Quem não crer já está condenado.
Condenado a quê? (João
3,14-21)
O texto do
evangelho a ser proclamado neste domingo (Jo 3,14-21) traz uma bonita e ao
mesmo tempo controversa frase: Deus amou o mundo de tal
maneira que entregou seu Filho único para que todo aquele que crê não pereça,
mas tenha a vida eterna (Jo 3,16). Tamanho foi o amor de Deus
que nos deu seu único filho! Mas por que o mesmo Deus que proibiu o sacrifício
de Isaac (Gn 22) entregaria seu próprio filho? Queria o pai que seu Filho fosse
morto por nós? Se não queria, por que permitiu isso? Era necessário que o Filho
do Homem fosse levantado no madeiro (Jo 3,14)?
Sabemos que o
quarto evangelho teve sua redação já no final do primeiro século, momento em
que muita gente vinha entregando a vida pela causa do Evangelho, no serviço aos
pobres, na partilha dos bens e até mesmo no enfrentamento com o Império Romano,
por meio do martírio. Por outro lado, não era pequeno o grupo que contestava
essa postura: para seguir Jesus bastava buscar a "iluminação",
abrir-se ao conhecimento, à gnose. Para quem
assim pensava, o logos era luz a ser atingida pelo esforço do intelecto, não
pela prática concreta. Corrigindo esta distorção, o quarto evangelho afirma já
em seu prólogo: o verbo, a luz verdadeira, fez-se carne, gente de fato, viveu
acampado no nosso meio! (Jo 1, 9.14).
Procurando
Jesus às escondidas
De acordo com
as narrativas joaninas, havia um grupo de pessoas simpáticas ao projeto de
Jesus, mas com dificuldades de assumir publicamente essa postura. Tais pessoas
sempre procuravam Jesus às escondidas (Jo 3,2) e por isso a tradição os
apelidou de cripto-cristãos.
Nicodemos
fazia parte desse grupo. Foi modelo para muitos que, à época da redação do
evangelho, não podiam ou não queriam assumir publicamente sua fé em Jesus.
Pessoa influente entre os judeus, Nicodemos era fariseu e membro do Sinédrio
(Jo 3,1). Mais tarde, até tentou evitar a condenação de Jesus (7,50). Na versão
do quarto evangelho, também foi ele quem trouxe os perfumes para a preparação
do corpo do Mestre (19,39). Mas teve dificuldades de assumir publicamente seu
compromisso com o Reino.
Jesus já havia
dito a Nicodemos que era preciso "nascer do alto" (Jo 3,3). Num jogo
de palavras, era como "nascer de novo". Nicodemos não entendeu que
Jesus esperava um renascer da água e do Espírito (3,5).
A conversa entre
os dois segue em forma de poema, no qual se misturam as palavras de Jesus com
as de quem escreveu o evangelho. E se Nicodemos tem dificuldade de procurar
Jesus durante o dia, de ser testemunho aberto da luz (1,7), Jesus será elevado,
para que seja visto por todo o mundo, para que o mundo seja salvo por ele.
Deus
amou tanto o mundo...
O termo mundo (kósmos) é utilizado
pelo quarto evangelho para designar tudo o que se opõe ao Reino, ao projeto de
Jesus. Por isso, diante de Pilatos, Jesus afirma categoricamente: "O meu
reino não é deste mundo" (Jo 19,26). Uma tradução possível e até melhor
para esta frase seria: "Meu reino não é conforme - de acordo com - este mundo!" O mundo de
Pilatos era o mundo do império romano: ocupação militar, corrupção, exploração
dos pobres, violência contra as mulheres e as crianças. Jesus denuncia
publicamente essa farsa, por isso é levantado no madeiro (Jo 3,14). O império o
condena. É elevado ao trono, mas sua glória é a cruz.
Entretanto,
mesmo denunciando esse mundo e por ele condenado, não quer a sua condenação.
Deus enviou Jesus não para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo
por ele (Jo 3,17). E da mesma forma que foi enviado, Jesus faz questão de
afirmar que ao mundo também enviou seus discípulos (Jo 17,18).
A condenação e
o assassinato de Jesus são atitudes e escolha do "mundo" e não o
desejo de Deus. Temos que assumir que é nossa a culpa pela morte de tanta gente
inocente. Não nos serve a atitude de Pilatos que, mesmo reconhecendo a
inocência de Jesus, é conivente e autoriza a sua morte (Jo 19,6.16).
Entretanto, a comunidade joanina, ao refazer a releitura de Gn 22 (a
preservação da vida, o não-sacrifício de Isaac), quer ressaltar o quanto Deus
ama esse mundo e como deseja a conversão e a mudança de comportamento.
Quem
não crer, já está condenado!
O Evangelho de
João parece cair em contradição: no conjunto, insiste na salvação do mundo;
aqui explicita a condenação: a luz veio ao mundo, mas muitos dos seres humanos
preferiram as trevas (Jo 3,19); o mundo não o reconheceu (Jo 1,10). Quem não
crer, de antemão já está condenado (Jo 3,18). Uma tradução melhor seria
"julgado" (em grego, kríno). O acréscimo
de Marcos modificou o texto e o verbo: além de crer, é preciso ser batizado (Mc
16,16). Quem não crer será condenado (Marcos usa outro verbo - katakríno, mais ligado a "dar a sentença")
Há quem
prefira interpretar que a fé em Jesus é condição para a salvação. Estariam
condenadas as pessoas que não acreditam e não aceitam a luz. É até possível que
seja essa a intenção dos redatores, tamanha era perseguição do mundo sobre as
comunidades à época da redação do texto. Entretanto, duas perguntas são muito
importantes: Quem condena? E condena a quê?
Com certeza,
quem nos condena não é Deus. Tamanho é o seu amor por nós que nos enviou seu
próprio Filho! Nós mesmos fazemos a escolha, a opção é nossa. Estamos "no
mundo", mas podemos deixar de viver "conforme o mundo".
Mas a que nós
podemos nos condenar? Condena-se a si mesmo quem decide pelo projeto
do "mundo". Neste sentido, "crer" é aderir, aceitar,
entregar-se, integrar-se no outro projeto, o do Reino.
Não é bom que
corramos o risco de nos condenar à tristeza e à frustração de quem não consegue
crer que Deus nos ama e que "outro mundo é possível". Não podemos nos
condenar ao individualismo e ao isolamento apregoados pela sociedade moderna. O
caminho é a solidariedade, a partilha e o compromisso com quem sofre
injustiças. Não fazer essa escolha é ficar na indecisão de Nicodemos. E então
nos sobraria a "opção" de nos consolar comprando flores e perfume
para o túmulo, como fez esse líder dos judeus.
Edmilson Schinelo
http://www.cebi.org.br/noticias.php?noticiaId=5480
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