quinta-feira, 30 de abril de 2015

Festa de S. José Operario

José, um operário

A festa de são José Operário fui instituída pelo Papa Pio XII, em 1955, com a intenção de reafirmar a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras e, ao mesmo tempo, dar uma marca católica à celebração civil e classista do dia 1° de maio. O próprio Pio XII havia dito, por ocasião do Natal de 1942: “Todo trabalho possui uma dignidade inalienável e, ao mesmo tempo, uma íntima ligação com a pessoa em seu aperfeiçoamento: nobre dignidade e prerrogativa que não são de modo algum aviltadas pela fadiga e pelo peso que devem ser suportados como efeito do pecado original em obediência e submissão à vontade de Deus.”
Antes dele, Leão XIII havia escrito que “os porletários e operários têm como direito especial o de recorrer a são José e de procurar imitá-lo. José, de fato de família real, unido em matrimônio com a mais santa e a maior entre todos as mulheres, considerado como o pai do Filho de Deus, não obstante tudo passou a vida toda a trabalhar e tirar do seu trabalho de artesão tudo o que era necessário ao sustento da família.” E introduzindo o nome de São José no cânon da missa, o Papa João XXIII quis homenageá-lo como exemplo de vida cristã, homem trabalhador e honesto, fiel e obediente à palavra de Deus.
O pai de Jesus de Nazaré é um carpinteiro
Em geral essa afirmação não causa hoje nenhum problema para os cristãos, se bem que muitos parecem lamentar secretamente que Jesus não tenha sido descendente de uma família nobre ou da dinastia sacerdotal... Mas no contexto das primeiras comunidades cristãs, especialmente no ambiente do judaísmo e do império romano, a origem social de Jesus atraía suspeita e desprezo sobre seu ensino e suas ações.
Ouvindo o ensino de Jesus na sinagoga, seus conterrâneos se perguntavam perplexos: “De onde vem essa sabedoria e esses milagres? Esse homem não é o filho do carpinteiro?” Nomeando de cor os membros de sua humilde família, não conseguiam entender e ficaram escandalizados (cf. Mt 13,53-58). A condição de vida de José e a profissão que exercia eram causa de menosprezo e dificultavam a aceitação da mensagem de Jesus por parte do seu próprio povo.
Mas este é um dado que não podemos esquecer ou diminuir: José é um homem que viveu do próprio trabalho. No século XIX, o Pe. Berthier,  fundador dos Missionários da Sagrada Família, escrevia: “José era um pobre artesão: ele não recebeu outra herança senão as mãos, outro capital senão a carpintaria, outros recursos senão o próprio trabalho” (Le prêtre II, p. 802). E esse trabalho foi o caminho que o levou à integridade nas suas relações com Maria, com Jesus, com seu povo e com Deus.
Um trabalhador pode alcançar a sabedoria?
A expressão grega tektôn, que normalmente é traduzida por carpinteiro, expressa também o ofício do pedreiro e do ferreiro. De qualquer maneira, sempre trabalhos artesanais. Assim, podemos supor com bastante fundamento histórico e literário que José e Jesus foram artesãos experimentados no ofício da carpintaria e muito conhecidos nas vilas da região.
Podemos presumir também que, seguindo o costume segundo o qual o pai devia ensinar sua profissão aos filhos, José ensinou Jesus a distinguir os diversos tipos de madeira e suas qualidades específicas. Ensinou-o também a usar adequadamente as ferramentas de trabalho: machado, martelo, serra, plaina, cinzel, etc. E observando o jeito de José trabalhar, Jesus aprendeu o valor de um trabalho bem feito.
O livro do Eclesiástico registra uma certa reserva e até menosprezo frente aos trabalhadores manuais. “Aquele que está livre de atividades torna-se sábio. Como poderá tornar-se sábio aquele que maneja o arado e cuja glória consiste em manejar o ferrão? Como pode tornar-se sábio aquele que guia bois, não abandona o trabalho e só sabe falar de crias de vacas?... O mesmo acontece com todo carpinteiro e construtor, e com qualquer pessoa que trabalha dia e noite...” (Eclo 38,24-27).
Com base nisso, podemos concluir que, como os demais trabalhadores manuais, José e Jesus “não são requisitados no conselho do povo, não têm lugar especial na assembléia, não se assentam na cadeira do juiz, nem conhecem as disposições legais. Eles não brilham pela cultura nem pelo julgamento, e não entendem de provérbios. Entretanto, são eles que sustentam as necessidades básicas, e a oração deles consiste em realizar o próprio trabalho” (Eclo 38,34).
A dignidade dos trabalhadores
A festa de São José Operário tem como objetivo celebrar o valor do trabalho humano e proclamar a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras. São José nos ajuda a voltar nosso olhar àqueles e aquelas que hoje necessitam do próprio trabalho para sobreviver e, ao mesmo tempo, realizam através dele sua vocação de construir o bem comum.
Nossa fé sublinha que Deus assumiu a condição humana, inclusive a de trabalhador. “Pela sua encarnação, o Filho de Deus, de certo modo, uniu-se a todos os seres humanos. Trabalhou com mãos humanas, pensou e agiu como qualquer ser humano, amando com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, foi realmente um dos nossos em tudo, exceto no pecado” (Gaudium et Spes 22).
O mesmo documento conciliar recomenda engajamento e alegria aos cristãos  que “seguindo o exemplo de Cristo, que trabalhou como operário, exercem todas as suas atividades unificando os esforços humanos, domésticos, profissionais, científicos e técnicos numa síntese vital com os bens religiosos, sob cuja direção tudo se orienta para a glória de Deus” (Gaudium et Spes 43). Assumindo  trabalhos  manuais humildes em Nazaré, Jesus conferiu uma dignidade especial ao trabalho e aos trabalhadores (cf. Gaudium et Spes 67).
Mudar os sistemas iníquos
Em tempos de crise estrutural como esta que estamos atravessando, as saídas apresentadas como mais razoáveis e urgentes normalmente trazem prejuízos aos trabalhadores. Fala-se sempre em flexibilizar os direitos trabalhistas, mas pouco se fala em flexibilizar os índices de lucro dos empresários e banqueiros. A Igreja afirma sem rodeios que “é iníquo e desumano” organizar a produção “em detrimento dos trabalhadores”.  “Nenhuma lei econômica o justifica” e, nesses casos, “a greve deve ser reconhecida como um direito de defesa dos trabalhadores” (Gaudium et Spes 68).
Muitos ainda preferem imaginar José trazendo nas mãos lírio da pureza e em vez de ferramentas de trabalho. E gostam de contemplar Jesus trazendo trazendo na cabeça uma coroa real e nas mãos o pergaminho ou o cajado, a patena e o cálice, mas jamais um martelo, uma foice ou uma enxada! E o mundo viria abaixo se alguém ousasse representar José e Jesus numa manifestação pela redução da jornada de trabalho, contra a lei da terceirização , contra a flexibilização das leis trabalhistas ou por uma nova ordem internacional...
Que o trabalho não seja em vão
Paulo Coelho confessou que gosta de imaginar Jesus celebrando sua última ceia numa mesa fabricada na marcenaria de José. Mesmo que isso não seja historicamente provável, é importante sublinhar os laços que unem José e Jesus, sejam eles de trabalho ou de missão. Jesus será sempre o filho e o herdeiro do carpinteiro de Nazaré, e dele aprendeu a relevância da utopia religiosa, o valor do trabalho e a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras.
De minha parte, concedo-me o direito de imaginar José e Jesus envolvidos no trabalho em mutirão para construção de casas no povoado de Nazaré. À noite, em casa, depois da modesta janta, vejo José puxa de memória o Salmo 127: “Se Javé não constrói a casa, em vão labutam os construtores. Se Javé não guarda a cidade, em vão vigiam os guardas. É inútil que vocês madruguem e se atrasem para deitar, para comer o pão com duros trabalhos: aos seus amigos ele o dá enquanto dormem.”
Interrompendo a prece, vejo José fixando demoradamente seu olhar terno no rosto de Jesus, e depois continuando: “A herança que Javé concede são os filhos, seu salário é o fruto do ventre: os filhos da juventude são flechas na mão do guerreiro.” E Maria, envolvendo José com um abraço carinhoso, completa: “Feliz o homem que enche sua aljava com elas; não será derrotado na porta da cidade quando litigar com seus inimigos.” Ela sabia que seu marido não brilhava pela cultura e não entendia de provérbios, mas das suas mãos vinha boa parte do sustento da família, e seu trabalho subia ao céu como oração.

Pe. Itacir Brassiani msf

A videira e os ramos

João 15,01-08: Que vivam do seu Evangelho
Segundo o relato evangélico de João nas vésperas de sua morte, Jesus revela a seus discípulos seu desejo mais profundo: "Permanecei em mim". Conhece sua covardia e mediocridade. Em muitos momentos tem-lhes recriminado sua pouca fé. Se não permanecerem vitalmente unidos a ele, não conseguirão subsistir.
As palavras de Jesus não podem ser mais claras e expressivas: "Assim como o ramo que não fica unido à videira não pode dar fruto, vocês também não poderão dar fruto, se não ficarem unidos a mim". Se vocês não permanecerem  firmes naquilo que têm aprendido e vivido junto a ele, sua vida será estéril. Se eles não vivem de seu Espírito, o que foi iniciado por ele se extinguirá.
Jesus utiliza uma linguagem clara: "Eu sou a videira e vocês são os ramos". Nos discípulos deve correr a seiva que vem de Jesus. Eles jamais devem esquecer isso. Aquele que permanece em mim e eu nele, esse vai dar fruto abundante porque sem mim não podem fazer nada. Separados de Jesus os discípulos não podem fazer nada.
Jesus não somente pede-lhes que permaneçam nele, ele disse-lhes também que "suas palavras permaneçam neles". Que eles não as esqueçam. Que vivam do seu Evangelho. Essa é a fonte daquilo que hão de beber. Já foi dito em outra ocasião: "As palavras que eu vos digo são espírito e vida".
O Espírito do Ressuscitado permanece hoje vivo e operante na sua Igreja de múltiplas formas. Mas sua presença invisível e calada toma rasgos visíveis e voz concreta graças à lembrança guardada nos relatos evangélicos por aqueles que o conheceram de perto e o seguiram. Nos evangelhos entramos em contato com sua mensagem, seu estilo de vida e seu projeto do Reino de Deus.
Por isso, nos evangelhos encerra-se a força mais poderosa que possuem as comunidades cristãs para regenerar sua vida. A energia de que necessitamos para recuperar nossa identidade de seguidores de Jesus. O Evangelho de Jesus é a ferramenta pastoral mais importante para renovar hoje a Igreja.
Muitos bons cristãos de nossas comunidades somente conhecem os evangelhos "de segunda mão". Tudo o que eles sabem sobre Jesus e sua mensagem provém daquilo que eles conseguiram reconstruir a partir das palavras dos pregadores e dos catequistas. Eles vivem sua fé sem ter um contato pessoal com as "palavras de Jesus".
É difícil imaginar uma nova evangelização sem favorecer às pessoas um contato mais direto e imediato com os evangelhos. Não há força evangelizadora mais forte do que a experiência de escutar juntos o Evangelho de Jesus a partir de perguntas, dos problemas, dos sofrimentos e das esperanças de nosso tempo.
José Antônio Pagola

http://www.cebi.org.br/noticias.php?noticiaId=5598

quarta-feira, 29 de abril de 2015

QUINTO DOMINGO DA PÁSCOA (ANO B – 03.05.2015)

Jesus Cristo precisa de nós para humanizar o mundo.

A liturgia do quinto domingo da páscoa é inteiramente iluminada pela bela imagem da videira e dos ramos. Mas é importante lembrar o contexto literário desta bela metáfora: ela dá continuidade ao ensino que Jesus desenvolve no contexto da última ceia e do lava-pés, ao profundo e exigente diálogo pedagógico no qual ele, como Mestre, passa e repassa com intensidade e cordialidade aspectos centrais do seu ensino e do testamento que deixa aos seus Discípulos. O ambiente está menos para poesia e mais para testamento, para a comunicação da sua vontade mais profunda.
Jesus começa apresentando a si mesmo como a verdadeira videira. Portanto, ele não apenas toma a tradicional metáfora da videira e aplica a si mesmo, mas se contrapõe e toma o lugar de uma outra videira. Qual é a videira não-verdadeira, aquela que é ultrapassada por Jesus? É Israel, no seu sentido de unidade política e religiosa. Através profeta Jeremias Deus diz, dirigindo-se a Israel: “Eu havia plantado você como lavoura especial, com mudas legítimas. E como é que você se transformou em ramos degenerados de vinha sem qualidade?” (Jr 2,21; cf.  Is 5,1-7; cf. Ez 19,10-12).
Um segundo aspecto que Jesus sublinha é sua relação com os discípulos. Essa relação é ilustrada pelo vínculo entre a cepa da videira e os seus ramos. Trata-se de uma relação de recíproca dependência: a cepa só pode frutificar através dos ramos, e os ramos, por sua vez, só produzem frutos se permanecem ligados à cepa. “Fiquem unidos a mim e eu ficarei unido a vocês... Porque sem mim vocês não podem fazer nada.” Da mesma maneira que a videira necessita dos ramos para produzir uva, Jesus Cristo necessita hoje das nossas ações concretas para amar, servir e libertar....
Por outro lado, como os ramos nada podem sem a seiva que lhes vem gratuitamente da cepa, assim também os discípulos de Jesus pouco conseguem fazer de bom e duradouro se não permanecerem profunda e radicalmente ligados a Jesus Cristo. E essa união não se dá apenas no nível dos sentimentos ou dos pensamentos, mas da ação. Mais ainda: é a identificação com seu dinamismo de encarnação e com o dom total na ceia e na cruz. É na força dessa união que podemos ser sinais de ressurreição. Sem isso seremos como ramos estéreis.
Um terceiro aspecto ressaltado pela alegoria da videira é o seguinte: para que produza frutos bons e abundantes, esse vínculo dos discípulos com Jesus Cristo, como a inserção do ramo na cepa, não é um dado estático, algo automático ou tranquilo, mas um processo ativo que conhece exigências e requer decisões, um dinamismo de permanente limpeza e poda. Não podemos esquecer que a páscoa, antes de ser uma vitória olímpica sobre a morte, é o dom livre e exigente de si mesmo e a descida aos escuros corredores da morte. “Os ramos que dão fruto, o Pai os poda para que dêem mais frutos ainda.”
Não esqueçamos que, na cultura da uva, a prática da poda tem como objetivo eliminar os fatores de debilitação e de morte e, ao mesmo tempo, direcionar as energias para os frutos. E há também o corte dolorido e violento para enxertar o ramo numa cepa comprovadamente boa... Para o discípulo, o seguimento dos passos de Jesus Cristo na ceia, no lava-pés e na cruz é um caminho de progressiva inserção numa comunidade de irmãos e irmãs e de conversão do ‘eu’ para o ‘tu’ e para o ‘outro’. Sempre sem perder de vista que o objetivo dessa espécie de poda são os frutos...
Embora já saibamos, é bom recordar também que ficar unido a Jesus Cristo ou permanecer nele não significa simplesmente frequentar o culto ou a missa assiduamente. Quando Jesus pede ‘fiquem unidos a mim’, está insistindo que mantenhamos e aprofundemos nossa adesão ao caminho que ele propôs e percorreu: aceitar a vulnerabilidade para fazer-se próximo, não desperdiçar ou perder a vida mas entregá-la livremente para que todos vivam melhor. Jesus já havia dito: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu permaneço nele” (Jo 6,56)...
Jesus de Nazaré, videira verdadeira: sem a seiva da tua palavra morremos de anemia; sem a força que vem de ti, produzimos apenas frutos poucos e amargos. Dá-nos teu Espírito e sustenta-nos no amor fraterno e solidário aos nossos irmãos e irmãs. Recria tua Igreja na comunhão de carismas e ministérios. Dá-nos tua santa Seiva e suscita apóstolos destemidos, como aqueles da primeira hora. Sustenta-nos unidos contigo e, ao mesmo tempo, criativos e perseverantes na missão. É isso que te pedimos hoje, desejosos de que tua Palavra permaneça em nós e nós permaneçamos no teu amor. Amém! Assim seja!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 9,26-31 * Salmo 21 (22) * 1ª Carta de João 3,18-24 * Evangelho de São João 15,1-8)

quarta-feira, 22 de abril de 2015

QUARTO DOMINGO DA PÁSCOA (ANO B – 26.04.2015)

As diversas vocações expressam o amor do bom pastor.

A Igreja católica dedica o quarto domingo da páscoa à reflexão e oração pelas vocações. Nesta perspectiva é que recordamos que Jesus, crucificado e ressuscitado, é o pastor bom e exemplar, aquele que oferece livremente sua vida pelas ovelhas. É um pastor que não se preocupa com a própria carreira, mas pelos que sofrem, e até pelo destino dos não fazem parte do seu rebanho. O denominador comum das pessoas chamadas a seguir Jesus e a continuar sua missão, qualquer que seja sua vocação específica, é a compaixão, e celebrar a páscoa significa também continuar o pastoreio de Jesus.
Uma das mais belas imagens que o povo de Israel usou para falar de Deus e da sua relação conosco é a do pastor. Essa metáfora ressalta vários aspectos da relação entre Deus o o seu povo: a) Deus é como um pastor porque apascenta e guia seu o povo; b) Ele providencia o que é necessário para a vida do seu povo-rebanho; c) Ele também age como pastor porque defende as ovelhas fracas e procura pessoalmente as ovelhas perdidas até encontrá-las; d) Finalmente, Deus trata seu povo-rebanho com ternura e amizade, gratuidade e paciência, e com ele faz aliança especial.
Junto com a imagem de Mestre, os evangelhos nos apresentam claramente Jesus como o bom pastor vislumbrado antecipadamente pelo povo de Israel. Sua vida é uma cotidiana realização do amor pastoral: a) tem compaixão das multidões porque estão cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor (Mt 9,35-36); b) procura as ovelhas dispersas e em situação de risco, como as mulheres, os doentes e pecadores marginalizados (Mt 18,12-14); c) festeja o reencontro,  e diz que é maior sua alegria por um marginalizado resgatado que por noventa e nove que se consideram perfeitos (Lc 15,3-7).
No evangelho de hoje, apresentando-nos Jesus como bom pastor, João tem presente sua vida e suas ações concretase. Jesus é bom e excelente como o vinho abundante servido nas bodas de Caná. Ele é bom e porque não é mercenário: não foge nem esmorrece diante das perseguições, mas arrisca sua vida para que os mais fracos tenham plenas condições de vida. Mas ele é o pastor bom e excelente também porque estabelece um relacionamento próximo e personalizado com seu povo, bem diferente de um herói ou benfeitor distante, incapaz de se misturar com as pessoas comuns.
Jesus é o bom pastor porque conhece cada pessoa pelo nome, por mais simples que seja. Ele ouve seus clamores e conhece seus sofrimentos, desce para defendê-las e fazê-las subir (cf. Ex 3,7-10). Ele não vive para fundar uma instituição mas reunir as pessoas dispersas. É o pastor bom e exemplar porque não se orienta por fanatismos esclusivistas, não se detém nas cercas ou muros religiosos, nacionais, étnicos ou de classe... “Tenho também outras ovelhas que não são deste curral. Também a elas devo conduzir. Elas ouvirão a minha voz e haver um só rebanho e um só pastor.”
Pedro e João demonstram que aprenderam do Mestre o que significa ser bons pastores. Eles não dão as costas ao paralítico que depende de esmolas. Voltam a ele o olhar e o convidam a caminhar com as próprias forças. Não se trata do poder de fazer milagres, mas da coragem de enfrentar a inércia do templo, que não faz mais que manter e reforçar a dependência e a inferioridade das pessoas. Por essa ousadia, os apóstolos acabam sendo presos, mas, assim que são libertados, continuam afirmando que é em nome de Jesus de Nazaré, daquele que as autoridades condenaram, que o paralítico foi curado.
Em Jesus e nos seus discípulos temos o paradigma de todas as vocações. Precisamos sim pedir ao dono do campo que chame mais gente para seu trabalho, mas não esqueçamos de pedir também que eles sejam pastores e pastoras inspirados no Bom Pastor. Para que servem vocações que conhecem apenas dogmas e leis e ignoram as necessidades concretas do rebanho? Qual é o valor de um clero e de uma vida consagrada que mataram o gérmen da profecia e se deixaram seduzir pela carreira e pela comodidade, que se preocupam mais consigo mesmos que que as necessidades do rebanho?
Jesus Amigo, bom e belo pastor. Tu nos conheces, nos amas e nos chamas pelo nome para que sejamos parecidos contigo, filhos do teu coração, amigo dos teus amigos, continuadores da tua missão. Com a vida e com a Palavra, nos ensinas que onde há amor sem fronteiras também há vida sem limites. De ti apredemos que, para viver plenamente, precisamos fazer-nos dom e identificar-nos com teu e nosso Pai. Faz de nossas famílias e comunidades eclesiais verdadeiras sementeiras de gente capaz de amar e servir como tu amas e serves, tratando os últimos da sociedade como primeiros do Reino. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 4,8-12 * Salmo 117 (118) * 1ª Carta de João 3,1-2 * Evangelho de São João 10,11-18)

Jesus, o bom pastor

João 10,11-18: Jesus é o Bom Pastor
SITUANDO
Jesus é o Bom Pastor que veio para que todos tenham vida em abundância! O discurso sobre o Bom Pastor traz três comparações ligadas entre si: Jesus fala do pastor e dos assaltantes (Jo 10,1-5); Jesus é a porteira das ovelhas (Jo 10,6-10); Jesus é o Bom Pastor (Jo 10,11-18).
Temos aqui um outro exemplo de como foi escrito o Evangelho de João. O discurso de Jesus sobre o Bom Pastor (Jo 10, 1-18) é como um tijolo inserido numa parede já pronta. Com ele a parede ficou mais forte e mais bonita. Imediatamente antes, em Jo 9,40-41, João falava da cegueira dos fariseus. A conclusão natural desta discussão sobre a cegueira está logo depois, em Jo 10,19-21. Ora, o discurso sobre o Bom Pastor foi inserido aqui, porque, como veremos, ensina como tirar esse tipo de cegueira dos fariseus.
COMENTANDO
João 10,1-5: 1ª comparação: entrar pela porteira e não por outro lugar. 
Jesus inicia o discurso com a comparação da porteira: "Quem não entra pela porteira mas sobe por outro lugar é ladrão e assaltante! Quem entra pela porteira é o pastor das ovelhas!" Naquele tempo, os pastores cuidavam do rebanho durante o dia. Quando chegava a noite, levavam as ovelhas para um grande redil ou curral comunitário, bem protegido contra ladrões e lobos. Todos os pastores de uma mesma região levavam para lá o seu rebanho. Um porteiro tomava conta de tudo durante a noite. No dia seguinte, de manhã cedo, o pastor chegava, batia palmas na porteira e o porteiro abria. O pastor entrava e chamava as ovelhas pelo nome. As ovelhas reconheciam a voz do seu pastor, levantavam e saiam atrás dele para a pastagem. As ovelhas dos outros pastores ouviam a voz, mas elas não se mexiam, pois era uma voz estranha para elas. De vez em quando, aparecia o perigo de assalto. Ladrões entravam por um atalho ou derrubavam a cerca do redil, feita de pedras amontoadas, para roubar as ovelhas. Eles não entravam pela porteira, pois lá havia o guarda que tomava conta.
João 10,6-10: 2ª comparação: Jesus é a porteira. 
Os ouvintes, os fariseus (Jo 9,40-41), não entenderam o que significava "entrar pela porteira". Jesus então explicou: "Eu sou a porteira das ovelhas. Todos os que vieram antes de mim eram ladrões e assaltantes". De quem Jesus está falando nesta frase tão dura? Provavelmente, se referia a líderes religiosos que arrastavam o povo atrás de si, mas que não respondiam às esperanças do povo. Não estavam interessados no bem do povo, mas sim no próprio bolso e nos próprios interesses. Enganavam o povo e o deixavam na pior. Entrar pela porteira é o mesmo que agir como Jesus agia. O critério básico para discernir quem é pastor e quem é assaltante, é a defesa da vida das ovelhas. Jesus pede para o povo não seguir as pessoas que se apresentam como pastor, mas não buscam a vida do povo. É aqui que ele disse aquela frase que até hoje cantamos: "Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância!" Este é o critério!
João 10,11-15: 3ª comparação: Jesus é o bom pastor.
Jesus muda a comparação. Antes, ele era a porteira das ovelhas. Agora, é o pastor das ovelhas. Todo mundo sabia o que era um pastor e como ele vivia e trabalhava. Mas Jesus não é um pastor qualquer, mas sim o bom pastor! A imagem do bom pastor vem do AT. Dizendo que é o Bom Pastor, Jesus se apresenta como aquele que vem realizar as promessas dos profetas e as esperanças do povo. Veja por exemplo a belíssima profecia de Ezequiel (Ez 34,11-16). Há dois pontos em que Jesus insiste: (1) Na defesa da vida das ovelhas: o bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas. (2) No mútuo reconhecimento entre pastor e ovelhas: o Pastor conhece as suas ovelhas e elas conhecem o pastor. Jesus diz que no povo há uma percepção para saber quem é o bom pastor. Era isto que os fariseus não aceitavam. Eles desprezavam as ovelhas e as chamavam de povo maldito e ignorante (Jo 7,49; 9,34). Eles pensavam ter o olhar certo para discernir as coisas de Deus. Na realidade eram cegos.
O discurso sobre o Bom Pastor ensina duas regras como curar este tipo bastante frequente de cegueira: 1) Prestar muita atenção na reação das ovelhas, pois elas reconhecem a voz do pastor. 2) Prestar muita atenção na atitude daquele que se diz pastor para ver se o interesse dele é a vida das ovelhas, sim ou não, e se ele é capaz de dar a vida pelas ovelhas. Certa vez, na festa da tomada de posse de um novo bispo, as "ovelhas" colocaram uma faixa na porta da igreja que dizia: "As ovelhas não conhecem o pastor!" As "ovelhas" não foram consultadas. Advertência séria para quem nomeia os bispos.
João 10,16-18: A meta onde Jesus quer chegar: um só rebanho e um só pastor.
Jesus abre o horizonte e diz que tem outras ovelhas que não são deste redil. Elas ainda não ouviram a voz de Jesus, mas quando a ouvirem, vão perceber que ele é o pastor e vão segui-lo. É a dimensão ecumênica universal.
ALARGANDO
A Imagem do Pastor na Bíblia
Na Palestina, a sobrevivência do povo dependia em grande parte da criação de cabras e ovelhas. A imagem do pastor guiando suas ovelhas para as pastagens era conhecida por todos, como hoje todos conhecem a imagem do motorista de ônibus. Era normal usar a imagem do pastor para indicar a função de quem governava e conduzia o povo. Os profetas criticavam os reis por serem maus pastores que não cuidavam do seu rebanho e não o conduziam para as pastagens (Jr 2,8; 10,21; 23,1-2). Esta crítica dos maus pastores foi crescendo na mesma medida em que, por culpa dos reis, o povo acabou sendo levado para o cativeiro (Ez 34,1-10; Zc 11,4-17).
Diante da frustração sofrida com os desmandos dos maus pastores, aparece a comparação com o verdadeiro pastor do povo, que é o próprio Deus: "O Senhor é meu pastor e nada me falta" (Sl 23,1-6; Gn 48,15). Os profetas esperam que, no futuro, Deus venha, ele mesmo, como pastor guiar o seu rebanho (Is 40,11; Ez 34,11-16). E esperam que, desta vez, o povo saiba reconhecer a voz do seu pastor: "Oxalá ouvísseis hoje a sua voz!" (Sl 95,7). Esperam que Deus venha como Juiz que fará o julgamento entre as ovelhas do rebanho (Ez 34,17). Surgem o desejo e a esperança de que, um dia, Deus suscite bons pastores e que o messias seja um bom pastor para o povo de Deus (Jr 3,15; 23,4).
Jesus realiza esta esperança e se apresenta como o Bom Pastor, diferente dos assaltantes que roubam o povo. Ele se apresenta também com o Juiz do povo que, no final, fará o julgamento como um pastor que sabe separar as ovelhas dos cabritos (Mt 25,31-46). Em Jesus se realiza a profecia de Zacarias que diz que o bom pastor será perseguido pelos maus pastores, incomodados pela denúncia que ele faz: "Vão bater no pastor e as ovelhas se dispersarão!" (Zc 13,7). No fim, Jesus é tudo: é a porteira, é o pastor e é o cordeiro!
Carlos Mesters, Mercedes Lopes e Francisco Orofino

http://www.cebi.org.br/noticias.php?noticiaId=5590

sexta-feira, 17 de abril de 2015

TERCEIRO DOMINGO DA PÁSCOA (ANO B – 19.04.2015)

Da fé na ressurreição nasce o compromisso com a missão.

Continuamos caminhando à luz de Jesus Cristo, o santo e justo preso e assassinado, depois descoberto e experimentado vivo e ressuscitado pela comunidade dos discípulos. As celebrações de cada domingo nos ajudam a ajuntar, pouco a pouco, os fragmentos das diversas experiências e recompor um mosaico capaz de ilustrar como Jesus ressuscitado se manifesta e onde se deixa encontrar. Mas as escrituras revelam também as dificuldades que enfrentamos para organizar nossa vida a partir de um Deus crucificado e assimilar as exigências que essa fé traz consigo.
Impressiona a diferença entre a atitude dos díscípulos nos primeiros tempos após a crucifixão e ressurreição de Jesus e nas cenas descritas pelos Atos dos Apóstolos. A cena do Evangelho de hoje ocorre depois do testemunho das mulheres e da comprovação por parte de Pedro de que a sepultura estava vazia (Lc 24,1-12); depois da manifestação de Jesus aos dois discípulos na estrada de Emaús e na partilha do pão (Lc 24,13-35); e depois da aparição a Pedro (Lc 24,34). Apesar disso, a nova manifestação de Jesus espanta, e eles têm dificuldade de acreditar.
A cruz é a verdadeira pedra na qual os discípulos tropeçam. Para eles, é difícil conjugar a idéia de um Deus que se caracteriza pelo poder e pelo saber com um homem que grita impotente e morre abandonado na cruz. Dizer que Jesus não é o Messias, mas um profeta fracassado, ou pensar que Jesus é mesmo o Messias, mas a cruz foi um faz de conta é uma saída fácil, mas também frágil. Ainda hoje muitos cristãos um Cristo vitorioso e glorioso. No máximo, aceitam que ele passou pela cruz, mas muito rapidamente, e seu sacrifício foi compensado pela imensa glória que depois recebeu do Pai...
A ressurreição de Jesus não pode ser vista apenas como uma espécie de prêmio que o Pai dá ao Filho obediente e sofredor. O que se afirma com a ressurreição de Jesus é algo bem mais sério e profundo que a simples ressurreição dos cadáveres. Aquele que ressuscitou não é alguém que morreu com idade avançada num hospital de primeira classe, rodeado de familiares e amigos. O ressuscitado é Jesus de Nazaré, aquele que resgatou a dignidade dos excluídos e foi condenado injustamente. Ressuscitando-o Deus confirma a validade e a justeza da causa que o levou à morte.
Diante do espanto e da perturbação dos discípulos, Jesus mostra-lhes as chagas nas mãos e nos pés e pede para que as toquem. Jesus quer sublinhar a continuidade do amor que o levou a abraçar a cruz. As feridas nas mãos e nos pés do corpo ressuscitado são o sinal eloquente de que Jesus é fiel e se tornou nosso advogado de defesa, como diz São João. Ele não é fruto da fantasia de um grupo de discípulos, e chega instaurando uma paz verdadeira.  Para evitar qualquer fantasia, Jesus pede algo para comer, recebe um peixe e o come diante dos discípulos tão alegres quanto espantados. 
Ancorado na fé em  Jesus Cristo, Pedro curou e devolveu a dignidade a um miserável paralítico. E diante do assombro da multidão que acorria ao templo, proclama: “A fé em Jesus deu saúde perfeita a esse homem que está na presença de todos vocês.” Os cristãos dão testemunho da ressureição de Jesus à medida em que se deixam guiar pelo dinamismo que animou e deu sentido à sua vida: o amor ao próximo. Esse é o mandamento e o testamento de Jesus, e “quem diz que conhece a Deus mas não cumpre seus mandamentos é mentiroso”, diz João.
Na sua manifestação aos discípulos, Jesus lhes abre a inteligência para que compreendam as escrituras. Não se trata de uma longa e completa catequese bíblica, mas de um esclarecimento sobre a imagem de Messias: seu caminho se desvia do poder e da impassibilidade e passa pela aceitação do sofrimento solidário e, em seu nome, as pessoas serão convocadas à conversão e perdoadas. Não é possível adentrar no sentido da ressurreição se não nos movemos num horizonte de esperança, se não aceitamos a possibilidade de uma transformação profunda de todas as coisas, já em curso.
Jesus de Nazaré, Servidor da humanidade e Aurora da liberdade: sabemos que em ti começamos a vencer a morte nas suas expressões mais terríveis, mas temos consciência que a luta continua. Abre nossa inteligência para vivermos como ressuscitados, com olhos abertos às chagas das pessoas que continuam sofrendo e às iniciativas solidárias que ocorrem fora das nossas Igrejas. Faz com que nossa esperança na ressurreição corte pela raíz as tentativas de reduzir nosso cristianismo a um exercício intelectual ou à aceitação de um conjunto de dogmas e preceitos. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 3,13-19 * Salmo 4 * 1ª Carta de João 2,1-5 * Evangelho de Lucas 24,35-48)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Homem-barco

As vezes é impensável querer retornar.
Sempre temos uma ambição descontrolada por seguir em frente,
tanto que esquecemos a necessidade de retornar.
Em alguns momentos é necessário voltar,
mesmo que seja difícil lhe dar com a dor de encontrar a casa vazia,
com portões quebrados,
janelas para concertar
e paredes para pintar.
É difícil perceber que a casa não suporta mais os paliativos,ù
Que ela requer atenção, cuidado.
Em outro tempo, a vida pedirá que a casa seja repovoada,
que os jardins sejam semeados com sementes novas,
de raízes profundas.
Ah, como admiro a esperteza do homem que transforma a sua casa em barco,
onde habita um pouquinho de tudo.
O homem do barco-casa sente a necessidade de ter um lugarzinho,
mas tem convicção de que o mundo tem vários mares a serem descobertos,
traz consigo o desejo de povoar, de aprender,
ou apenas o desejo de viver junto.
O homem do mar tem em seu olhar uma população de sonhos,
é profundo como um oceano.
O homem-mar também não esquece da necessidade de entrar um pouco no barco,
apenas para descansar. 
Noviço Paulo Henrique msf

domingo, 12 de abril de 2015

Evangelho dominical: 12.04.2014

VIVER DA SUA PRESENÇA


O relato de João não pode ser mais sugestivo e interpelador. Só quando vêm a Jesus ressuscitado no meio deles, o grupo de discípulos se transforma. Recuperam a paz, desaparecem os seus medos, enchem-se de uma alegria desconhecida, sentem o alento de Jesus sobre eles e abrem as portas porque se sentem enviados a viver a mesma missão que Ele havia recebido do Pai.
A crise actual da Igreja, os seus medos e a sua falta de vigor espiritual têm a sua origem a um nível profundo. Com frequência, a ideia da ressurreição de Jesus e da sua presença no meio de nós é mais uma doutrina pensada e pregada, que uma experiência vivida.
Cristo ressuscitado está no centro da Igreja, mas a sua presença viva não está arraigada em nós, não está incorporada na substância das nossas comunidades, não nutre habitualmente os nossos projectos. Após vinte séculos de cristianismo, Jesus não é conhecido nem compreendido na Sua originalidade. Não é amado nem seguido como foi pelos Seus discípulos e discípulas.
Nota-se de seguida quando um grupo ou uma comunidade cristã se sente como habitada por essa presença invisível, mas real e activa de Cristo ressuscitado. Não se contentam em seguir rotineiramente as directrizes que regulam a vida eclesial. Possuem uma sensibilidade especial para escutar, buscar, recordar e aplicar o Evangelho de Jesus. São os espaços mais sãos e vivos da Igreja.
Nada nem ninguém nos pode aportar hoje a força, a alegria e a criatividade que necessitamos para enfrentarmos uma crise sem precedentes, como pode faze-lo a presença viva de Cristo ressuscitado. Privados do Seu vigor espiritual, não sairemos da nossa passividade quase inata, continuaremos com as portas fechadas ao mundo moderno, seguiremos fazendo «o mandado», sem alegria nem convicção. Onde encontraremos a força que necessitamos para recriar e reformar a Igreja?
Temos de reagir. Necessitamos de Jesus mais do que nunca. Necessitamos viver da Sua presença viva, recordar em todas as ocasiões os Seus critérios e o Seu Espírito, repensar constantemente a Sua vida, deixa-lo ser o inspirador da nossa ação. Ele pode-nos transmitir mais luz e mais força que ninguém. Ele está no meio de nós, comunicando-nos a Sua paz, a Sua alegria e o Seu Espírito.

José Antonio Pagola

sábado, 11 de abril de 2015

Niilismo e sucidio

O SUICÍDO DO CO-PILOTO: EXPRESSÃO DO NIILISMO DA CULTURA PÓS-MODERNA?

O suicídio premeditado do co-piloto Andreas Lubitz daGermanwings levando consigo 149 pessoas, suscita várias interpretações. Havia seguramente um componente psicológico de depressão, associado ao medo de perder o posto de trabalho. Mas para chegar a esta solução desesperada de, ao voluntariamente pôr fim a sua vida, levando consigo outros 149, implica em algo muito profundo e misterioso que precisamos de alguma forma tentar decifrar.
Atualmente este medo de perder o emprego e viver sob uma grave frustração por não poder nunca mais realizar o seu sonho, leva a não poucas pessoas à angústia, da angústia, à perda do sentido de vida, e esta perda, à vontade de morrer. A crise da geosociedade está fazendo surgir uma espécie de “mal-estar na globalização” replicando o “Mal-estar na cultura de Freud.
Por causa da crise, as empresas e seus gestores levam a competitividade até a um limite extremo, estipulam metas quase inalcançáveis, infundindo nos trabalhadores, angústias, medo e, não raro, síndrome de pânico. Cobra-se tudo deles: entrega incondicional e plena disponibilidade, dilacerando sua subjetividade e destruindo as relações familiares. Estima-se que no Brasil cerca de 15 milhões de pessoas sofram este tipo de depressão, ligada às sobrecargas do trabalho.
A pesquisadora Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalho, observou que no ano de 2010 numa pesquisa ouvindo 400 pessoas, cerca de um quarto delas teve ideias suicidas por causa da excessiva cobrança no trabalho. Continua ela: “é preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas”. Especialmente são afetados os bancários do setor financeiro, altamente especulativo e orientado para a maximalização dos lucros.
Uma pesquisa de 2009 feita pelo professor Marcelo Augusto Finazzi Santos, da Universidade de Brasília, apurou que entre 1996 a 2005, a cada 20 dias, um bancário se suicidava, por causa das pressões por metas, excesso de tarefas e pavor do desemprego.
A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de três mil pessoas se suicidam diariamente, muitas delas por causa da abusiva pressão do trabalho. O Le Monde Diplomatique de novembro de 2011 denunciou que entre os motivos das greves de outubro na França, se achava também o protesto contra o acelerado ritmo de trabalho imposto pelas fábricas causando nervosismo, irritabilidade e ansiedade. Relançou-se a frase de 1968 que rezava: “metrô, trabalho, cama”, atualizando-a agora como “metrô, trabalho, túmulo”. Quer dizer, doenças letais ou o suicídio como efeito da superexploração do processo produtivo no estilo ultra acelerado norte-americano, introduzido na França.
Estimo que, no fundo de tudo, estamos face à aterradoras dimensões niilistas de nossa cultura pós-moderna. O termo, niilismo, surgiu em 1793 durante a Revolução Francesa por Anacharsis Cloots, um alemão-francês e foi divulgado pelos anarquistas russos a partir de 1830 que diziam: “tudo está errado, por isso tudo tem que ser destruído e temos que recomeçar do zero”. Depois Nietzsche retoma o tema do niilismo, aplicando-o ao cristianismo que, segundo ele, se opõe ao mundo da vida. No após guerra, em seu seminário sobre Nietzsche, Heidegger vai mais longe ao afirmar, creio que de forma exagerada, que todo o Ocidente é niilista porque esqueceu o Ser em favor do ente. O ente, sempre finito, não pode preencher a busca de sentido do ser humano. Alexandre Marques Cabral dedicou dois volumes ao tema: “Niilismo e Hirofania: Nietzsche e Heidegger” (2015) e Clodovis Boff três volumes sobre a questão do Sentido e do Niilismo.
Em setores da pós-modernidade, o niilismo se transformou na doença difusa de nosso tempo, quer dizer, tudo é relativo e, no fundo, na vale a pena; a vida é absurda, as grandes narrativas de sentido perderam seu valor, as relações sociais se liquidificaram e vigora um assustador vazio existencial.
Neste contexto, se retomam tradições niilistas da filosofia ocidental como o mito, citado por Aristóteles no seu Eudemo, do fauno Sileno que diz: “não nascer é melhor que nascer e uma vez nascido, é melhor morrer o mais cedo possível”. Na própria Bíblia ressoam expressões niilitas que nascem da percepção das tragédias da vida. Assim diz o Eclesiastes: “mais feliz é quem nem chegou a existir e não viu a iniquidade que se comete sob o sol” (4,3-4). O nosso Antero de Quental (+1860) num poema afirma: “Que sempre o mal pior é ter nascido”.
Suspeito que esse mal-estar generalizado na nossa cultura, contaminou a alma do co-piloto Lubitz. Também pessoas que entram nas escolas e matam dezenas de estudantes em vários países e até entre nós em 2011 no Rio na escola Tasso da Silveira quando um jovem matou mais de umaz dezena de alunos, revelam o mesmo espírito niilista. Medo difuso, decepções e frustrações destruíram em Lubitz o horizonte de sentido da vida. Quis encontrar na morte o sentido que lhe foi negado na vida. Escolheu tragicamente o caminho do suicídio.
O suicído pertence à tragédia humana que sempre nos acompanha. Por isso, cabe respeitar o caráter misterioso do suicídio. Talvez seja a busca desesperada de uma saída num mundo sem saída pessoal. Diante do mistério calamos, pasmados e reverentes, por mais desastrosas que possam ser as consequências.

Leonardo Boff

Beatificaçao de Dom Helder Camara

DOM HELDER E A CNBB

Nas proximidades de mais uma assembléia da CNBB, foi divulgada nestes dias uma notícia que promete muitos desdobramentos. Trata-se do processo de beatificação de Dom Helder. Ele abre caminho para invocar Dom Helder como santo brasileiro, a quem poderemos confiar tantas causas importantes de nosso país,  pelas quais ele lutou em sua vida.
Antes que ninguém, a CNBB poderá se habilitar a ter Dom Helder como seu padroeiro. Sua figura já se encontra no salão de reuniões na sede da CNBB em Brasília.  Ninguém mais que Dom Helder soube encarnar as causas da CNBB.
A história se encarrega de comprovar a estreita ligação que existiu entre Dom Helder e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Foi ele que teve a iniciativa, e levou em frente a idéia de constituir uma entidade que congregasse, oficialmente, os Bispos da Igreja Católica no Brasil.
Era no começo dos anos 50. Dom Helder tinha a viva experiência de como era importante a articulação dos leigos do Brasil, através da Ação Católica. A partir desta constatação, projetou sua hipótese, que ele passou a sonhar com crescente determinação. Se os leigos podiam se articular, muito mais os bispos poderiam multiplicar sua atuação, se contassem com uma entidade que lhes desse respaldo jurídico e permitisse uma estratégia de ação.
Quando ainda não era Bispo, Dom Helder foi a Roma, onde esperava confiar sua utopia para alguém que ajudasse a fazê-la acontecer.
Providencialmente, encontrou a pessoa certa. Conheceu o Monsenhor Montini, o futuro Papa Paulo VI. Ambos foram falar com Pio XII, e de imediato perceberam o incentivo que o Papa lhes dava.
Daí nasceu a decisão de se criar a CNBB. Com desenvoltura e lucidez, elaboraram o estatuto provisório, que foi dando forma à nova entidade, que passou cedo a ser reconhecida pelo povo, através de sua sigla, que logo foi adquirindo notoriedade.
De tal modo que, já em 1952, dez anos antes do início do Concílio, os Bispos do Brasil já tinham sua entidade representativa, que permitia agirem de modo mais eficaz e articulado. 
A CNBB mostrou sua validade, especialmente durante o Concílio,  quando sua experiência de articulação ajudou muito o desenrolar do próprio Concílio. Ela guardará sempre a marca de Dom Helder. Foi ele que a imaginou, e foi ele que a conduziu durante muitos anos como Secretário Geral.
Agora, a abertura do processo de beatificação vem ratificar a importância da CNBB, que vai aprimorando sua atuação, assimilando a experiência dos anos.
Vincular Dom Helder com a CNBB é cultivar nossa consciência histórica, sempre tão importante para discernir os novos apelos que a realidade nos apresenta.
Junto com Dom Helder poderíamos colocar uma plêiade de outros Bispos, beneméritos por sua atuação e seu testemunho de vida. Um deles devemos citar quando falamos de Dom Helder. E´ Dom Luciano. Ele também já está em vias de ser beatificado, sendo sua causa assumida pela Arquidiocese de Mariana. Entre os dois, a Providência colocou caprichosamente suas pegadas. Tanto Dom Helder, como Dom Luciano, morreram no dia 27 de agosto. Dom Helder em 1999. Dom Luciano em 2006.
Para  concluir hoje esta breve evocação de Dom Helder, convém lembrar outro grande bispo latino americano, que finalmente será beatificado no próximo mês de maio. E´ Dom Oscar Romero, bispo de El Salvador. Ele foi morto quando celebrava a eucaristia, no dia 24 de março de 1980.
Bem vindas as beatificações que nos permitem recuperar  a memória de nossa caminhada.  È uma honra, e um compromisso, incluir em nossa história a lembrança de pessoas tão marcadas pela graça de Deus.          
Dom Romero, Dom Helder, Dom Luciano, e tantos outros, rogai por nós!

 D. Demétrio Valentini