segunda-feira, 29 de junho de 2015

Perspectivas da Laudato Sii

PRESERVAR A PERSPECTIVA SINGULAR DO PAPA: A ECOLOGIA INTEGRAL
O Papa Francisco operou uma grande virada no discurso ecológico ao passar da ecologia ambiental para a ecologia integral. Esta inclui a ecologia político-social, a mental, cultural, a educacional, a ética e a espiritual.
Há o risco de que esta visão integral seja assimilada dentro do costumeiro discurso ambiental, não se dando conta de que todas as coisas, saberes e instâncias são interligadas. Quer dizer o aquecimento global tem a ver com a fúria industrialista, a pobreza de boa parte da humanidade está relacionada com o modo de produção, distribuição e consumo, que a violência contra a Terra e os ecossistemas é uma deriva do paradigma de dominação que está na base de nossa civilização dominante já há quatro séculos, que o antropocentrismo é consequência da compreensão ilusória de que somos donos das coisas e que elas só gozam de sentido na medida em que estão colocadas ao nosso bel-prazer. 
Ora, é essa cosmologia (conjunto de idéias, valores, projetos, sonhos e instituições) leva o Papa a dizer:”nunca temos maltratado e ofendido nossa casa comum como nos últimos dois séculos”(n.53).
Como superar essa rota perigosa? O Papa responde: ”com uma mudança de rumo” e ainda mais com a disposição de “delinear grandes percursos de diálogo que nos ajudem a sair desta espiral de autodestruição na qual estamos afundando”(n.163). Se nada fizermos podemos ir ao encontro do pior. Mas o Papa confia na capacidade criativa dos seres humanos que juntos poderão formular o grande ideal :”um só mundo e um projeto comum”(164).
Bem diversa é a visão imperante e imperial presente na mente dos que controlam as finanças e os rumos das políticas mundiais:”um só mundo e um só império”.  Para enfrentar os múltiplos aspectos críticos de nossa situação o Papa propõe a ecologia integral. E lhe dá o correto fundamento: “Do momento que tudo está intimamente relacionado e que os atuais problemas exigem um olhar que atenda a todos os aspectos da crise mundial….proponho uma ecologia integral que compreenda claramente as dimensões humanas e sociais”(n.137).
O pressuposto teórico se deriva da nova cosmologia, da física quântica, da nova biologia, numa palavra, do novo paradigma contemporâneo que implica a teoria da complexidade e do caos (destrutivo e generativo). Nessa visão o repetia um dos fundadores da física quântica Werner Heisenberg: “tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo é relação e nada existe fora da relação”.
Exatamente essa leitura o Papa a repete inumeráveis vezes, constituindo o tonus firmus de suas explanações. Seguramente a mais bela e poética das formulações a encontramos no número 92 onde enfatiza: “tudo está em relação e todos nós seres humanos estamos unidos como irmãos e irmãs …com todas as criaturas que se unem conosco com terno e fraterno afeto, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe Terra (n.92).
Essa visão existe já há quase um século. Mas nunca conseguiu se impor na política e na condução dos problemas sociais e humanos. Todos permanecemos ainda reféns do velho paradigma que isola os problemas e para cada um procura uma solução específica sem se dar conta de que essa solução pode ser maléfica para outro problema. Por exemplo, resolve-se o problema da infertilidade dos solos com nutrientes químicos que, por sua vez, entram na terra, atingem o nível freático das águas ou os aquíferos, envenenando-os.
A encíclica nos poderá servir de instrumento educativo para apropriarmo-nos desta visão inclusiva e integral. Por exemplo, como assevera a encíclica:“quando falamos de ambiente nos referimos a uma particular relação entre a natureza e a sociedade; isso nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós….somos incluídos nela, somos parte dela”(n.139).
E continua dando exemplos convincentes: “toda análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, trabalhistas, urbanos e da relação de cada pessoa consigo mesma que cria um determinado modo de relações com os outros e com o ambiente”(n.141). Se tudo é relação, então a própria saúde humana depende da saúde da Terra e dos ecossistemas. Todas as instâncias se entrelaçam para o bem ou para o mal. Essa é textura da realidade, não opaca e rasa mas complexa e altamente relacionada com tudo.
Se pensássemos nossos problemas nacionais nesse jogo de inter-retro-relação, não teríamos tantas contradições entre os ministérios e as ações governamentais. O Papa nos sugere caminhos. Estes são certeiros e nos podem tirar da ansiedade em que nos encontramos face ao nosso futuro comum.
Teilhard de Chardin tinha razão quando nos anos 30 do século passado escrevia: “A era das nações já passou. A tarefa diante de nós agora, se não pereceremos, é construir a Terra” . Cuidando da Terra com terno e fraterno afeto no espírito de São Francisco de Assis e de Francisco de Roma, podemos seguir “caminhando e cantando” como conclui a encíclica, cheios de esperança. Ainda teremos futuro e iremos irradiar.

Leonardo Boff

quinta-feira, 25 de junho de 2015

SOLENIDADE DE S. PEDRO E S. PAULO (ANO B – 28.06.2015)

Ninguém consegue algemar o Evangelho de Jesus Cristo!

Estamos concluindo este mês cheio de memórias de santos populares com a solenidade de São Pedro e São Paulo. Escutemos e acolhamos com reverência o testemunho destes irmãos maiores, colunas que sustentam as comunidades cristãs. Mas, para chegar à vida real destes personagens é preciso escutar o testemunho das Escrituras. Se é verdade que Pedro é o primeiro líder dos cristãos e Paulo é o apóstolo dos povos, também é certo que ambos, cada um a seu modo e a seu tempo, foram discípulos de Jesus e passaram por sucessivas crises e dificuldades, provaram a prisão e foram martirizados.
Esqueçamos por um instante a cena contada por Mateus e centremos nossa atenção no acontecimento narrado nos Atos dos Apóstolos. Pedro, o primeiro Papa foi presidiário! “Para que servem as chaves prometidas por Jesus Cristo se não ajudam a soltar as algemas que o prendem ou abrir a porta da prisão, mantida sob rigorosa vigilância?” Pedro estava imerso na penumbra desta e outras perguntas quando uma luz iluminou sua cela, uma mão tocou seu ombro e uma voz ordenou que se levantasse. As algemas caíram, os guardas não viram nada e a porta que separava a cela da cidade se abriu sozinha...
Depois de ter sido um fariseu zeloso e violento e de ter acumulado muitos méritos e honras por causa disso, Paulo fez a experiência de ser conquistado por Jesus Cristo e, diante do bem supremo desta acolhida gratuita e imerecida, considerou tudo o mais como lixo e déficit na contabilidade da vida (cf. Fil 3,1-14) e se lançou incansavelmente no anúncio desta boa notícia, especialmente às pessoas de origem pagã. O zelo e o ardor que Paulo demonstrara pelo judaísmo se transformou em zelo pela fé em Jesus Cristo. Com isso, perdeu de vez a tranquilidade...
Esta complexa trajetória de vida atraiu contra Paulo a desconfiança dos próprios cristãos e o ódio dos seus irmãos judeus. Depois de sucessivos enfrentamentos e perseguições, ele também acabou na prisão. Sendo cidadão romano, exigiu o direito de ser julgado decentemente em Roma, e para lá foi conduzido. Entretanto, ninguém conseguiu colocar sob algemas aquilo que o fazia livre: a Boa Notícia de Jesus Cristo. “Por ele, eu tenho sofrido até ser acorrentado como um malfeitor. Mas a Palavra de Deus não está acorrentada”, escreveu ele ao seu fiel amigo e companheiro Timóteo (2Tm 2,9).
Pedro e Paulo são filhos, irmãos e pais da fé numa Igreja que confirmou com a vida aquilo que anunciou com as palavras. De um lado, Pedro, Paulo e os demais cristãos detidos mantêm contato com as suas comunidades de base, inclusive através de cartas às suas principais lideranças; de outro, as comunidades não ficam indiferentes, apesar da crise de fé provocada por uma perseguição feita em nome de Deus e da religião, assim como pelos riscos políticos e sociais que estas relações implicam. O vínculo entre a comunidade dos discípulos e seus líderes presos se mostra de um modo singelo e comovente no relato dos Atos dos Apóstolos que a liturgia nos propõe hoje (cf. 12,1-11).
As escrituras dizem que “enquanto Pedro era mantido na prisão, a Igreja orava continuamente por ele.” É neste contexto que Pedro experimenta a presença fiel de Deus também na prisão. Logo que é libertado do cárcere, vai à casa da mãe de João Marcos, onde a comunidade está reunida em oração. Quando Rosa, a mãe de Marcos, abre a porta e vê que é Pedro, é tomada de tamanha alegria que o deixa plantado do lado de fora e vai anunciar à comunidade reunida, a qual pensa que Rosa está doida. Aberta a porta, Pedro entra e conta entusiasmado o que havia acontecido.
O que sustenta as Igrejas e comunidades cristãs é o encontro com Deus em Jesus Cristo. O que o evangelho de hoje nos propõe é substancialmente isso. Num lugar marcado pelo domínio estrangeiro, Jesus interroga seus discípulos sobre o que pensam dele. E Pedro é o primeiro dentre todos os seguidores a reconhecê-lo e proclamá-lo Messias. Só quem está aberto e sintonizado com a lógica de Deus pode reconhecer a presença de Deus nas ações e palavras deste filho da humanidade e irmão de todos os seres humanos. Esta é a base sólida sobre a qual Jesus Cristo constrói a comunidade cristã.
Queridos Pedro e Paulo, apóstolos e irmãos na fé! Com vocês aprendemos que crer, confiar, partilhar e anunciar são os verbos essenciais da gramática cristã. O verdadeiro discípulo é aquele que conjuga estes verbos em todos os tempos, modos e pessoas. Ajudem-nos a viver de tal modo que, chegando ao entardecer da existência, também nós possamos dizer: “Chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé.” Suportando os sofrimentos e incertezas presentes, jamais nos envergonhemos ou desanimemos, pois sabemos em quem acreditamos! Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 12,1-11 * Salmo 33 (34) * 2ª Carta a Timóteo 4,6-8.17-18* Ev. de  S. Mateus 16,13-19)

sábado, 20 de junho de 2015

FESTA DA NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA (ANO B – 24.06.2015)

João, um profeta que veio para endireitar estradas.

A festa de São João está profundamente arraigada na cultura do povo brasileiro. Em algumas regiões, tornou-se até atração turística e é explorada como ocasião para ganhar dinheiro ou consolidar votos. Mas esta é uma festa que só aparentemente se distanciou do seu nascedouro bíblico e profético. Pois a alegria simples e inocente que a caracteriza brota da certeza de que Deus não esquece a aliança que fez conosco, visita e liberta seu povo, e envia profetas e profetizas que preparam caminhos novos. Por isso, celebremos este dia com a alegria que brota da liberdade que virá e com a coragem de João.
A festa de hoje não exige mega-produção. Bastam uma pequena fogueira e fogos de artifício, algumas roupas simples e baratas, uma banda improvisada e capaz de tocar a alma popular, alimentos que custam pouco e têm sabor de intimidade, bandeirinhas coloridas nos varais e balões levados ao sabor do vento... Os degraus do poder são substituídos pela roda que a todos iguala nas mãos dadas. A seriedade dos comandantes e a resignação dos que devem obedecer o ritmo de produção ditado pela sede de lucro dão lugar a uma alegria que não há como esconder, uma alegria que lança raízes no passado bíblico que nos pertence e se embebeda das luzes de um mundo que está por vir.
De repente, os operários viram artistas, os camponeses se revelam bailarinos, os coadjuvantes são protagonistas. A alegria, assim como a irreverência, têm raízes bíblicas e força revolucionária. Não se trata da alegria forçada pelas drogas, nem da felicidade histérica de quem se deleita nos bens subtraídos aos homens e mulheres que os produzem, e também não é a alegria produzida artificialmente por líderes religiosos sequiosos de domínio e de riqueza, ou por estrelas políticas e midiáticas que seduzem incautos mas duram pouco mais que uma noite.
Trata-se da alegria que brota da descoberta de que Deus olha para as mãos calejadas, para os rostos sofridos, para os corpos vergados e os corações partidos e os vê e proclama cheios de graça, plenos de charme. “Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,28.42). Como Maria na casa de Isabel, alegramo-nos porque Deus olhou para a humilhação dos seus filhos e filhas; porque sua misericórdia se estende de geração em geração; porque ele mostra a força do seu braço, derrubando os poderosos dos tronos e elevando os humildes...
Assim, a alegria inocente e despojada das festas juninas tem raízes na história da salvação, que atravessa e supera a história da opressão e que está ainda hoje em curso. O nascimento de João representa a delicadeza de um Deus que levanta o manto da vergonha e da dor que, numa sociedade machista, pesa sobre uma mulher idosa e sem filhos (cf. Lc 1,25). Quando o menino nasce, a vizinhança toda se alegra com mais esta demonstração da misericordia de Deus. E a razão dessa alegria está no próprio nome dado àquele prodígio nascente: “João é o seu nome!...”
João significa literalmente ‘Deus age com misericórdia’. Ao darem este nome ao filho, Zacarias e Isabel rompem com a tradição e renunciam a fazer do filho um espelho dos desejos do pai. João será profeta, e não sacerdote, como o pai. Nas palavras de Zacarias, ele será ‘profeta do Altissimo’, irá à frente do Senhor, ‘preparando os seus caminhos, dando a comhecer ao seu povo a salvação, com o perdão dos pecados, graças ao coração misericordioso do nosso Deus’ (cf. Lc 1,76-78). Segundo os evangelhos, João despertará a ira de Herodes por denunciar seu casamento com a cunhada (cf. Mc 6,17-18).
Mas João é muito mais que um pregador preocupado unicamente com a moralidade matrimonial...  Ele é um autêntico profeta, na linha dos grandes profetas de Israel. Ele exige mudanças radicais, tanto o âmbito pessoal como na esfera social. Eis sua voz: “Preparai os caminhos do Senhor; endireitai as veredas para ele. Produzi frutos que mostrem vossa conversão. Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo...” Trata-se de uma vocação exigente, e parece que o próprio Zacarias inicialmente não a entende ou não a aceita a vocação profética do filho.
Deus dos humildes, pai e mãe dos profetas e profetizas, razão da nossa alegria: te agradecemos pelos homens e mulheres que continuas enviando para transformar desertos em jardins e acender teu fogo no mundo. Eles se chamam João, Adelaide, Pedro, Oscar, Ezequiel, Sepé, Dorothy. Mas seus irmãos e irmãs menos famosos se chamam José, Tião, Rosa, Maria, Tonico, Zeca, Antônio, Severino, Josefa..., gente que faz parte da imensa caravana de homens e mulheres que vivem uma alegria autêntica e simples, inocente e solidária, despojada e profética, um precioso tesouro do povo brasileiro. Bendito sejas para sempre!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Isaías 49,1-6 * Salmo 138 (139) * Atos dos Apóstolos 13,22-26* Evangelho de  João 1,57-66.80)

quinta-feira, 18 de junho de 2015

O medo e a covardia podem nos paralisar

POR QUE SOMOS TÃO COVARDES?

«Por que sois tão covardes? Ainda não tendes fé?». Estas duas perguntas que Jesus dirige aos Seus discípulos não são, para o evangelista Marcos, um episódio do passado. São as perguntas que hão de escutar os seguidores de Jesus no meio das suas crises. As perguntas que temos de fazer também hoje: Onde está a raiz da nossa covardia? Por que temos medo ante o futuro? É porque nos falta fé em Jesus Cristo?
O relato é breve. Tudo começa com uma ordem de Jesus: «Vamos à outra margem». Os discípulos sabem que na outra margem do lago Tiberíades está o território pagão da Decápolis. Um país diferente e estranho. Uma cultura hostil à sua religião e crenças.
De repente levanta-se uma forte tempestade, metáfora gráfica do que ocorre no grupo de discípulos. O vento de furação, as ondas que batem contra a barca, a água que começa a invadir tudo, expressam bem a situação: Que poderão os seguidores de Jesus ante a hostilidade do mundo pagão? Não só está em perigo a sua missão, mas inclusive a sobrevivência do grupo.
Despertado pelos Seus discípulos, Jesus intervém, o vento cessa e sobre o lago vem uma grande calma. O surpreendente é que os discípulos «ficam espantados». Antes tinham medo da tempestade. Agora parecem temer a Jesus. No entanto, algo decisivo se produziu neles: recorreram a Jesus; puderam experimentar Nele uma força salvadora que não conheciam; começam a perguntar-se pela Sua identidade. Começam a intuir que com Ele tudo é possível.
O cristianismo encontra-se hoje no meio de uma «forte tempestade» e o medo começa a apoderar-se de nós. Não nos atrevemos a passar à «outra margem». A cultura moderna parece-nos um país estranho e hostil. O futuro dá-nos medo. A criatividade parece proibida. Alguns crêem mais seguro olhar para trás para melhor ir adiante. Jesus pode-nos surpreender a todos. O Ressuscitado tem força para iniciar uma fase nova na história do cristianismo. Apenas se nos pede fé. Uma fé que nos liberta de tanto medo e cobardia, e nos comprometa a caminhar nas marcas de Jesus.

José Antonio Pagola

quarta-feira, 17 de junho de 2015

E vocês, quem dizem que eu sou?

Marcos 4,35-41: Quem é este homem?
Este texto está situado na primeira parte do Evangelho, onde Marcos procura demonstrar que as autoridades religiosas da época, os próprios parentes de Jesus e os discípulos d’Ele não o compreenderam, apesar de verem as suas obras e milagres (1, 19-8, 21). Toda esta primeira parte do Evangelho prepara o chão para a pergunta fundamental do Evangelho: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Por isso a história hoje relatada leva os discípulos a se perguntarem: “Quem é este homem?”
A história do evento no mar de Galileia retrata simbolicamente a situação da comunidade marcana, pelo ano 70, quando o Evangelho foi escrito. A comunidade está vacilando na sua fé, assolada por dúvidas e até perseguições. Diante do cansaço da caminhada, muitos se refugiaram na busca de uma religião de milagres, sem o esforço de seguir Jesus até a Cruz. Por isso, Marcos insiste que os milagres não são suficientes para conhecer Jesus, pois as autoridades, os familiares e os discípulos os presenciaram e não chegaram a entender nem a pessoa nem a proposta de Jesus.
O barco no lago, assolado pelos ventos e ondas, representa a comunidade dos discípulos, prestes a afundar por causa das dificuldades da caminhada. Jesus dorme no barco e parece não se preocupar com o perigo. Assim, para a comunidade marcana, parecia que Jesus não estava ligado aos seus sofrimentos e, como consequência, vacilavam na fé. Mas, Jesus acalmou o mar e ainda questionou a pouca fé dos Doze: “Por que vocês são tão medrosos? Vocês ainda não têm fé?” (v. 3). Assim, Marcos quis mostrar aos leitores do seu tempo que Jesus estava com eles nas dificuldades e que a sua falta de fé estava causando grande parte das dificuldades que estavam enfrentando.
Hoje, em muitos lugares, a Igreja parece com a igreja marcana, ou ainda como o barco no mar. Diante das desistências, do secularismo, da diminuição da sua influência, para muitos a Igreja esta se afundando. Em lugar de assumir o doloroso seguimento de Cristo até a Cruz, muitos se refugiam em uma religiosidade de milagres, assim fugindo da penosa tarefa de construir o Reino de Deus entre nós.  Até diante da pessoa e mensagem do Papa Francisco, muitos simpatizam com ele como pessoa, mas permanecem surdos aos seus apelos em favor de um seguimento autêntico do Salvador.
Marcos vem corrigir esta ideologia triunfalista das suas comunidades e nos convida a aprofundar a nossa fé, a clarear para nós mesmos e para o mundo “quem é este homem?”, e a segui-Lo no dia a dia. Pois, Jesus não está alheio às nossas dificuldades! Pelo contrário, Ele está no meio de nós. Só que não nos livra da tarefa de nos engajarmos na luta pelo Reino, mesmo que as ondas e os ventos estejam contrários.
Ter fé n’Ele não é somente acreditar que Ele exista e seja Filho de Deus, mas tomar a nossa cruz e segui-Lo, na certeza que Ele não nos abandonará! Ressoa para nós hoje a pergunta de dois mil anos atrás: “Por que são tão medrosos? Ainda não têm fé?
Tomaz Hughes

DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 21.06.2015)

Viver é sair de si mesmo e tornar-se mulher ou homem novo!

Vida é caminhada, permanente travessia. Engajamos-nos nas lutas dos homens e mulheres e sentimo-nos atraídos a estabelecer aqui nossa morada, mas, ao mesmo tempo, descobrimo-nos estrangeiros, cidadãos de uma sociedade que ainda está para ser construída. Paulo expressa esse misterioso dinamismo a seu modo: o amor de Cristo nos atrai e pressiona, convidando-nos a passar de uma vida centrada em nós mesmos para uma vida que tem seu foco nos outros; radicados em Cristo e com os olhos fixos nele, somos chamados a ser mulheres e homens novos.
De fato, são muitas e diversas as nossas travessias. Há uma travessia que leva do ‘eu’ fechado e indiferente ao ‘nós’ aberto e acolhedor. Há a travessia que nos leva da estabilidade de um conhecimento exaustivo e seguro, de uma doutrina que pretende explicar tudo, de uma ciência que imagina desvendar todos os mistérios, de uma ideologia que oferece programas e estratégias para todos os desafios, à reverente consciência de que todas as coisas estão envoltas num mistério que nos ultrapassa e abraçao por todos os lados. Há também a travessia possível e urgente de uma sociedade injusta e desigual a uma sociedade inclusiva e solidária... E muitas outras!
Mas as travessias não costumam ser muito tranqüilas... Ao lado e contra o movimento de êxodo e expansão que dá vida a todo o universo, há também uma tendência à inércia, à estabilidade. Existem ventos contrários à mudança, forças que nos convidam a permanecer em casa, tentações que nos pedem que não troquemos um mal que conhecemos por um bem que é apenas desejo e promessa. É triste quando, na própria Igreja, nascida para acompanhar a humanidade em suas necessárias travessias, o medo paira como sombra que preenche todos os espaços e inibe todos os passos...
Sabemos por experiência que aquilo que é desconhecido e foge ao nosso controle nos amedronta. Controlar as situações, ou subemeter-se ao controle, nos dá sensação de segurança e de verdade. E o medo acaba sendo a mãe das submissões que limitam, das dominações que esterilizam, das ideologias que matam. É este medo que está na raiz do estado de guerra no qual vivem as sociedades, e promovê-lo é uma estratégia que serve aos dominadores. No coração de algumas liturgias e pregaçõres, e por trás de muitas mensagens políticas, está a intenção de criar medo e, assim, manter a dominação.
O evangelho de Marcos nos revela que os próprios discípulos de Jesus desconhecem e temem a travessia. Depois de terem ouvido da boca de Jesus parábolas que sublinham o dinamismo escondido do Reino de Deus, eles se mostram desconcertados e temem profundamente a travessia que os levaria ao encontro com os estrangeiros. Tudo parece escuro, tanto dentro como fora deles... E Jesus diz claramente que na raiz deste medo está a falta de fé. É falta de fé esperar que Deus elimine magicamente as dificuldades da travessia da vida ou nos leve imediatamente à outra margem!
A quem Jesus se dirige quando fala “Cale-se! Acalme-se!”? Ao mar e ao vento que, aos olhos dos discípulos, parecem descontrolados e ameaçadores, ou aos próprios discípulos? Mais que o mar, eles é que estão agitados e precisam ser acalmados! O que os aterroriza é a necessidade de mudar de idéia, de ideologia, de projeto de vida, de entrar em diálogo com quem é e pensa diferente. Mas, enquanto eles se apavoram e desesperam, Jesus dorme despreocupadamente. Ele sabe que a vida esta na páscoa/travessia. Quem o desperta não é o vento ameaçador, mas o grito dos discípulos apavorados...
Apesar das aparências em contrário, Jesus se importa com o risco que seus discípulos e discípulas enfrentam. A travessia é necessária e desejada por Deus, e ele nos acompanha em todas elas. É verdade que, às vezes, Jesus parece dormir e pouco se importar com os riscos que enfrentamos, mas o que ele não quer é assumir a responsabilidade e o lugar que nos cabem nessa passagem. Ele confia em nós, e a única maneira de chegarmos à maturidade que liberta é assumir nossa responsabilidade. Não há passagem automática e indolor, como não há vida na estabilidade absoluta...
Jesus de Nazaré, peregrino e companheiro nas travessias que a vida nos pede: permanece neste barco agitado no qual se transformou tua Igreja. Desperta em nós a certeza consoladora de que o Pai nos guia ao porto desejado e que teu amor nos impulsiona a avançar, a não cair na armadilha do medo. Sustenta-nos em todas as travessias, pois se permanecermos do lado de cá – fechados em nós mesmos, seguros em nossas ideologias, encaracolados em nossas doutrina – acabaremos afundando. E converte nosso medo em fé e nossa sede de segurança em vontade de caminhar. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf

(Livro de Jó 38,1.8-11 * Salmo 106 (107) * 2ª Carta aos Coríntios 5,14-17 * Evangelho de S. Marcos 4,35-41)

terça-feira, 16 de junho de 2015

Ainda sobre gays e cruzes

A “mensagem” dos Bispos de São Paulo abaixo publicada vem se juntar às várias manifestações um pouco estranhas à cena provocativa de um trevesti pregado na cruz, apresentada na recente Parada Gay. Já tive oportunidade de divulgar uma serena e oportuna reflexão, profundamente humana e sutilmente espiritual, que apareceu no site do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs) (cf. http://www.conic.org.br/portal/noticias/1448-cristo-hoje-e-uma-travesti-pregada-numa-cruz-e-um-negrinho-pelado)
Tenho pouco a acrescentar, a não ser minha estranheza e minha discordância com o teor da Nota.  Quem nunca viu imagens outras e representativas de crucificados: agricultores, negros, indígenas, prisioneiros políticos, migrantes?!... São imagens que circularam e circulam em nossas comunidades e pastorais, sem maiores problemas. Os grupos sociais que eles representam são reconhecidos como vítimas, e a apresentação desses sujeitos sociais pendendo da cruz reitera tanto esta condição de vítimas e de representantes autênticos e históricos de Jesus, como Ele mesmo afirma em Mt 25,31-46.
Subjaz ao teor da inoportuna nota dos bispos paulistas a convicção de que as pessoas gays, homoafetivas ou transexuais não são agredidas, violentadas e vitimadas pela nossa cultura homofóbica. É claro que também são objeto de bajulação por parte de certas mídias e círculos sociais, mas esta não passa de mais uma forma de desrespito.
Pergunto-me por que o mesmo ressentimento e a mesma preocupação desses bispos não apareceram em notas públicas para denunciar a pressão da mídia e do Congresso para aprovar a redução da maioridade penal, para mudar o processo de demarcação das terras indígenas e para dar legalidade a outras “violações violentas”, não de imagens e símbolos sagrados, mas de pessoas e grupos humanos inteiros, imagens humanas do próprio Deus...
Itacir Brassiani msf

MENSAGEM AOS CATÓLICOS E A TODOS OS CIDADÃOS
Nós, Bispos Católicos das Dioceses do Estado de São Paulo, reunidos na 78ª Assembleia do Regional Sul I da CNBB, diante dos acontecimentos da recente “parada gay 2015”, ocorrida na cidade de São Paulo, com claras manifestações de desrespeito à consciência religiosa de nosso povo e ao símbolo maior da fé cristã, Jesus crucificado, em nome da verdade que cremos, vimos através desta, como pastores do Povo de Deus:
1.   Afirmar que a fé cristã e católica, e outras expressões de fé encontram defesa e guarida na Constituição Federal: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (artigo 5º, inciso VI).
2.   Lembrar que todo ato de desrespeito a símbolos, orações, pessoas e liturgias das religiões constitui crime previsto no Código Penal: “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” (Art. 208 do Código Penal).
3.   Apelar aos responsáveis pelo Poder Público, guardiães da Constituição e responsáveis pela ordem social e pelo estado democrático de direito, que defendam o direito agredido.
4.   Expressar nosso repúdio diante dos lamentáveis atos de desrespeito ocorridos; queremos contribuir com o bem-estar da sociedade, pois somos, por força do Evangelho, construtores e promotores da liberdade e da paz.
5.   Manifestar nossa estranheza ao constatar um evento, como citado seja autorizado e patrocinado pelo poder público, e utilizado para promover atos que afrontam claramente o estado de direito que a Constituição garante.
6.   Lembrar a todos as atitudes firmes do Papa Francisco quanto ao respeito pelo ser humano, aos mais pobres, aos mais simples, à religiosidade popular.
7.   Recordar aos católicos que a profanação de símbolos religiosos pede de nós um ato de desagravo e de satisfação religiosa, pela oração e pela penitência, pedindo ao Senhor Deus perdão pelos pecados cometidos e a conversão dos corações.
8.   Reafirmar, iluminados pelo Evangelho e conduzidos pelo Espírito Santo, nosso respeito a todas as pessoas, também a quem pensa diferente de nós. E convidamos os católicos e pessoas de boa vontade a contribuírem, em tudo, para a edificação da justiça e da paz, do respeito a Deus e ao próximo.
Por fim, confirmamos nosso seguimento a Jesus Cristo e damos testemunho da beleza de nossa fé católica, na certeza de que, assim, contribuímos para o bem da sociedade, anunciando o que de melhor recebemos: Jesus Cristo crucificado, “força e sabedoria de Deus” (1Cor 1,23s), fonte de toda misericórdia.
Aparecida, 11 de junho de 2015.

Dom Odilo Pedro Scherer
Presidente do Regional Sul 1 – CNBB
Dom Moacir Silva
Vice-Presidente do Regional Sul 1 – CNBB

Dom Tarcísio Scaramussa
Secretário do Regional Sul 1 – CNBB

quarta-feira, 10 de junho de 2015

DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 14.06.2015)

A força do reino de  Deus desmente nossos falsos realismos.

O Tempo Comum não tem nada de comum e tem muito de comunidade. É o tempo da encarnação do Evangelho no cotidiano da vida pessoal, eclesial e social. Tempo de acolher e contemplar o mistério do Reino de Deus que vai lentamente adquirindo contornos e produzindo frutos. Tempo de cultivar pacientemente a esperança que, como o artista do circo, caminha sobre a corda bamba. Renovemos, pois, a consciência de que somos enviados para caminhar na esperança. E façamo-lo acolhendo e espalhando muitas sementes, mesmo que pareçam frágeis e insignificantes.
Isso é muito importante hoje, pois o realismo cínico nos é apresentado como a maior das virtudes e se torna uma tentação, inclusive para as pessoas que dizem acreditar num crucificado que ressuscitou. Querem nos convencer que nosso mundo sempre foi assim, e que não seremos nós os protagonistas de uma hipotética mudança. Um outro mundo não seria possível, e ponto final! A sabedoria então seria cada um cuidar da sua própria vida, não deixando escapar nenhuma oportunidade de derrotar os outros na competição pela sobrevivência, procurando sempre tirar o máximo de vantagem...
No entanto, como cristãos, fazemos parte de uma caravana que percorre os caminhos da história guiada por outras convicções: as sementes crescem por si mesmas, e as que parecem pequenas e insignificantes, como a de mostarda e de eucalipto, se tornam árvores frondosas. Partindo de sua própria experiência e escrevendo sobre a esperança da ressurreição, São Paulo diz que vivemos como se estivéssemos fora de casa, como peregrinos que buscam outra morada, outra cidade. Mas insiste que neste êxodo permanente estamos cheios de confiança.
A fé cristã se distancia tanto do delírio dos que ardem de paixão por um mundo fictício e ilusório depois da morte como do conformismo medroso daqueles que aparam as arestas do Evangelho e o acomodam a um mundo sem coração. Nossa confiança se inspira na sabedoria dos semeadores que sabem que a semente não é a colheita, mas isso não os impede de lançá-las generosamente na terra. E eles o fazem conscientes de que é falta de realismo contar apenas como as forças, confiar apenas nas nossas estratégias, esquecer a gratuidade e fechar-se às surpresas da vida.
O que acontece é que o medo e o controle costumam asfixiar e matar as sementes. “A terra produz o fruto por si mesma”, nos ensina Jesus, num dos contos populares que recolheu na zona rural da Palestina e nos oferece hoje. “A semente vai brotando e crescendo, mas o homem não sabe como isso acontece.” É possível que um processo de mudança se mostre verdadeiramente profundo quando nos leva à consciência dos próprios condicionamentos e limites, abrindo-nos a contribuições outras, iluminando-nos e fecundando-nos pela experiência da gratuidade.
Precisamos ser libertados da ilusão da grandeza e colocar no centro da nossa fé a memória da coragem dos escravos frente ao faraó, a memória da vida de Jesus de Nazaré, o mistério escondido na semente de mostarda. O Reino de Deus não brilhará apenas quando chegar o hipotético dia em que não haverá mais compradores de justiça, a liberdade não será uma ilusão, a verdade será a fonte das notícias e poderemos crer nas pessoas outra vez. O reino de Deus não é um particípio passado mas um gerúndio e um futuro: ele “vai sendo” nas milhares de ações de compaixão e de afirmação da dignidade do outro.
Alcançamos a desejada e difícil maturidade na fé quando conseguimos conjugar adequadamente paciência e urgência históricas. Os processos humanos e sociais também têm e seu ritmo de maturação. Conhecê-los sem controlá-los, e remover as forças que podem representar obstáculos ao seu desenvolvimento, é a arte das artes.  Mas eu acho que hoje o risco que nos ronda hoje é deixar passar o tempo propício da maturação e da colheita, fechar os olhos e os ouvidos a Deus, que pede com urgência que sejamos pessoas mais solidárias, Igrejas mais comunitárias e sociedade mais igualitária.
Jesus de Nazaré, semeador da Palavra que liberta e nos faz libertadores! Ajuda-nos a compreender que a fé é um dinamismo que nos abre à escuta de Deus, cria espaços de silêncio nos quais sua Palavra é acolhida e semeada. Frente às dores e esperanças que habitam o mundo, dá-nos o senso profundo da peciência e da urgência que tu mesmo exercitaste. Faz com que essa escuta abra em nós espaços de relação com os outros, fundamente a convivência de igual para igual, nos ajude a sair das nossas próprias certezas e nos comprometa numa dinâmica de comunhão e de solidariedade no interior da qual nasce, cresce e e frutifica o sonho do bem-comum da humanidade. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Ezequiel 17,22-24 * Salmo 91 (92) * 2ª Carta aos Coríntios 5,6-10 * São Marcos 4,26-34)

SOLENIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS (ANO B – 12.06.2015)

Que nosso coração seja como o de Jesus: grande e compassivo!

A tentação de imaginar Deus de forma abstrata e de propor a mensagem cristã de forma estritamente doutrinal está sempre a nos rondar. O princípio de um Deus uno e trino celebrado na solenidade da Santíssima Trindade pode virar uma questão de matemática ou de metafísica. A boa notícia recordada na solenidade de Corpus Christi pode descambar para uma discussão polêmica e inoportuna. Na solenidade do Sagrado Coração de Jesus recordamos agradecidos que Deus tem um grande coração, um coração humano e compassivo. E isso não tem nada a ver com um Deus distante, abstrato e sádico.
Bem que o primeiro testamento proíbe que se faça imagens de Deus. Imaginar Deus é difícil, perigoso e pode ter consequências desastrosas. O caminho entre fazer imagens de Deus e a sua cooptação pelos poderosos e opressores de plantão, em prejuízo dos pobres, é apenas um passo. Nas últimas décadas, foram feitos esforços significativos para rever a noção de Deus nos parâmetros da cultura moderna, e ele foi denominado Absoluto, Transcendente, Divindade... Mas também estas imagens são abstratas e ambíguas, e podem ajudar a cavar ou ampliar uma espécie de abismo entre Deus e ser humano...
Nos séculos XVII-VIII nasceu e se espandiu um movimento espiritual que queria corrigir o formalismo da teologia e da espiritualidade cristãs e recolocar a experiência prática e o sentimento no centro da vida cristã. É neste contexto que nasce a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Em 1675, Jesus teria aparecido a Santa Margarida Maria Alcoque e dito,  descobrindo seu Coração:  “Eis o coração que tanto tem amado aos homens e  em recompensa não recebe, da maior parte deles, senão ingratidões pelas irreverências e  sacrilégios, friezas e  desprezos que têm por Mim neste Sacramento de Amor”.
A perspectiva de um Deus com coração tem fundamento na Escritura, pois ela nos apresenta um Deus vivo, caracterizado pela Compaixão, e é isso que a solenidade do Sagrado Coração de Jesus quer colocar em evidência. João nos fala de Jesus pendente da cruz, onde fora pregado depois de ter sido acusado, traído, condenado e torturado. Fazem-lhe companhia dois outros proscritos. O dia é soleníssimo, antecede a grande festa dos judeus. O que o fez chegar a este lugar e a este estado é de domínio público: ousou desafiar uma certa imagem de Deus, afirmando que ele é, antes e acima de tudo, Amor.
Sabemos que o coração de Jesus bate forte pelos últimos da escala social, pelas pessoas arruinadas por causa de escolhas mal feitas ou de sistemas que excluem. Longe de cair na armadilha de uma generosidade ingênua, Jesus escolhe muito bem aqueles a quem dirige seu amor preferencial e ocupam um lugar nobre no seu coração. Ele vai premurosamente ao encontro das pessoas perdidas, reconduz as desgarradas, cuida das machucadas, fortalece as doentes, defende a dignidade de todas. No alto da colina, o corpo pendente da cruz proclama que Deus tem um coração: ele ama a justiça, estende sua misericórdia de geração em geração, se aproxima dos necessitados, com ternura de pai e mãe.
Tendo sido fariseu de estrita observância e implacável perseguidor dos seguidores de Jesus, Paulo repentinamente se descobre amado e escolhido para testemunhar Jesus como Messias de Deus e salvador da humanidade. O conhecimento e a observância da lei o havia fechado em si mesmo e feito dele um homem frio e orgulhoso. O conhecimento de Jesus Cristo o faz homem livre e frágil, próximo e servidor da humanidade. Paulo tem a impressão de que a grandeza dessa experiência não cabe nas palavras, mas faz de tudo para anunciar a eles a “riqueza insondável de Cristo”.
Por isso, Paulo sublinha que o desejo de Deus sempre foi que, pela fé e pela adesão a Jesus Cristo, todos sejam livres para se aproximar de Deus com confiança. É este o mistério que antes estava escondido e agora deve ser anunciado sem meias-palavras. Por isso, Paulo implora de joelhos que nossa humanidade amadureça e se desenvolva, enraizada e alicerçada em Jesus Cristo, para que tenhamos condições de “conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento”, de entender “a largura, o comprimento, a altura, a profundidade” desse amor gratuito e imerecido.
Jesus crucificado, terno coração de um Deus que é pai e mãe, sofrido coração de um homem incapaz de ser indiferente às dores e dramas humanos: neste dia em que tua Igreja proclama a sacralidade transcendente do amor, de todos os amores, dobramos os joelhos diante de ti e pedimos que o teu Espírito nos inunde, renove e guie nos caminhos do amor terno, despojado e serviçal. Acolhendo no teu coração sagrado o inteiro anúncio do Reino, dispo-mos a ser como és e a ir onde vais. Faz com que nosso instável coração adquira a altura, a profundidade e a largura do teu amor. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Oséias 11,1-4.8-9 * Isaías 12,2-6 * Carta aos Efésios 3,8-19 * Evangelho de São João 19,31-37)

"Eu creio na semente..:"

PEQUENAS SEMENTES

Vivemos afogados pelas más notícias. Emissoras de rádio e televisão, noticiários e reportagens descarregam sobre nós uma avalanche de notícias de ódios, guerras, fomes e violências, escândalos grandes e pequenos. Os “vendedores de sensacionalismo” não parecem encontrar outra coisa mais notável no nosso planeta.
A incrível velocidade com que se difundem as notícias deixa-nos aturdidos e desconcertados. Que pode fazer alguém ante tanto sofrimento? Cada vez estamos melhor informados do mal que assola a humanidade inteira, e cada vez nos sentimos mais impotentes para afronta-lo.
A ciência quis-nos convencer de que os problemas se podem resolver com mais poder tecnológico, e lançou-nos a todos numa gigantesca organização e racionalização da vida. Mas este poder organizado não está já em mãos das pessoas mas nas estruturas. Converteu-se em um “poder invisível” que se situa mais para lá do alcance de cada individuo.
Então, a tentação de nos inibirmos é grande. Que posso eu fazer para melhorar esta sociedade? Não são os dirigentes políticos e religiosos que têm de promover as mudanças que se necessitam para avançar para uma convivência mais digna, mais humana e ditosa?
Não é assim. Há no evangelho uma chamada dirigida a todos, e que consiste em semear pequenas sementes de uma nova hu­manidade. Jesus não fala de coisas grandes. O reino de Deus é algo muito humilde e modesto nas suas origens. Algo que pode passar tão desapercebido como a semente mais pequena, mas que está chamada a crescer e frutificar de forma insuspeitada.
Quiçá necessitemos aprender de novo a valorizar as coisas pequenas e os pequenos gestos. Não nos sentimos chama­dos a ser hérois nem mártires cada dia, mas a todos se convida a viver colocando um pouco de dignidade em cada canto do nosso pequeno mundo.
Um gesto amistoso ao que vive desconcertado, um sorriso acolhedor a quem está só, um sinal de proximidade a quem começa a desesperar, um raio de pequena alegria num coração sobrecarregado... não são coisas grandes. São pequenas sementes do reino de Deus que todos podemos semear numa sociedade complicada e triste, que esqueceu o encanto das coisas simples e boas.

José Antonio Pagola

segunda-feira, 8 de junho de 2015

As parabolas do Reino de Deus

Marcos 4,26-34:
Com que coisa podemos comparar o Reino de Deus?
O texto de hoje traz à tona dois elementos muito importantes para o estudo dos Evangelhos: “o Reino de Deus” e “as parábolas”. Antes de olhar o texto mais de perto, convêm comentar algo sobre esses dois termos ou conceitos.
Existe um consenso entre os estudiosos modernos, sejam católicos ou protestantes, que existem duas palavras nos textos evangélicos que provém do próprio Jesus e que não dependem da reflexão posterior das comunidades: “Reino” e “Pai”, “Abbá” em aramaico.
Estamos tão acostumados de ter Jesus como “objeto” da nossa pregação que esquecemos que Ele não pregou a si mesmo, mas o “Reino de Deus” (geralmente citado em Mateus como o Reino dos Céus, para evitar o uso do nome de Deus, em uma comunidade predominantemente judeu-cristã).
A vida inteira de Jesus foi dedicada ao serviço desse Reino, que Ele nunca define, pois é uma realidade dinâmica, mas que Ele descreve por comparações, usando parábolas.
“Parábola” é um tipo de comparação, usando símbolos e imagens conhecidos na vida dos ouvintes, e que os leva a tirar as suas próprias conclusões (de fato, várias vezes temos a explicação de uma parábola nos evangelhos, mas essa nasceu da catequese da comunidade e não teria feito parte da parábola original). O Capítulo 13 de Mateus talvez seja o melhor exemplo do uso de parábolas para clarificar a natureza do Reino - ou Reinado - de Deus.
No tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, os diversos grupos religiosos judaicos (com a exceção dos ultraconservadores e elitistas Saduceus), esperavam a chegada do Reino de Deus e achavam que poderiam apressar a sua chegada: os Fariseus, através da observância da Lei; os Essênios, através da pureza ritual; os Zelotas através de uma revolta armada.
O texto de hoje nos adverte que não é nem possível e nem necessário tentar apressar a chegada ou o crescimento do Reino de Deus, pois ele possui uma dinâmica interna própria de crescimento. Como a semente semeada cresce independente do semeador e sem que ele saiba como, assim o Reino cresce onde plantado, pois também tem a sua própria força interna que, passo por passo, vai levá-lo à maturidade.
Assim, o texto nos ensina o que Paulo ensina de uma maneira diferente aos coríntios, quando, referindo-se ao trabalho de evangelização desenvolvido por ele, Apolo e outros/as missionários/as; ele afirma “Paulo planta, Apolo rega, mas é Deus que faz crescer” (1 Cor 3, 6).
Uma das imagens que Jesus usa para caracterizar o Reino é a do grão de mostarda. Embora a semente seja minúscula, ela cresce até se tornar um arbusto frondoso. Assim Jesus quer que relembremos que é importante começar com ações pequenas e singelas, pois, pela ação do Espírito Santo, elas poderão dar frutos grandes.
Esta parábola é um lembrete para que não caiamos na tentação de olhar as coisas com os olhos da sociedade dominante, que valoriza muito a prepotência, o poder, a aparência externa. A nossa vocação é plantar e regar, nunca perdendo uma oportunidade de semear o Reinado de Deus: ou seja, criar situações onde realmente reine o projeto do Pai, projeto de solidariedade e amor, partilha e justiça, começando com sementes minúsculas, para que, não através do nosso esforço, mas da graça de Deus, eventualmente cresça uma árvore frondosa que abrigará muitos.
O desafio do texto é de que valorizemos o gesto pequeno, as duas moedas da viúva, a semente de mostarda, não nos preocupando com os resultados, mas, confiantes no poder transformador da semente, plantar e regar, para que Deus possa ter a colheita!
Tomaz Hughes

domingo, 7 de junho de 2015

Demarcação de terras indígenas

Documento final do Encontro sobre demarcação de terras indígenas

Nós, representantes dos povos Kokama, Kambeba, Kaixana, Mayoruna, Apurina, Paumari, Nawa, Mura, Maraguá, Tariana, Baré, Macuxi, reunidos no Centro de Formação Xare, nos dias 30 e 31 de maio de 2015, no Encontro sobre a demarcação das terras indígenas, socializamos as lutas e desafios enfrentadas pelas comunidades indígenas das regiões do Alto Solimões, Médio Solimões, Beruri, Lábrea, Nova Olinda do Norte, Autazes e Barcelos no Amazonas e rio Moa, no município de Mâncio Lima no Acre. Foi socializada também a experiência de luta para a conquista de demarcação da Terra Indígena raposa Serra do Sol, localizada em Roraima, por duas lideranças Macuxi e feita uma análise mais ampla da política indigenista e da realidade amazônica.
Denunciamos a omissão do governo federal na demarcação das terras indígenas como determina a Constituição Federal OIT. Numerosas comunidades indígenas, na região, anos a fio, vem reivindicando a demarcação de suas terras sem nenhuma resposta por parte da Funai. Só no estado do Amazonas, existem mais de 80 terras indígenas sendo reivindicadas, que sequer tiveram iniciado o procedimento de demarcação. Esta omissão por parte do governo federal coloca nossas comunidades numa situação de extrema insegurança e vulnerabilidade, expostas a violência dos invasores de todo tipo: madeireiros, garimpeiros, peixeiros e caçadores e outros que afrontam as nossas lideranças e desrespeitam nossas formas de vida e os nossos direitos. A não demarcação das terras tem sido usada inclusive como desculpa pela Sesai para negar a atenção a saúde das nossas comunidades. Ela deve ser responsabilizada judicialmente por esta renúncia aberta de suas atribuições legais. Essa atitude de discriminação para com nossas comunidades revela um profundo desprezo pela vida dos cidadãos indígenas.
Exigimos respeito aos nossos direitos. Queremos  que de forma imediata os procedimentos de demarcação das nossas terras sejam retomados, com a criação dos Grupos de Trabalho (GTs) da Funai para a identificação dos limites e a prática dos demais atos oficiais necessários para garantia de nossas terras.
Reafirmamos a disposição das comunidades de lutar até que todas as terras indígenas na região tenham sido demarcadas, articulando-nos entre nós, com nossas organizações e com movimento indígena de forma mais ampla e com outros setores da sociedade e a determinação de fazer o que for preciso para que este nosso direito, fundamental para o futuro de nossos povos, seja assegurado.

Manaus, 31 de maio de 2015.

Povos da Amazônia

Carta Aberta dos Povos da Amazônia ao Povo Brasileiro
Nós, representantes dos Povos indigenas Kokama, Apurinã, Miranha, Kaixana, Kambeba, Witoto, Maraguá, Baré, Sateré, Tikuna, Tariano, Baniwa, Tukano, Dessano, Karapana, Piratapuia, Munduruku, Mura, Nawa, Bará e Paumari; Representantes das Organizações Indigenas: Kambeba, do Alto Solimões; OKAS, União dos Povos Indigenas do Médio Solimões e Afluentes; UNIPI-MAS; Organização Kambeba Paulivense Omágua do Amazonas; Okopam, União dos Povos Indigenas do Coari Amazonas UICAM;  Conselho Indígena de Roraima, CIR; Coordenação dos Povos Indigenas de Manaus e Entorno, COPIME;  Coordenação das Organizações Indigenas Kaixana do Alto Solimões, COIKAS; Coordenação dos Povos Indigenas do Amazonas, COIPAM; Organização Indígena Kokama do Amazonas, OIKAM;  Associação dos Moradores Indigenas Kokama da Cidade de Tabatinga, AMIKCT;  Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus FOCIMP; Ribeirinhos do Alto Rio Madeira atingidos pelas barragens de Jirau e Santo Antonio em Rondônia; Pastorais e Organizações da Sociedade Civil: Pastoral Indigenista – PIAMA; Conselho Indigenista Missionário - CIMI,  Equipe Itinerante;  Cáritas; Articulação pela Convivência com a Amazônia - ARCA, Fórum da Amazônia Oriental - FAOR,  Serviço e Cooperação com o povo Yanomami - Secoya, Comissão Pastoral da Terra – CPT e Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, Casa da Cultura do Urubuí; Participantes  do Encontro de Articulação dos Povos e Comunidades Indigenas em Luta pela Terra e da Semana dos Povos da Amazônia, nos dia 30 e 31 de maio e de 01 a 04 de junho de 2015, em Manaus -AM,
Vimos a público denunciar:
a) A eminente ameaça de despejo pela qual passam as 300 famílias da Comunidade das Nações Indígenas, localizada no bairro do Tarumã, em Manaus - AM;
b) A situação de abandono e inadequação dos programas de saúde e educação, a qual estão submetidos os Povos da Amazônia;
c) A ameaça de remoção forçada que se impõe ao Povo Indígena Munduruku, da TI Sawré Moybu, no médio Tapajós, devido a intenção do Governo Federal de construir a UHE de São Luiz do Tapajós, em sua terra.
d) A tentativa da bancada ruralista no congresso nacional em aprovar a PEC 215 e outros projetos legislativos, que atentam contra os direitos dos povos indigenas e comunidades tradicionais;
e) A mineração em terras indígenas;
f) A exploração ilegal dos recursos naturais em terras indigenas, o que tem provocado a expulsão de famílias de seus territórios;
g) A paralisação dos processos de demarcação de TI em todo o Território Nacional;
h) A discriminação religiosa sofrida pelos indigenas e povos de terreiros;
Dito isso, exigimos:
a) A imediata paralisação da ação de reintegração de posse da Comunidade Nações Indigenas, em Manaus, assim como a desapropriação das áreas ocupadas por populações indígenas, quilombolas  e ribeirinhas, na cidade de Manaus,  para o assentamento dos moradores e o início urgente de serviços públicos, de forma a garantir os seus direitos constitucionais;
b) Políticas púbicas efetivas, específicas e diferenciadas nas áreas de saúde e educação para atender os povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia;
c) Políticas públicas de moradia, saúde e educação, adequadas a realidade dos moradores das cidades amazônicas.
d) Demarcação imediata das terras de direito dos povos indígenas e das comunidades tradicionais;
e) Suspensão dos projetos de infraestrutura, energia, hidrovias, portos, ferrovias, rodovias, monocultivos e do agronegócio na Amazônia Brasileira;
f) Arquivamento imediato da PEC 215 e a garantia dos direitos históricos e constitucionais dos povos indígenas e das comunidades tradicionais;
Declaramos  ainda  que:
a) Não aceitaremos nenhuma medida que ameace os direitos constitucionais dos povos indigenas e comunidades tradicionais;
b) A PEC 215 representa uma sentença de morte aos povos indígenas e comunidades tradicionais;
c) Apoiamos incondicionalmente a ação de autodemarcação da TI Sawré Moybu do Povo Munduruku;
d) Somos solidários com os povos do Xingu atingidos pela construção da UHE de Belo Monte.
e) Nenhuma Organização pode negociar em nome dos povos indigenas com empresas, governos e outras organizações, sem antes ouvir o que esses povos e suas comunidades têm a dizer, e sempre levando em consideração suas opiniões.
Nenhum Direito a menos! Não a PEC 215! Demarcações já! Rios da Amazônia, livres de mineradoras e hidrelétricas!

Manaus - Amazonas, 03 de junho de 2015