segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A banalidade do mal... e do bem...

De volta à 'banalidade do mal': reflexões em torno do 'Charlie Hebdo'

Quando em 1963 Hanna Arendt publica o livro Eichmann em Jerusalém e aborda a questão da "banalidade do mal” a partir do julgamento do nazista, Adolf Eichman, muitos intelectuais e leitores acharam sua reflexão descabida de sentido. Aliás, bem antes da publicação do livro, quando seus textos eram relatos jornalísticos publicados no The New Yorker, a polêmica e a controvérsia em relação a eles era grande. Achavam um desrespeito falar da "banalidade do mal” frente ao crime de extermínio de tantos judeus. Eichman, na realidade, era um homem banal, cumpridor de seus deveres e não hesitou em seguir cumprindo-os nos campos de extermínio, obedecendo a ordens.
Os leitores não entenderam Hanna e hoje seguimos na mesma ignorância de antes em relação à expressão ‘banalidade do mal’ e aos acontecimentos atuais. Ela queria simplesmente reafirmar que fazer o mal é responsabilidade do ser humano e que não há forças superiores ou uma natureza diabólica que nos obrigue a tirar vidas, a roubar, a nos apossar do que não nos pertence e a nos julgar superiores uns aos outros. A banalidade do mal consiste nas ações destrutivas da vida naquilo que vivemos e observamos, na superfície visível da história. Se mostra através de uma cadeia de relações e decisões, de micro-poderes que acabam se tornando macro poderes e forças de aniquilação. A banalidade do mal é a alienação frente às ordens fundamentalistas quer de direita, de centro ou de esquerda. A banalidade do mal é nossa vida quotidiana eivada de ódios contra pequenas e grandes coisas.
Hoje, acompanhando, na medida do possível, os incidentes em torno do jornal satírico ‘Charlie Hebdo’ e das muitas manifestações em torno da chacina, me vieram ao espírito algumas reflexões inspiradas em Hanna Arendt. Não só é preciso reafirmar a "banalidade do mal”, mas afirmar certo uso da defesa contra o mal também como um mal. Livrar-se do mal com mal, livrar-se da intransigência religiosa dogmática pela intransigência humorista e política, livrar-se da culpa pela afirmação do direito à liberdade de imprensa, continuar a desenvolver preconceitos em relação aos ‘diferentes’ coloca-nos de novo no dualismo entre inocentes e culpados. E de novo ficamos num beco sem saída sempre acusando uns e outros, sempre buscando os inimigos e, aparentemente dando as mãos aos que aparecem como defensores da democracia.
O "olho por olho” que vivemos hoje significa a restauração da lei da barbarie, significa nossa regressão coletiva em qualidade de humanidade. Sabemos bem que embora haja responsabilidades diferentes e graus de cumplicidade não há mais inocentes e nem culpados puros. Estamos imersos na trivialização do mal pelos meios de comunicação e na banalização da violência. Em outros termos a imprensa que chega ao grande público opera e convence a partir de dualismos: o bom e o ruim, o culpado e o inocente, o cidadão de bem e o mau cidadão ou o marginal, o meliante e assim por diante. Já de antemão se sabe quem será condenado. O noticiário do dia nos conduz ao bondoso e ao malvado e incita vontade de fazer justiça com as próprias mãos. Nem precisamos pensar, nem fazemos perguntas, nem suspeitamos da veracidade das informações. Com isso acentua-se a maldade aparente, imediata, que aponta o culpado ou os culpados e os acusa de terroristas, de criminosos ou de traidores da pátria. Não há análise crítica, não há história mais ampla a ser considerada, não há responsabilidades coletivas a serem pesadas e cobradas.
Hanna Arendt explicava que a banalização do mal era algo para além de uma consideração do mal como uma essência no ser humano, algo que se explicaria a partir da má índole dos seres humanos ou de uma natureza perversa ou corrompida. Dizia ela, que o mal era algo cometido na superfície dos fatos através dos mecanismos e das relações que nos impomos uns aos outros. É o mal da arbitrariedade no qual cada um faz a sua lei segundo seus interesses e comete com isso atrocidades e crimes com conseqüências históricas grandiosas, tanto próximas quanto remotas. É o mal da obediência cega onde a desculpa é rainha e onde se afirma inocentemente "fiz porque me mandaram”. A vontade do sujeito se torna submissa a vontade de outros, às ordens de uma máquina sem nome capaz de exterminar muitos nomes.
Os totalitarismos de nosso tempo disfarçados de democracia parecem ser os mais perigosos. Criam redes de cumplicidades sem que essas apareçam às claras, sem que se expliquem as razões de suas propostas e de seus atos, sem dar conta de suas iniciativas e de sua finalidade. Sem dúvida, nesse silencio escolhido algo dizem. Por exemplo, dizem defender a democracia. Mas, qual? Apregoam o direito: de quem? Falam de liberdade, fraternidade e igualdade. Mas, o que são elas, a quem pertencem e como as vivemos hoje?
Tudo isso é vasto demais como o ‘vasto mundo’ de Fernando Pessoa. Por isso quero pensar um pouco nas coisas pequenas. Penso nas esposas, nas mães, nos filhos e filhas e nas tensas relações entre os diferentes países como conseqüência da ação dos que executaram os assassinatos em Paris. Penso nos preconceitos que crescem e nas raivas obscuras que mantêm uns contra outros. Mas, afinal quem matou quem? Quantas são as vítimas? Sem dúvida houve mais mortos e feridos do que os computados pelos jornais e sistemas internacionais de inteligência. Houve muita gente envolvida nos jogos de poder e contra-poder, não apenas no dia da tragédia, mas bem antes. Entretanto, isso foge da emoção do momento, dos ruídos de bombas necessários à imprensa.
Para os próximos, os da família, expressões como "defesa da liberdade de imprensa” nada significam quando o corpo amado está inerte, quando o filho de minhas entranhas acaba de ser morto, quando a palavra "pai” já não poderá ser pronunciada pelos filhos e filhas que ficaram. Esta dor é muitas vezes esquecida ou lembrada apenas quando pode fazer "efeito” de sensacionalismo periodista. Mas, para quem fica e perde laços de amizade, de filiação, de cumplicidade afetiva não há categorias claras que expressem o doloroso vazio que os/as habita. E, sabemos que essa dor é a primeira dor dentro do coração do mundo.
Os ‘campos de extermínio’ da segunda guerra mundial causam ainda arrepios em muitos de nós e ainda rendem páginas escritas e cinematográficas para muitos. Entretanto, os sofrimentos do momento nascidos de uma velha e longa espiral de violência, as perdas de entes queridos, a fome epidêmica, a violência cotidiana vivida, antes de serem transformadas em história passada são incomensuráveis. Desconhecemos sua intensidade e sua variedade. Dilaceram tanto quanto ou talvez muito mais do que a bala que eliminou vidas. Abrem feridas cujo sangue dificilmente é estancado de imediato, deixam marcas indeléveis naqueles cuja história de agora é marcada pelo assassinato de uns e outros, pela fuga em massa, pelo flagelo do medo de muitas caras. Tanto o julgado agressor quanto o agredido têm suas relações próximas e estas se vêem transformadas violentamente. Os muitos "pedaços de mim” que se vão "para além do bem e do mal”, que não podem ser midiatizados e polemizados, que não ouvem e não obedecem a nenhum apelo, a nenhuma súplica de amor, a nenhuma paixão, a nenhuma ordem superior permanecem na memória inefável dos próximos. A dor de ontem revive e prolonga a dor de hoje, dor anônima, sem importância, talvez até sem conseqüências políticas para o acirramento das guerras. Dor que pode até ser um estopim para novos combates, para vinganças revolvidas dos arquivos da história.
Lembro-me de uma mãe norte-americana que perdera o único filho na guerra do Iraque e recusava os títulos de honra que queriam dar a ele. Não queria prêmios para sua dor, não queria triviliarizar seu sofrimento, não queria recompensas pela perda sem volta, não exigia desculpas inúteis. Há muito mais dores do que imaginamos e muito mais dignidade do que a que computamos. Mas, é difícil entender porque não conseguimos transformar as "espadas em arados”, porque necessitamos matar uns aos outros para manter a estabilidade da economia mundial e porque não somos capazes de superar os limites dos Estados e das religiões.
As armadilhas da barbárie parecem crescer, provocam enganos, ocultam fatos, sentimentos, emoções. A vingança pequena ou grande é a moeda de troca mais comum. Ofenderam meu povo, falaram mal de meu pai, roubaram meu carro, queimaram minha casa, criticaram minha religião... Acabo com você e com vocês, seus desgraçados! Banalidade do mal, banalidade do bem. O que seria mesmo o bem? As armadilhas que nós preparamos para agir à flor da pele parecem ser a matéria prima de muitas notícias. Fazem os "furos de reportagem”, a caça aos bandidos, o enfrentamento emocionante de perigos, a exposição aos tiros de bandos ilegais, da polícia legal e ilegal... Todos são bandos de meninos brincando de mocinho e bandido carregando armas letais. BUM, Bum, bum, bum ... Mãe me ajuda, Mãe, Mãe, Mãezinha... Onde está você, mãe? O grito pela mãe entrega a terra o último suspiro do filho que se foi. Morreu mais um... Aquele estendido no chão é "meu filho” gritou uma mulher... E aquele que matou e foi depois foi eliminado pela polícia é "o meu” gritou outra. Todos mortos, estupidamente mortos, chacina geral. Saiu em primeira página e hoje o jornal estourou em vendas. Saímos do vermelho porque o sangue dos marginais fez entrar em ‘azul’ as contas do mês. Ficaram vermelhos de sangue os corações das mulheres saudosas de serem mães. Os gritos de ajuda ainda ressoam nos seus ouvidos apesar do silencio dos mortos; continuam lá como eco colado ao tímpano, como dor colada às entranhas, como lágrima interior que não quer estancar. Mas, isso é nada dizem alguns; logo vai passar... E o mundo não vai mudar, pois seguimos sendo lobos uns para os outros.
Hoje, já não há mais a força confiável do Estado ao qual se delega poderes, mas cada grupo e mesmo cada cidadão se sente no "direito” de interferir na ordem pública segundo os seus instintos. Há uma farsa do bem, um faz de conta que buscamos juntos a justiça, uma aparência de ordem estabelecida pelas armas e garantida pelos mísseis escondidos. A produção de armas de guerra continua sendo nosso lucro e nossa defesa! Bendita guerra que nos ajudou a vender tanto...
Já não queremos ser discípulos/as da solidariedade, nem da justiça e da paz mesmo reconhecendo sua fragilidade. Não queremos buscar o amor e o respeito ao próximo como gerenciador de nossas relações. Perdemos o pé no bem comum em meio a tanta arbitrariedade e corrupção.
Acho que me sinto meio perdida... Preciso acender uma lâmpada em pleno dia. Talvez seja a velhice que me torne mais limitada e descrente. Já não vejo com clareza por onde vai o caminho do diálogo humano, do cuidado de uns com os outros, do pão partilhado, das rodas e cirandas ritmadas, do respeito às diferenças. Estou cansada da hipocrisia das políticas e dos que ousam falar em nome de seu deus. Estamos enfeitiçados pela felicidade barata do consumismo, pelas sem razões de muitas crenças, pelas ordens e desordens da mídia, pelo ouro negro, pelo ouro amarelo e ouro branco que comandam o mundo. E apesar disso tudo... Imaginem, hoje, comprei um sorvete para um menino de rua que me pediu sorrindo: "Dona, compra um sorvete de chocolate para mim?”

Ivone Gebara

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