é mais o mesmo! As vozes e as mãos que anunciam e tecem alternativas se uniram, e o ‘mundo de Davos’, a contra-gosto, reconheceu que outras coisas estavam querendo nascer. Como não ver nesse grande laboratório de alternativas um eco daquilo que aconteceu às margens do mar da Galiléia, dois mil anos antes? As palavras são outras, mas a perspectiva é a mesma: “O Reino de Deus está próximo! Convertam-se e acreditem nessa boa notícia!”
A primeira palavra que sai da boca de Jesus, o anúncio que resume sua pessoa e sua missão é: “O tempo se cumpriu: o Reino de Deus está próximo!” Ao lançar mão dessas palavras, Jesus sabia da força que tinham no imaginário do seu povo. Com o conceito “Reino de Deus”, os profetas anunciavam o início de um novo céu e uma nova terra, o começo de uma nova sociedade, na qual idosos e crianças, trabalhadores do campo e da cidade, teriam lugar e seriam tratados como gente (cf. Is 65,17-25; Zc 8,1-23). O Reino de Deus era uma louca esperança que os profetas se encarregavam de mater viva.
Nos tempos de êxito ou de fracasso político-insitucional essa esperança quase desaparece, sufocada pela ânsia de poder ou desmentida pela dura realidade. Mas sua semente promissora é teimosa e sempre cuidadosamente guardada e cultivada pelos pobres de Deus e seus aliados, por aqueles que esperam o ‘Dia do Senhor’. Mas, na boca de Jesus, este anúncio do Reino de Deus tem duas novidades: ele desloca o tempo do futuro para o presente; e estabelece cada pessoa humana como seu protagonista. Para ele, o tempo de espera terminou, e o Reino está próximo, batendo à porta, é iminente.
Por outro lado, mesmo mantendo o princípio de que o reino é de Deus, Jesus não atribui sua realização exclusivamente a Deus ou a si mesmo. Certo, ele tem o papel de protagonsita, mas também associa a si homens e mulheres que levam o Reino de Deus adiante. O Reino é tanto mais de Deus quanto mais tiver como protagonistas homens e mulheres comuns, livres e libertadores, despojados e solidários. É na ação de libertar que as pessoas se tornam livres e que Deus reina. É por isso que, depois de fazer ressoar seu anúncio e de pedir o engajamento dos seus ouvintes, Jesus chama os primeiros discípulos.
O pré-requisito do chamado é a conversão, a ruptura com amentalidade segundo a qual o mundo não tem jeito, a opressão sempre existiu e sempre existirá, a fé não tem nada a ver com a política, e assim por diante... Para acreditar que um outro mundo é possível, é nessário mudar os esquemas mentais, converter-se. Acolher o Reino de Deus e entrar na sua lógica é uma decisão que exige rupturas, e a primeira é com a segurança econômica. Por mais humilde e suspeito que fosse, o ofício de pescador oferecia uma certa segurança econômica, e os discípulos tiveram que começar rompendo com isso...
Jesus vê Simão, André, Tiago e João e os convida a caminhar com ele, a serem discípulos e aprendizes. Mas, para isso, eles precisam romper também com a segurança social representada pela família. Deixando o pai, eles rompem com um modelo de família centrado na figura e no poder masculinos, e se abrem a novas relações, menos piramidais e mais fraternas. E, rompendo com a ordem sócio-econômica dominante, os discípulos entram na escola de Jesus e começam a assimilar um novo pensar e um novo agir. Em linguagem de hoje, os discípulos aderem a um estilo de vida alternativo.
Aceitar o convite e seguir Jesus é uma decisão inteligente e exigente. Inteligente, porque supõe discernimento sobre o caminho da realização pessoal e da libertação social. Exigente, porque implica em deixar o cômodo mundo privado e seus interesses estreitos e arriscar-se no tenso e disputado espaço público, tomando partido em favor dos pobres e, quando necessário, contra os poderosos e seus aliados. É isso que significa originalmente a surpreendente expressão “pescadores de homens”. Na linguagem profética, a pesca é o julgamento de Deus! (cf. Jer 16,16-18; Ez 29,1-16; Am 4,1-3)
Deus pai e mãe, fonte e destino dos nossos sonhos! Ajuda-nos a perceber com alegria que tudo câmbia, e que um outro mundo está nascendo nas mil ações dos discípulos e discípulas do teu Filho. Abre e cura nossos ouvidos, para que escutemos e acolhamos a Boa Notícia da proximidade do teu Reino. Envia sobre nós o teu Espírito, para que ele mude nossos rígidos e medrosos sistemas mentais e force a ruptura com as amarras que reciclam os poderes moribundos. E faz da tua Igreja uma comunidade de pescadores de gente, servidores do teu juízo crítico e libertador sobre os sistemas deste mundo. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Jonas 3,1-5.10 * Salmo 24 (25) * 1ª Carta aos Coríntios 7,29-31 * Evangelho de Marcos 1,14-20)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Liberdade de imprensa?

Mídia com nariz de palhaço
http://www.materiaincognita.com.br/rede-globo-resiste-a-crise-
comendo-o-lucro-das-suas-afiliadas/#axzz3PPGQ9i1n
Ao narrar os acontecimentos ocorridos em Paris (França) no dia 7 de janeiro de 2015, a grande mídia brasileira apresentou-os como verdadeiros atentados contra a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Fez sempre referência aos mesmos como atos terroristas, como verdadeira barbárie, como violação da democracia e do estado democrático de direito. Porém, em nenhum momento, essa mesma mídia se dispôs a colocar em debate estes conceitos tão ferrenhamente defendidos. Em nenhum momento quis debater com a sociedade o significado da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Não quis se perguntar, por exemplo, se nos países ocidentais, ideologicamente neoliberalistas, há, de fato, liberdade de expressão e liberdade de imprensa.
Em nenhum momento essa mídia levantou a suspeita de que em certos países, como a França e o Brasil, existem situações e práticas cultivadas por ela mesma que são verdadeiros atentados contra a democracia, o estado de direito, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Ela não quis mostrar para o seu público que atentados terroristas contra a liberdade de expressão são cometidos diariamente por uma mídia golpista, e que não é preciso esperar que aconteçam atos extremistas como aqueles cometidos em Paris.
No Brasil, por exemplo, não existe liberdade de expressão e liberdade de imprensa na grande mídia. Para explicar melhor o que acabei de dizer, vamos entender o significado dessa duas expressões. Creio que não seja necessário explicar o significado do termo “liberdade”. Todos, até mesmo pessoas mais simples, sabem o que isso significa. Quanto ao termo “expressão”, esse deriva do prefixo latino ex e do verbo, também latino, premere. O prefixo “ex” tem a ver com retirar, sair de, libertar de. O verbo latino “premere” indica uma situação de pressão, uma ação através da qual se oprime, se comprime, se força e se obriga. Logo, a liberdade de expressão é o direito à existência sem pressão, ou, mais concretamente, o direito de posicionar-se, de emitir opiniões, de falar sem ser pressionado, sem ser impedido e sem ser interrompido por ninguém. Já a liberdade de imprensa é a liberdade de expressão atribuída aos meios de comunicação.
Feitos os esclarecimentos sobre o significado dos termos, volto a dizer: na grande mídia, pelo menos no Brasil, não existe liberdade de expressão e nem liberdade de imprensa. Quando os meios de comunicação e os seus funcionários pregam esses direitos, como o fizeram depois do dia 7 de janeiro deste ano, eles estão blefando, estão mentindo, estão usando nariz de palhaço. Estão usando um discurso falso e enganando aqueles e aquelas que são analfabetos funcionais. Mas tal discurso não é aceito por quem tem consciência crítica, por quem tem um cérebro funcionando dentro da normalidade. E vou explicar porque penso assim.
Não se pode falar de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa, quando, no caso do Brasil, toda a grande mídia (redes televisivas, rádios, jornais, revistas etc.) é controlada por algumas pouquíssimas famílias. Pesquisas realizadas indicam que apenas nove grupos de famílias controlam as grandes empresas de comunicação no Brasil. Embora constitucionalmente seja uma concessão pública, isto é, um bem que pertence à nação, ao povo, a grande mídia no Brasil é propriedade privada exclusiva de algumas famílias e à qual o povo não tem nenhum acesso. Pelo menos em nosso país, não existe nenhum mecanismo legal que permita, de fato, um controle democrático da grande mídia por parte da sociedade brasileira. Os donos dos meios de comunicação fazem o que querem, impõem programações ou grades de programação para seus veículos e emissoras, sem se importar com os direitos dos cidadãos e das cidadãs. São absolutamente contra qualquer interferência da sociedade e se recusam obstinadamente a aceitar formas de participação do povo na gestão dos meios de comunicação. Não aceitam, por exemplo, a existência de um Conselho Nacional de Comunicação, um organismo com representação dos diversos segmentos da sociedade, com autoridade para, pelos menos, sugerir pautas e programações para a grande mídia. Por isso, quando essa mídia faz um discurso obstinado de defesa da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa ela está mentindo, está faltando com a ética e está tratando o povo como uma massa de idiotas.
No caso do Brasil, a grande mídia, além de se concentrar nas mãos de poucas famílias ricas e poderosas, ela defende apenas os interesses da elite, dos poderosos, dos mais ricos e dos exploradores do povo. E, para defender tais interesses, mente, omite informações, deforma a comunicação, numa total falta de ética e de humanidade.  Além de não permitir o acesso do povo, essa mídia, sistematicamente, persegue aqueles grupos e entidades que ameaçam tais interesses. Exemplo típico desse comportamento é a atitude persecutória da grande mídia brasileira ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Isso porque há uma cumplicidade entre latifundiários (grandes fazendeiros) e a grande mídia. Normalmente os poucos donos da grande mídia no Brasil são também os poucos donos das terras em nosso país e vice-versa.
Outro agravante que comprova a falta de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa na grande mídia brasileira é o oligopólio nas comunicações. Embora a lei brasileira não permita, um mesmo grupo detém, na prática, o controle de vários veículos de comunicação.  Assim, por exemplo, as Organizações Globo, pertencente a uma única família, são donas de rede televisiva, de rádios, de jornais, de revistas, de empresa cinematográfica, de televisão a cabo etc. etc. O conjunto de veículos midiáticos controlados pela família Marinho é superior a dois terços do total. Isso é um verdadeiro absurdo e um claro atentado à liberdade de expressão e de imprensa. Por essa razão, as pessoas dotadas de senso crítico e de espírito democrático não aceitam tal absurdo e percebem a falsidade do discurso demagógico dessa gente.
Junte-se a isso o fato de que as grandes empresas de comunicação no Brasil visam ao lucro exorbitante e não aos objetivos propostos pela Constituição Federal. Num contexto como esse, a defesa da liberdade de expressão e de imprensa apregoadas por essa gente não passa de uma grande piada de mau gosto. É uma verdadeira ofensa ao povo brasileiro.
Além de tudo isso, os jornalistas, e demais profissionais funcionários das grandes empresas de comunicação, não gozam de liberdade de expressão e nem de liberdade de imprensa. Eles são meros empregados e só podem dizer ou falar aquilo que é permitido por seus patrões. Não passam de simples “papagaios”, obrigados a repetir na mídia aquilo que os patrões determinam e impõem. Eles não compõem a pauta e a programação dos veículos de comunicação. Essas são determinadas pelos donos das empresas e eles são obrigados a cumprirem à risca aquilo que os patrões determinam. São os patrões que dizem o que pode ou não pode ser dito, a forma como as notícias devem ser veiculadas e assim por diante. Por esse motivo os jornalistas que ousam serem criativos e autônomos são sumariamente repreendidos e até demitidos. Há inclusive o caso de jornalistas que foram demitidos enquanto estavam no ar, ao vivo, só porque ousaram apresentar notícias e fatos que desagradaram a seus patrões. Por isso, vejo estes jornalistas com nariz de palhaço quando falam enfaticamente de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa. São uns meros idiotas subservientes, escravos da ditadura imposta pelos donos da mídia.
Com isso não estou fazendo apologia e nem concordando com a atitude dos extremistas que invadiram a sede de um jornal chargista em Paris, matando e ferindo várias pessoas. Atitudes como estas devem ser severamente condenadas. Aliás, deve-se questionar seriamente a razão pela qual os serviços secretos franceses, que tinham informações precisas sobre os sujeitos, permitiram que isso acontecesse.
O que estou querendo condenar firmemente é a hipocrisia da grande mídia, também essa terrorista e golpista. É claro que o terrorismo praticado pela grande mídia é um terrorismo camuflado, com aparência de legalidade, que destrói vidas, persegue quem pensa e age diferente e não permite que a verdade sobre os fatos seja revelada. Temos centenas de exemplos de casos de pessoas e instituições que foram sistematicamente execradas pela grande mídia. Tiveram suas vidas expostas ao ridículo. Famílias inteiras foram destruídas. Será que já esquecemos o caso da Escola Base de São Paulo? Um terrorismo midiático que não dá amplo direito de resposta, ou, quando é forçada a dar espaço a quem foi por ela lesado, tal espaço se reduz a notinhas ridículas e a pedidos formais de desculpas. Para mim isso é ato terrorista em nada menos grave do que aqueles cometidos pelos extremistas franceses. Portanto, é hora de nos rebelarmos e de desmascarar essa mídia golpista que usa um discurso democrático de fachada para enganar e emburrecer cada vez mais o povo brasileiro. É hora de desmascarar essa mídia com nariz de palhaço.

José Lisboa Moreira de Oliveira

De Paris à Nigéria

JE SUIS BAGA, NIGÉRIA E A INSENSIBILIDADE MUNDIAL
 
http://www.simonateba.com/officials-at-least-185-killed-in-nigeria-attack/
No dia 8 de janeiro aproximadamente duas (2000) mil pessoas morreram vítimas de um ataque de radicais extremistas em Baga, Nigéria! Na mesma semana, radicais extremistas atacaram várias pessoas na França. 

O mundo se tornou francês durante esses dias. A grande mídia deu ibope durante todo o período do acontecimento. Ficamos todos sensibilizados com as mortes brutais, sem misericórdia e clemência por parte dos assassinos em nome da religião. 

Por que o mundo se tornou francês, mas não se tornou africano, diante da tragédia em Baga na Nigéria? 

Foram duas (2000) mil pessoas mortas, corpos carbonizados, enfileirados e mostrados a “luz do dia”. Corpos, corporeidades midiaticamente espetacularizados! 

Vivemos ainda sob o domínio do capital, cultural, social e economicamente da Europa e dos E.U.A., não temos como fugir desse domínio! O que me deixa absurdamente incomodado é a absorção acrítica da cultura midiática capitalista colonialista das mentes humanas! 

Pra que, se preocupar com Baga, se a África é o lugar onde moram os negros: sequestrados, escravizados e desumanizados no passado pela colonização? 

Pra que, se preocupar com Baga, se a África é o lugar onde moram os negros: sequestrados, escravizados e desumanizados agora, pelo colonialismo imperial capitalista? 

Esse tipo de notícia não vende no mundo globalizado! Não prende a atenção dos telespectadores mundiais midiáticos.