terça-feira, 2 de junho de 2015

SOLENIDADE DO CORPO E SANGUE DE CRISTO (ANO B – 04.06.2015)

O Corpo de Cristo nos chama à liberdade e à fraternidade.

Quem é cristão e católico não tem dúvidas: a Eucaristia faz a Igreja e ocupa um lugar central na sua espiritualidade. Mas nunca é demais lembrar também que quem faz a Eucaristia é a Comunidade eclesial: foi ela que, partindo do evento Jesus Cristo, definiu seu sentido teológico, estabeleceu regras e barreiras e colocou-a sob o controle dos ministros ordenados. Ao celebrarmos a festa popular do Corpus Christi não podemos esquecer que a Eucaristia é um sacramento, e como tal, remete a Jesus Cristo, mediador da Aliança, horizonte da nossa vocação à liberdade e ao serviço.
Depois de séculos de um perigoso processo de distanciamento do Reino de Deus e de uma intensa teologização, é difícil libertar a Eucaristia da noção de sacrifício da qual se tornou refém. A noção de Aliança, anterior e mais fundamental que a de Sacrifício, foi diminuída e quase eliminada. E acabamos esquecendo que, mesmo na tradição judaica, o sangue dos animais sacrificados aspergido sobre o povo era memória da Aliança entre Javé e seu povo. O centro do rito não era o sacrifício de animais mas a Aliança entre Deus e o seu povo escolhido. E Jesus é mediador de uma aliança nova e superior...
Damos por descontado que a última ceia de Jesus, base narrativa e simbólica sobre a qual se construirá a Eucaristia, foi uma celebração pascal no horizonte da tradição judaica, memória do êxodo e da Aliança que constituiu um povo. Mas um olhar atento aos relatos de Marcos nos revelará que Jesus e seus discípulos não celebraram a páscoa conforme as prescrições do judaísmo: não se fala do cordeiro pascal, nem se diz que ele fora sacrificado no templo. E ao invés de descrever os pormenores da ceia pascal, Marcos descreve o clima de tristeza e apreensão frente às traições que se insinuavam.
É verdade que Jesus cumpre o tradicional gesto doméstico e amistoso de tomar o alimento e a bebida, proferir a oração de bênção e de agradecimento e servi-los aos comensais. Mas ele introduz duas novidades que divergem das prescrições rituais: não serve o cordeiro e não relaciona o pão e o vinho com o evento do êxodo, mas com a sua história pessoal, com os passos que estava para dar. Repartindo o pão, ele diz “isto é o meu corpo”, e, passando o cálice de vinho, anuncia “este é o meu sangue da nova Aliança”. Fica muito claro que Jesus vincula a ceia consigo mesmo e com uma Aliança nova.
Ademais, Marcos insinua que este cordeiro é o próprio Jesus, e nos apresenta três elementos simbólicos que são mais que simples detalhes. O primeiro: a comunidade dos discípulos se move discretamente, escondendo-se para evitar riscos (uma comunidade ameaçada). O segundo: a senha que Jesus dá para que os discípulos encontrem um lugar seguro para celebrar a páscoa: um homem carregando uma bilha de água (tarefa própria das mulheres!). O terceiro, mais importante e fundamental para a compreensão da Eucaristia: a ceia de Jesus com os discípulos não termina em festa, mas em jejum!  Jesus diz que não beberá mais vinho até que chegue o vinho novo do reino de Deus.
Aqui aparece o vínculo essencial entre Eucaristia e futuro, entre a ceia presente e o advento do Reino de Deus. A Eucaristia é profecia e antecipação simbólica do futuro, do Reino. A libertação celebrada na Eucaristia não é memória de um passado glorioso, mas tarefa empenhativa que engendra o futuro, Aliança nova e irreversível mediante a qual Deus avalisa nossos anelos de liberdade e de vida plena. Jesus liberta a ceia pascal do seu belo mas insuficiente vínculo com o que foi e nos engaja na construção daquilo que virá, mesmo que isso exija renúncia às atrações dos velhos vinhos.
A festa do Corpo de Deus lembra e afirma que Jesus se entrega a nós como comida e bebida e nos convoca às ruas para proclamar que a liberdade está na frente e no futuro, e não atrás, num passado idealizado. Ele pede que levemos a sério que a Ceia não é mera memória, mas também antecipação simbólica do Reino de Deus, que construiremos com criatividade e ousadia. Por mais nobre que seja o ostensório e por mais belos que sejam os desenhos e ornamentos que enfeitam as ruas, a Eucaristia não está aí para ser adorada e incensada, mas para ser tomada como comida e bebida.
Jesus de Nazaré, filho de Deus e filho da Humanidade, corpo dinamizado pelo Espírito e Espírito feito carne, pão partilhado e vinho da amizade: transforma nossa vida em Eucaristia e dá-nos uma insaciável fome de comunhão. Dá-nos um coração grande para amar e forte para lutar, tanto no acolhedor ambiente dos nossos templos como no espaço aberto das ruas e avenidas. E não permitas que reduzamos tua ceia a uma simples memória e tranformemos o pão em amuleto. Ensina-nos a celebrar a ceia com os pés prontos caminhar e os olhos fixos no Reino que sempre está vindo. Assem seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Êxodo 24,3-8 * Salmo 115 (116) * Carta aos Hebreus 9,11-15 * Evangelho de Marcos 14,12-16.22-26)

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