quinta-feira, 27 de agosto de 2015

VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 30.08.2015)

Nossas tradições são menos importantes que o Evangelho!

A fidelidade de Deus à sua misericórdia e compaixão pela humanidade nos interpela a assumir nossa responsabilidade pelos males que a ferem e a reverter nossas prioridades, quase sempre muito restritas ou egoístas. E um dos primeiros passos é romper com algumas práticas que adquiriram força de tradição e de verdade: a ilusão de que a fé pode ser vivida sem ligação com a vida concreta; a mania de pedir que Deus mude o mundo milagrosamente, sem nosso empenho; a hipocrisia de ostentar publicamente uma retidão e uma autenticidade que não vão além da própria pele; o mito que afirma que a única saída é cada um cuidar de si mesmo...
O amor solidário e compassivo de Deus, manifestado e atestado definitivamente em Jesus Cristo, não muda jamais. E não muda também o amor como único caminho possível para um outro mundo. O apóstolo Tiago insiste: “Ele nos gerou por meio da Palavra da verdade para que nos tornássemos as primeiras dentre as suas criaturas.” E acrescenta: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição e manter-se livre da corrupção do mundo.” Nosso batismo expressa esta vocação de sermos os primeiros a viver o amor como princípio, meio e fim.
Quando falamos em amor não estamos nos referindo a um vago sentimento interior, mas a um dinamismo envolvente, que encontra em Jesus sua máxima expressão e concretude: trata-se de reconhecer os outros em sua dignidade, de valorizar sua verdade e atender suas necessidades. E isso comporta decisões e ações concretas que passam longe do medo de não sujar as mãos, que nos envolvem em lutas, que nos levam a compartilhar os sofrimentos e humilhações que decortrem disso.  É isso que significa manter-se livre da corrupção, socorrer os órfãos e as viúvas, como diz Tiago.
É lamentável observar que inda hoje alguns cristãos, inclusive pessoas consagradas e ordenadas, estejam mais preocupados com a limpeza das mãos ou com a roupa adequada daqueles que se aproximam da eucaristia que com as fraturas, divisões e injustiças que ferem o corpo de Cristo no corpo dos homens e mulheres humilhados e excluídos da mesa da vida. Eles priorizam a limpeza das toalhas, patenas e cálices, dão a máxima importância a panos e hábitos vistosos, mas pouco se importam com as atitudes verdadeiramente anti-evangélicas queprecisam ser combatidas e mudadas.
É esta a “lei” que os legistas e fariseus defendem diante da liberdade de Jesus e dos seus discípulos. “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, pois comem o pão sem lavar as mãos?” A eles não interessa a partilha dos pães e peixes que alimentara uma multidão, mas o fato de que os discípulos e todo o povo tinham comido sem lavar as mãos. E o pior é que eles têm seguidores hoje, inclusive fora do âmbito religioso: pessoas que hoje querem salvar as (funestas) leis do mercado à custa da fome que mata milhões. O caminho trilhado e proposto por Jesus de Nazaré é bem outra coisa.
A verdade é que alguns costumes irrelevantes e hábitos perniciosos vão conquistando uma importância cada vez maior e acabam aparecendo à nossa consciência como expressões da vontade de Deus. Quanta discussão sobre se é permitido receber a hóstia na mão ou não. E quanta polêmica em torno da prática de chamar leigos e leigas a proclamar o Evangelho numa celebração eucarística. Agora aflora o debate sobre o abraço da paz dentro da celebração eucarística... E sem falar na comunhão aos casais separados ou recasados... Tradições humanas que ocupam o lugar da vontade de Deus!...
Jesus estabelece um princípio que orienta o discernimento de cada dia e em todos os casos: “O que vem de fora e entra na pessoa não a torna impura; as coisas que saem de dentro da pessoa é que a tornam impura.” O que nos torna puros ou impuros não é nossa condição social, nosso grau de estudo, nossos recursos e bens, nossa orientação sexual ou nossa pertença religiosa, mas as ações e decisões que tomamos, as relações que estabelecemos. “Pois é de dentro do coração das pessoas que saem as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes, adultério, ambições sem limites, maldades...”
Jesus, Palavra viva e libertadora nos altos e baixos história. Hoje tu nos pedes que não confundamos a Boa Notícia que liberta com nossas próprias doutrinas e interesses. Tu nos ensinas que não são os aspectos externos e sociais que nos fazem bons ou ruins aos olhos do teu e nosso Pai. Abre nossos olhos, nossos ouvidos e nosso coração à tua desestabilizadora Boa Notícia. Ajuda-nos a reinventar evangelicamente tua Igreja, tão devedora de tradições fossilizadas. Sustenta e abençoa nossas catequistas e guia todas elas pelos caminhos da justiça, mantndo seus passos na tua verdade. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Deuteronômio 4,1-8 * Salmo 14 (15) * Carta de Tiago 1,17-27 * Evangelho de S. Marcos 7,1-23)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O Evangelho e as tradiçoes

NÃO NOS AGARREMOS A TRADIÇÕES HUMANAS

Não sabemos quando nem onde ocorrerá o confronto. Ao evangelista só lhe interessa evocar a atmosfera em que se move Jesus, rodeado de mestres da lei, observantes escrupulosos das tradições, que resistem cegamente à novidade que o Profeta do amor quer introduzir nas suas vidas.
Os fariseus observam indignados que os seus discípulos comem com as mãos impuras. Não o podem tolerar: «Porque é que os Teus discípulos não seguem as tradições dos mais velhos?». Apesar de falarem dos discípulos, o ataque é dirigido a Jesus. Têm razão. É Jesus quem está a romper essa obediência cega às tradições ao criar à sua volta um «espaço de liberdade» onde o decisivo é o amor.
Aquele grupo de mestres religiosos não entendeu nada do reino de Deus que Jesus lhes está a anunciar. Nos seus corações não reina Deus. Continua a reinar a lei, as normas, os usos e os costumes marcados pelas tradições. Para eles o importante é observar o estabelecido pelos «mais velhos». Não pensam no bem das pessoas. Não os preocupa «procurar o reino de Deus e da Sua justiça».
O erro é grave. Por isso, Jesus responde-lhes com palavras duras: «Vós deixais de lado o mandamento de Deus para agarrarem-se à tradição dos homens».
Os doutores falam com veneração da «tradição dos mais velhos» e atribuem-lhes autoridade divina. Mas Jesus qualifica-a de «tradição humana». Não há que confundir jamais a vontade de Deus com o que é fruto dos homens.
Seria também hoje um grave erro que a Igreja ficasse prisioneira de tradições humanas dos nossos antepassados, quando tudo nos está a chamar a uma conversão profunda a Jesus Cristo, nosso único Mestre e Senhor. O que nos deve preocupar não é conservar intacto o passado, mas fazer o possível para o nascimento de uma Igreja e de comunidades cristãs capazes de reproduzir com fidelidade o Evangelho e de atualizar o projecto do reino de Deus na sociedade contemporânea.
A nossa responsabilidade primeira não é repetir o passado, mas fazer o possível nos nossos dias para acolher Jesus Cristo, sem ocultá-lo nem obscurecê-lo com tradições humanas, por muito veneráveis que nos possam parecer.

José Antonio Pagola

Sobre pureza e impureza

Sobre o puro e o impuro (Mc 7,1-23)

O evangelho deste final de semana é comprido. Fala dos costumes religiosos da época de Jesus, muitos dos quais já tinham perdido seu sentido e até atrapalhavam a vida do povo, ameaçando as pessoas com castigo e inferno. Enxergavam pecado em tudo! Por exemplo, comer sem lavar as mãos era considerado pecado. Mesmo assim, estes costumes eram conservados e ensinados, ou por medo, ou por superstições. Vamos conversar sobre isso!
SITUANDO
Neste círculo, olhamos de perto a atitude de Jesus frente à questão da pureza. Anteriormente, Marcos já tinha tocado neste assunto da pureza: em Me 1,23-28, Jesus expulsou um espírito impuro. Em Me 1,40-45, ele curou um leproso. Em Mc 5,25-34, curou uma mulher considerada impura. Em vários outros momentos, ele tocou em doentes e deficientes físicos, sem medo de ficar impuro. Agora, aqui no capítulo 7, Jesus ajuda o povo e os discípulos a aprofundar este assunto da pureza e das leis da pureza.
Desde séculos, os judeus, para não contrair impureza, eram proibidos de entrar em contato com os pagãos e de comer com eles. Mas nos anos 70, época de Marcos, alguns judeus convertidos diziam: "Agora que somos cristãos temos que abandonar estes costumes antigos que nos separam dos pagãos convertidos!" Outros, porém, achavam que deviam continuar a observar as leis de pureza. A atitude de Jesus, descrita no evangelho de hoje, ajudava-os a superar o problema.
COMENTANDO
Marcos 7,1-2: Controle dos fariseus e liberdade dos discípulos
Os fariseus e alguns escribas, vindos de Jerusalém, observavam como os discípulos de Jesus comiam pão com mãos impuras. Aqui há três pontos que merecem ser assinalados:
1) Os escribas são de Jerusalém, da capital! Significa que tinham vindo para observar e controlar os passos de Jesus.
2) Os discípulos não lavam as mãos para comer! Significa que a convivência com Jesus os levou a criar coragem para transgredir normas que a tradição impunha ao povo, mas que já não tinham sentido para a vida.
3) O costume de lavar as mãos, que, até hoje, continua sendo uma norma importante de higiene, tinha tomado para eles um significado religioso que servia para controlar e discriminar as pessoas.
Marcos 7,3-4: A Tradição dos Antigos
A "Tradição dos Antigos" transmitia as normas que deviam ser observadas pelo povo para ele conseguir a pureza exigida pela lei. A observância da pureza era um assunto muito sério. Eles achavam que uma pessoa impura não poderia receber a bênção prometida por Deus a Abraão. As normas de pureza eram ensinadas para abrir o caminho até Deus, fonte da paz. Mas, na realidade, em vez de ser uma fonte de paz, elas eram uma prisão, um cativeiro. Para os pobres, era praticamente impossível observá-las. Eram centenas de normas e leis. Por isso, os pobres eram desprezados como gente ignorante e maldita que não conhece a lei (Jo 7,49).
Marcos 7,5: Escribas e fariseus criticam o comportamento dos discípulos de Jesus
Os escribas e fariseus perguntam a Jesus: Por que os teus discípulos não se comportam conforme a tradição dos antigos e comem o pão com as mãos impuras? Eles fingem estar interessados em conhecer o porquê do comportamento dos discípulos. Na realidade, criticam Jesus por ele permitir que os discípulos transgridam as normas de pureza. Os fariseus formavam uma espécie de irmandade cuja principal preocupação era observar todas as leis de pureza. Os escribas eram os responsáveis pela doutrina. Ensinavam as leis referentes à observância da pureza.
Marcos 7, 6-13: Jesus critica a incoerência dos fariseus
Jesus responde citando Isaías: Este povo me honra só com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Insistindo nas normas de pureza, os fariseus esvaziavam os mandamentos da lei de Deus. Jesus cita um exemplo concreto. Eles diziam: o fulano que oferecer ao Templo os seus bens não pode usar esses bens para ajudar os pais necessitados. Assim, em nome da tradição, esvaziavam o quarto mandamento, que manda amar pai e mãe. Até hoje, tais pessoas parecem muito observantes, mas é só por fora. Por dentro, o coração delas fica longe de Deus! Como diz o canto: "Seu nome é Jesus Cristo e passa fome, e vive à beira das calçadas. E a gente quando vê passa adiante, às vezes para chegar depressa à Igreja!" No tempo de Jesus, o povo, na sua sabedoria, não concordava com tudo que se ensinava. Esperava que, um dia, o messias viesse indicar outro caminho para alcançar a pureza. Em Jesus se realiza esta esperança.
Marcos 7,14-16: Jesus abre um novo caminho para o povo se aproximar de Deus
Ele diz para a multidão: "Não há nada no exterior do ser humano que, entrando nele, possa torná-lo impuro!" (Me 7,15). Jesus inverte as coisas: o impuro não vem de fora para dentro, como ensinavam os doutores da lei, mas sim de dentro para fora. Deste modo, ninguém mais precisa se perguntar se esta ou aquela comida ou bebida é pura ou impura. Jesus coloca o puro e o impuro num outro nível, no nível do comportamento ético. Ele abre um novo caminho para chegar até Deus e, assim, realiza o desejo mais profundo do povo.
Marcos 7,17-23: Em casa, os discípulos pedem explicação
Os discípulos não entenderam bem o que Jesus queria dizer com aquela afirmação. Quando chegaram em casa, pediram uma explicação. Jesus estranhou a pergunta dos discípulos. Pensava que eles tivessem entendido a parábola. Na explicação aos discípulos, ele vai até ao fundo da questão da pureza. Declara puros todos os alimentos! Ou seja, nenhum alimento que de fora entre no ser humano pode torná-lo impuro, pois não vai até o coração, mas vai para o estômago e acaba na fosse, e, conforme o pensamento da época, o que entrava na fossa não era considerado impuro. Mas o que torna impuro, diz Jesus, é aquilo que de dentro do coração sai para envenenar o relacionamento humano. E ele enumera: prostituição, roubo, assassinato, adultério, ambição, etc.
Assim, de muitas maneiras, pela palavra, pelo toque e pela convivência, Jesus foi ajudando as pessoas a conseguir a pureza. Pela palavra, purificava os leprosos, expulsava os espíritos impuros e vencia a morte, que era a fonte de toda a impureza. Pelo toque em Jesus, a mulher excluída como impura ficou curada. Sem medo de contaminação, Jesus comia junto com as pessoas consideradas impuras.
ALARGANDO
As leis da pureza no tempo de Jesus
O povo daquela época tinha uma grande preocupação com a pureza. A lei e as normas de pureza indicavam as condições necessárias para alguém poder comparecer diante de Deus e se sentir bem na presença dele. Não se podia comparecer diante de Deus de qualquer jeito. Pois Deus é Santo. A Lei dizia: "Sede santos, porque eu sou santo!" (Lv 19,2). Quem não era puro não podia chegar perto de Deus para receber dele a bênção prometida a Abraão.
A lei do puro e do impuro (Lv 11 a 16) foi escrita depois do cativeiro da Babilônia, cerca de 800 anos depois do Êxodo, mas tinha suas raízes na mentalidade e nos costumes antigos do povo da Bíblia. Uma visão religiosa e mítica do mundo levava o povo a apreciar as coisas, as pessoas e os animais a partir da categoria da pureza (Gn 7,2; Dt 14,13-21; Nm 12,10-15; Dt 24,8-9).
No contexto da dominação persa, nos séculos V ou IV antes de Cristo, diante da dificuldade para reconstruir o templo de Jerusalém e para a própria sobrevivência do clero, os sacerdotes que estavam no governo do povo da Bíblia ampliaram as leis de pureza e a obrigação de oferecer sacrifícios de purificação pelo pecado. Assim, depois do parto (Lv 12,1-8), da menstruação (Lv 15,19-24) ou da cura de uma hemorragia (Lv 15,25-30), as mulheres tinham que oferecer sacrifícios para recuperar a pureza. Pessoas leprosas (Lv 13) também deviam oferecer sacrifícios. Uma parte destas oferendas ficava para os sacerdotes (Lv 5,13).
No tempo de Jesus, tocar um leproso, comer com publicano, comer sem lavar as mãos, etc., tudo isso tornava a pessoa impura, e qualquer contato com esta pessoa contaminava os outros. Por isso, as pessoas "impuras" deviam ser evitadas. O povo vivia acuado, sempre ameaçado pelas tantas coisas impuras que ameaçavam a vida. Era obrigado a viver desconfiado de tudo e de todos.
Agora, de repente, tudo mudou! Através da fé em Jesus, era possível conseguir a pureza e sentir-se bem diante de Deus sem que fosse necessário observar todas aquelas leis e normas da Tradição dos Antigos. Foi uma libertação! A Boa Nova anunciada por Jesus tirou o povo da defensiva, do medo, e lhe devolveu a vontade de viver, a alegria de ser filho e filha de Deus, sem medo de ser feliz!
Carlos Mesters e Mercedes Lopes

http://www.cebi.org.br/noticias.php?secaoId=1&noticiaId=5909

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 23.08.2015)

Qual é a palavra que pode sustentar nossa fome de viver?

O Evangelho de Jesus é, desde sempre e literalmente, boa notícia. Por isso, onde é anunciado e ouvido, produz alegria, como bem insiste o papa Francisco. Mas também provoca crise, e não apenas hoje. Não é possível crer em Jesus e seguir seu caminho sem romper com uma cultura centrada na competição, na experteza, na indiferença e na dominação. Se não acontecer esta ruptura, a fé professada comn os lábios acaba sendo negada pelas atitudes. É como diz Jesus: “As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem...”
O evangelho deste domingo é parte do sexto capítulo de João. Tudo começou com a partilha dos pães e dois peixes entregues a Jesus por um jovem e servidos à multidão. Entusiasmada com a abundância de alimento, a multidão quis transformar Jesus em rei, mas ele fugiu de fininho. Diante desta recusa de Jesus, os discípulos ficaram desorientados e pensaram em fugir. Mas Jesus foi ao encontro deles no meio do mar agitado. E, depois disso, Jesus desenvolve uma longa catequese sobre o pão verdadeiro que alimenta de verdadeiramente e merece ser buscado.
Esta longa reflexão sobre o pão da vida não tem nada de inocente, espiritualista ou inofensivo, e os discípulos o entenderam  perfeitamente. Por isso, disseram a Jesus que seu modo de falar era duro demais e que era difícil continuar ouvindo seu ensino. A razão da crise dos discípulos é seguir alguém que não aceita ser rei; que pede para renunciar à ambição individual de estar à sua direita ou à sua esquerda; que propõe a entrega de si mesmo como caminho de realização; que indica a atitude de servo como a mais nobre e digna do ser humano...
Sedentos de triunfo e de sucesso, muitos discípulos, frustrados e rebelados, abandonam o discipulado. Mas Jesus provoca ainda mais os discípulos já escandalizados, enfatizando que é próprio do ser humano descer, que quem desce ou é rebaixado é visto por Deus como o mais nobre e perfeito. A partir disso, muitos discípulos voltam atrás, e não andam mais com Jesus. Eles um Enviado diferente, um Messias feito à medida da ideologia e dos interesses individuais e da própria classe. Sem receio de ficar só, Jesus  enfrenta também os que permanecem: “Vocês também querem ir embora?”
A resposta a esta pergunta, que também é dirigida a nós, não pode ser da boca pra fora, da cabeça para cima; deve ser consciente, engajada e consequente. Pedro, em nome de um bom grupo de discípulos e de forma um pouco resignada, responde com uma pergunta: “A quem iremos, Senhor?” A resposta não vem da boca de Jesus, mas de um discernimento que nós mesmos devemos fazer. De minha parte, como Pedro, fico com Jesus Cristo e sua humanidade, com o Evangelho e sua liberdade, com o serviço aos irmãos e à sua dignidade. Não me reconheceria nem conseguiria viver fora desse horizonte...
Jesus é a Palavra de Deus feita carne solidária, e suas palavras são portadoras de vida. Pedro entendeu bem: “Tu tens palavras de vida eterna.”  Ela sabia muito bem que, diante de Jesus, todos se descobrem pessoas dignas e capazes, conduzidas a uma liberdade sempre mais plena e exigente, portadoras de uma vida cada vez mais plenificada, peregrinas de um caminho que liberta porque jamais termina. Mas continua não sendo possível ser cristão e, ao mesmo tenpo, permanecer dentro das premissas da cultura individualista. Não podemos cair na tentação, sempre presente e forte, de adocicar e amenizar a mensagem de Jesus Cristo, subemetendo-a ao nosso desejo de prosperidade e grandeza...
Crer em Jesus significa experimentar uma liberdade radical, capaz de promover a liberdade de quem convive conosco. Só quem foi libertado de tudo está em condições de servir. “Sejam submissos uns aos outros no amor de Cristo”, pede Paulo aos esposos e a todos os cristãos. Sub-missio, missão subalterna, significa estar à disposição do outro. É isso que nos leva a assumir o fardo do outro, a ser sub-stituto, a suportá-lo nas penas e sofrimentos, nos sonhos e buscas. Paulo aplica isso à relação entre marido e mulher, mas a reciprocidade no amor e no serviço se aplica a todas as relações. Eis a novidade cristã!
Jesus amado, profeta temido por tua intrepidez, pão que alimenta nossa fome mais profunda, Palavra que nos mantém no belo e difícil caminho da vida! Ensina-nos a encontrar a simplicidade profunda do teu Evangelho e a vivê-lo com inocente e desarmada alegria. Ajuda-nos a viver a submissão e o serviço recíprocos e fazer disso uma pequena mas persistente diferença. Ilumina e fortalece nossos catequistas: que eles experimentem gozosamente a glória de descer ao encontro dos mais pobres, para ser tua Boa Notícia para eles, e conduzam ao teu encontro as pessoas a eles confiadas. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro de Josué 24,1-2.15-18 * Salmo 33 (34) * Carta aos Efésios 5,21-32 * Evangelho de São João 6,60-69)

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Uma pergunta séria...

POR QUE FICAMOS?

Durante estes anos multiplicaram-se as análises e estudos sobre a crise das Igrejas cristãs na sociedade moderna. Esta leitura é necessária para conhecer melhor alguns dados, mas resulta insuficiente para discernir qual há de ser a nossa reação. O episódio narrado por João pode-nos ajudar a interpretar e viver a crise com maior profundidade evangélica.
Segundo o evangelista, Jesus resume assim a crise que está se criando no Seu grupo: «As palavras que vos disse são espírito e vida. E, contudo, alguns de vós não crêem». É certo. Jesus introduz em quem o segue um espírito novo; as Suas palavras comunicam vida; o programa que propõe pode gerar um movimento capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.
Mas, não é por estar no Seu grupo, que está garantida a fé. Há quem resista a aceitar o Seu espírito e a Sua vida. A sua presença no entorno de Jesus é fictícia; a sua fé Nele não é real. A verdadeira crise no interior do cristianismo é sempre esta: acreditamos ou não acreditamos em Jesus?
O narrador diz que «muitos recuaram e não voltaram a ir com Ele». Na crise revela-se quem são os verdadeiros seguidores de Jesus. A opção decisiva sempre é essa: quem recua e quem permanece com Ele, identificados com o Seu espírito e a Sua vida? Quem está a favor e quem está contra o Seu projeto?
O grupo começa a diminuir. Jesus não se irrita, não pronuncia nenhum juízo contra ninguém. Só faz uma pergunta aos que ficaram junto Dele: «Também vós quereis partir?». É a pergunta que se nos faz hoje, a quem segue na Igreja: Que queremos nós? Por que ficamos? É para seguir Jesus, acolhendo o Seu espírito e vivendo ao Seu estilo? É para trabalhar no Seu projeto?
A resposta de Pedro é exemplar: «Senhor, a quem vamos acudir? Tu tens palavras de vida eterna». Os que ficam, devem-no fazer por Jesus. Só por Jesus. Por nada mais. Comprometem-se com Ele. O único motivo para permanecer no grupo é Ele. Ninguém mais.
Por mais dolorosa que nos pareça, a crise atual será positiva se os que ficarmos na Igreja, muitos ou poucos, nos formos convertendo em discípulos de Jesus, ou seja, em homens e mulheres que vivemos das Suas palavras de vida.

José Antonio Pagola

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Ainda sobre o pão da vida...

O DECISIVO É TER FOME

O evangelista João utiliza uma linguagem muito forte para insistir na necessidade de alimentar a comunhão com Jesus Cristo. Só assim experimentaremos em nós a Sua própria vida. Segundo ele, é necessário alimentar-se de Jesus: «O que se alimenta de mim, viverá por mim».
A linguagem adquire um caráter todavia mais agressivo quando diz que tem de se comer a carne de Jesus e beber o Seu sangue. O texto é claro e provocativo. «A Minha carne é verdadeira comida, e o Meu sangue é verdadeira bebida. O que come a Minha carne e bebe mi sangue habita em Mim e Eu nele».
Esta linguagem já não produz impacto algum entre os cristãos. Habituados a escutá-lo desde crianças, tendemos a pensar no que vimos fazendo desde a primeira comunhão. Todos conhecemos a doutrina aprendida no catecismo: no momento de comungar, Cristo faz-se presente em nós pela graça do sacramento da eucaristia.
Por desgraça, tudo pode ficar mais de uma vez na doutrina pensada e aceita piedosamente. Mas, com frequência, falta-nos a experiência de incorporar Cristo à nossa vida concreta. Não sabemos como abrir-nos a Ele para que nutra com o Seu Espírito a nossa vida e a vá fazendo mais humana e mais evangélica.
Alimentar-se de Cristo é muito mais que avançarmos distraidamente para cumprir o rito sacramental de receber o pão consagrado. Comungar com Cristo exige um ato de fé e abertura de especial intensidade, que se pode viver sobretudo no momento da comunhão sacramental, mas também em outras experiências de contato vital com Jesus.
O decisivo é ter fome de Jesus. Procurar desde o mais profundo encontrar-nos com Ele. Abrir-nos à Sua verdade para que nos marque com o Seu Espírito e potencie o melhor que há em nós. Permitir que ilumine e transforme as zonas da nossa vida que estão todavia sem evangelizar.
Então, alimentar-nos de Jesus é voltar ao mais genuíno, ao mais simples e mais autêntico do Seu Evangelho; interiorizar as Suas atitudes mais básicas e essenciais; acender em nós o instinto de viver como Ele; despertar a nossa consciência de discípulos e seguidores para fazer Dele o centro da nossa vida. Sem cristãos que se alimentem de Jesus, a Igreja enfraquece sem remédio.

José Antonio Pagola

A sociedade civil brasileira sob ameaça

Nota do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs)
PL 2016/2015: mais um gritante ataque à democracia

O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) tem se manifestado inúmeras vezes em relação aos recentes ataques à democracia brasileira. Pautas cada vez mais conservadoras ganham força, ao passo que as matérias sociais são sistematicamente deixadas de lado. E a incoerência parece não ter limites. Já aprovaram, em plena crise, até a autorização para construir shopping na Câmara. No âmbito da legislatura em si, o disparate que gerou maior ruído foi a manobra vergonhosa que garantiu a aprovação da redução da Maioridade Penal.
Agora, a cartada da vez é o PL 2016/2015, que tem como objetivo definir o que são organizações terroristas e criminalizar condutas dessas organizações. O problema é que, no texto atual, o PL delega às autoridades o poder para decidir se determinada mobilização é legítima na luta por direitos ou se tem como objetivo "a coerção de autoridades". Por isso, em nota emitida hoje (05/08) CONIC alerta que "tal brecha poderia levar a enquadramentos equivocados de ações populares que tenham como objetivo ações políticas para fazer pressão junto às autoridades para a garantia ou ampliação de direitos. Este texto, representa uma grave ameaça às liberdades democráticas por criminalizar a política e expressão ideológica."
Em outras palavras: se o PL for aprovado como tal, corre o risco de qualquer manifestação oriunda da sociedade civil organizada ser caracterizada como ação terrorista, o que igualaria o Brasil às tristes ditaduras mundo afora em que as manifestações são reprimidas com força, truculência e prisão. Confira, a seguir, a Nota do CONIC.

NOTA SOBRE O PL 2016/2015: a tipificação dos crimes de terrorismo e a ameaça às liberdades democráticas
“Ah! Se conhecesses também tu, ainda hoje, o que serve para a paz” (Lc 19.42)
Temos assistido, com perplexidade e preocupação, as constantes ameaças à democracia e aos direitos humanos, ambas conquistadas às duras penas pela sociedade civil brasileira. Para cada direito conquistado nesse país, muito sangue foi derramado e muitas pessoas tiveram suas liberdades restringidas. A democracia e os direitos conquistados são, portanto, valores inegociáveis da sociedade brasileira.
No entanto, o ano de 2015 tem se caracterizado, em especial, pela atuação de parte do Congresso Federal pela mobilização e pelo engajamento militante voltados para restringir tanto a democracia quanto os direitos sociais, econômicos e políticos da sociedade brasileira. 
Entre os retrocessos, o maior exemplo é a PEC 171/1993, que reduz a maioridade penal, cujos debates serão retomados pelo Congresso. Entre as novas ameaças, chamamos a atenção para o PL 2016/2015, que tem como objetivo definir o que são organizações terroristas e criminalizar condutas dessas organizações.
O PL exclui da delimitação de organização terrorista a conduta individual e coletiva de pessoas ou manifestações políticas, movimentos sociais e sindicais que se mobilizam por questões reivindicatórias na defesa ou busca por direitos. No entanto, o texto do PL delega às autoridades o poder para decidir se determinada mobilização é legítima na luta por direitos ou se tem como objetivo "a coerção de autoridades". Compreende-se que tal brecha poderia levar a enquadramentos equivocados de ações populares que tenham como objetivo ações políticas para fazer pressão junto às autoridades para a garantia ou ampliação de direitos. Este texto, representa uma grave ameaça às liberdades democráticas por criminalizar a política e expressão ideológica.
Todos os crimes previstos no Projeto estão tutelados por outras leis. Nesse sentido, compreendemos que a tipificação dos crimes de terrorismo é desnecessária e perigosa por ser imprecisa e inconstitucional e por expor cidadãos e cidadãs à censura penal de atos políticos. Esse PL aumenta a cultura e o poder punitivos e fragiliza o poder popular, democrático e cidadão.
A dificuldade em tipificar condutas terroristas, sem criminalizar protestos e relativizar a democracia, aumenta o risco de reprimir o direito fundamental à manifestação. Organizações de direitos humanos chamam a atenção para o fato de que a aprovação desse Projeto pode significar um “um erro histórico e com consequências graves para a democracia brasileira”.
Portanto, um tema complexo e sério como esse precisa ser debatido amplamente e com o conjunto da sociedade brasileira. É por isso, que reivindicamos que o Executivo retire esse PL da pauta de votações. E caso isso não aconteça que o PL 2016/2015 não seja votado sem ser amplamente divulgado e debatido por meio de Audiências Públicas e outras formas de discussão.

Que o bom senso prevaleça!

SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA (ANO B –16.08.2015)

Bem-aventurados os homens e mulheres que acreditam!
A Assunção é uma festa mariana que fez história e lançou profundas raízes na religiosidade popular. Mas é importante destacar que aquilo que cremos sobre Maria se refere, de alguma forma, à comunidade eclesial, ao povo de Deus, a todos os homens e mulheres. A glorificação de Nossa Senhora, ou seja, sua acolhida e realização plena em Deus, é uma vocação e uma promessa de Deus extensiva a toda a humanidade. Como Maria, todos nascemos para a glória, para brilhar. Em Maria, a pessoa humana em sua integridade – em corpo e alma! – é assumida e realizada em Deus. Eis uma belíssima realização da nossa esperança e uma proclamação clara e inequívoca da dignidade do corpo.
No Magnificat, Maria aparece como uma pessoa humilde e humilhada. No seu evangelho, Lucas no-la a apresenta como uma mulher que sabe ouvir a Palavra viva de Deus e está sempre pronta a dar o melhor de si para que essa Palavra se realize na história. Da boca de Isabel ficamos sabendo que Maria é alguém que ousou acreditar na força da Palavra e na fidelidade do Deus misericordioso que a pronuncia. Por isso, no vulto cristão de Maria o que se destaca é a humildade, a escuta e a fé, marcas fundamentais da sua personalidade, intrinsecamente relacionadas.
Deus pôde realizar grandes coisas em Maria e através de Maria porque encontrou nela a indispensável base humana já preparada. Para fazer-se humano, o Filho de Deus precisou de uma pessoa profundamente humana, e não de criaturas angélicas! Humildade, escuta e fé na ação libertadora de Deus é também o que possibilita uma vida feliz. O segredo da felicidade que todos buscamos não está na posse ou no consumo desmedido de bens, nem na fama, no sucesso ou no poder de atração que exercemos sobre os outros, mas na abertura humilde e profunda aos outros, ao futuro e a Deus.
Depois do diálogo engajado com Deus através do anjo, Maria vai apressadamente à casa de Isabel. Busca um sinal que confirme a parceria de Deus com os humildes e sua aliança com os pobres. Ela havia dado sua palavra Àquele que é capaz de fazer grandes coisas em favor do seu povo, mas nem tudo estava claro. Então, a discípula se faz serva, a serva se torna peregrina e a peregrina procura e encontra hospitalidade na casa de Isabel. Juntas, na intimidade aberta de uma casa, Isabel e Maria louvam a Deus e profetizam. E a discípula, serva e peregrina se transforma em profetiza destemida...
Contemplando sua própria história e a epopéia do seu povo, Maria percebe e proclama a intervenção libertadora de Deus: ele dispersa os soberbos, derruba os poderosos, exalta os humildes e oprimidos, socorre seu povo e estende sua misericórdia a todas as gerações. Então, esta mulher, assumida por Deus no céu, não é apenas uma humilde trabalhadora do lar, uma discreta pessoa que acredita, a doce e recatada esposa de José. Deus assume em corpo e alma e eleva à glória do céu aquela que rompe com a cultura que menospreza a mulher, aquela que diz uma palavra profética na arena pública.
Na assunção de Nossa Senhora e no encontro entre Maria e Isabel o corpo festeja e é festejado. É bendito o corpo feminino de Maria, assim como bendito é Aquele que ela nutre e carrega no ventre. Bendito é o corpo de Isabel, capaz de perceber a incontida alegria daquele que preparará a estrada para a chegada do Messias, e bendito é o corpo dos mártires de todos os tempos. Bendito é também o corpo dos humilhados e dos famintos, destinados por Deus desde sempre ao brilho. Em Maria o corpo humano não necessita de malhação, retoque e maquiagem para ser apreciado e valorizado...
Finalmente, Maria é discípula de Jesus, membro da Igreja, sinal e símbolo do povo de Deus. Sua assunção por Deus é um sinal da ressurreição que todos esperamos. Como aquela mulher radiante do Apocalipse, a humanidade está em trabalho de parto e, mesmo ameaçada por todos os lados, vai dando à luz um Homem Novo e construindo um Mundo Novo. Maria simboliza a humanidade e a Igreja em seus traços femininos. Nela, a Igreja é chamada a construir-se como corpo que acolhe, aquece, alimenta, ensina, respeita e favorece o crescimento e o amadurecimento dos filhos e filhas.
Ave Maria, cheia de graça! O senhor está contigo! És bendita entre todas as mulheres, e é bendito o fruto do teu ventre!  Maria santa, mãe de Deus e dos filhos e filhas de Deus, intercede por nós neste complexo tempo que vivemos. Ajuda tua Igreja a ser uma comunidade de iguais. Ensina as pessoas consagradas a anunciar com a vida e com a palavra que nada pode ser colocado acima do amor a Jesus e aos pobres nos quais ele vive. E conduz a vida consagrada aos desertos (onde o nada parece tudo), às periferias (onde a impotência se impõe) e às fronteiras (onde a criatividade não pode conhecer limites). Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Apocalipse de S. João 12,1-10 * Salmo 44 (45) * 1ª Carta aos Coríntios 15,20-27 * Ev. de São Lucas 1,39-56)

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O encontro de duas mulheres

“Você é bendita entre as mulheres, e bendito é o fruto do seu ventre” (Lucas 1, 39-45)

Para entender bem a finalidade de Lucas em relatar os eventos ligados à concepção e nascimento de Jesus, é essencial conhecer algo da sua visão teológica. Para ele, o importante é acentuar o grande contraste, mesmo que haja também continuidade, entre a Antiga e a Nova Aliança. A primeira está retratada nos eventos que giram ao redor do nascimento de João Batista, e tem os seus representantes em Isabel, Zacarias e João; a segunda está nos relatos ao redor do nascimento de Jesus, com as figuras de Maria, José e Jesus.
Para Lucas, a Antiga Aliança está esgotada, deu o que era para dar - os seus símbolos são Isabel, estéril e idosa; Zacarias, sacerdote que duvida do anúncio do anjo; e, o nenê que será um profeta, figura típica do Antigo Testamento. Em contraste, a Nova Aliança tem como símbolos a jovem virgem de Nazaré que acredita e cujo filho será o próprio Filho de Deus. Mais adiante, Lucas enfatiza este contraste nas figuras de Ana e Simeão, no Templo, (Lc 2, 25-38), especialmente quando Simeão reza: “Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar o teu servo partir em paz. Porque meus olhos viram a tua salvação” (2, 29). Por isso, não devemos reduzir a história de hoje a um relato que pretende mostrar a caridade de Maria em cuidar da sua parenta idosa e grávida. Se a finalidade de Lucas fosse essa, não teria colocado o versículo 56, que mostra ela deixando Isabel antes do nascimento de João: “Maria ficou três meses com Isabel; e depois voltou para casa”. É só depois que Lucas trata do nascimento de João.
Também não é verossímil que uma moça judia de mais ou menos quatorze anos enfrentasse uma viagem tão perigosa como a da Galileia à Judeia! A intenção de Lucas é literária e teológica. Ele coloca juntas as duas gestantes, para que ambas possam louvar a Deus pela sua ação nas suas vidas, e para que fique claro que o filho de Isabel é o precursor do filho de Maria. Por isso, Lucas tira Maria de cena antes do nascimento de João, para que cada relato tenha somente as suas personagens principais: de um lado, Isabel, Zacarias e João; do outro lado, Maria, José e Jesus.
O fato que a criança “se agitou” no ventre de Isabel faz recordar algo semelhante na história de Rebeca, quando Esaú e Jacó “pulavam” no ventre dela, na tradução da Septuaginta de Gn 25, 22. O contexto, especialmente versículo 43, salienta que João reconhece que Jesus é o seu Senhor. Com a iluminação do Espírito Santo, Isabel pode interpretar a “agitação” de João - é porque Maria está carregando o Senhor.
As palavras referentes a Maria: “Você é bendita entre as mulheres, e bendito é o fruto do seu ventre” (v. 42) fazem lembrar mais duas mulheres que ajudaram na libertação do seu povo: Jael (Jz 5, 24) e Judite (Jd 13, 18). Aqui Isabel louva a Maria que traz no seu ventre o libertador definitivo do seu povo.
Finalmente, vale destacar o motivo pelo qual Isabel chama Maria de “bem-aventurada” (v. 45): “Bem-aventurada aquela que acreditou.” Maria é bendita em primeiro lugar, não pela sua maternidade, mas pela fé - em contraste com Zacarias, que duvidou. Aqui Maria é principalmente modelo de fé.    
O texto de hoje nos lembra que Maria era uma mulher lutadora, totalmente comprometida com o projeto de Deus para um mundo fraterno. Se Ela estivesse entre nós hoje, sem dúvida Ela - como também Jesus - estaria nos movimentos e pastorais sociais, lutando pela vida digna de todos e celebrando com os irmãos e irmãs a fé no Deus de Justiça, Libertação e Salvação.  
Pe. Thomas Hughes, SVD

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Uma vida com sabor de eternidade

ATRAÇÃO POR JESUS

O evangelista João repete uma e outra vez expressões e imagens de grande força para gravar bem nas comunidades cristãs que se acercam de Jesus para descobrir nele una fonte de vida nova. Um princípio vital que não é comparável com nada que tenha podido conhecer anteriormente.
Jesus é «pão descido do céu». Não pode ser confundido com qualquer fonte de vida. Em Jesus Cristo podemos alimentar-nos de uma força, uma luz, uma esperança, um alento vital... que vem do mistério mesmo de Deus, o Criador da vida. Jesus é «o pão da vida».
Por isso, precisamente, não é possível encontrar-se com ele de qualquer maneira. Temos de ir ao mais fundo de nós mesmos, abrir-nos a Deus e «escutar o que nos diz o Pai». Ninguém pode sentir verdadeira atração por Jesus, «se não o atrai o Pai que O há enviado».
O mais atrativo de Jesus é a Sua capacidade de dar vida. O que acredita em Jesus Cristo e sabe entrar em contacto com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, uma vida que, de alguma maneira, pertence já ao mundo de Deus. João atreve-se a dizer que «o que come deste pão, viverá para sempre».
Se, nas nossas comunidades cristãs, não nos alimentamos do contato com Jesus, seguiremos ignorando o mais essencial e decisivo do cristianismo. Para isso, nada há pastoralmente mais urgente que cuidar bem da nossa relação com Jesus, o Cristo.
Se, na Igreja, não nos sentimos atraídos por esse Deus encarnado num homem tão humano, próximo e cordial, ninguém nos tirará do estado de mediocridade em que vivemos sumidos habitualmente. Ninguém nos estimulará para ir mais longe que o estabelecido pelas nossas instituições. Ninguém nos alentará para ir mais adiante que o que nos marcam as nossas tradições.
Se Jesus não nos alimenta com o Seu Espírito de criatividade, seguiremos presos ao passado, vivendo a nossa religião desde formas, concepções e sensibilidades nascidas e desenvolvidas noutras épocas e para outros tempos que não são os nossos. Mas, então, Jesus não poderá contar com a nossa cooperação para gerar e alimentar a fé no coração dos homens e mulheres de hoje.

José Antonio Pagola

DÉCIMO NONO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 09.08.2015)

Ainda temos um longo caminho a percorrer...

A humanidade de Jesus foi e continua sendo uma pedra de contradição e de escândalo, inclusive para muitos cristãos. Aceitá-la e sublinhá-la significa reconhecer o arcano desejo de Deus de se autocomunicar às criaturas, especialmente ao ser humano. Significa também ressaltar o dinamismo da compaixão que leva Deus a entrar definitivamente na condição humana e a se identificar com as dores e sonhos da humanidade. É isso que dá sentido pleno e profundo à sua ação de alimentar a multidão cansada e faminta... E é isso que está no núcleo da catequese de Jesus sobre o pão da vida.
A longa discussão que Jesus mantém com seus discípulos e com as autoridades do judaísmo, depois de socorrer a fome do povo, está longe de ser uma simples catequese espiritual sobre sua presença real nas espécies eucarísticas. O que está em questão é o modo de conhecer e de agradar a Deus: Cumprindo leis de forma mecânica? Obedecendo uma carroçada de normas e princípios morais? Celebrando ritos que passam à margem das estradas da vida? Fixando a atenção numa hipotética vida após a morte e desprezando os desafios da história?
Jesus se oferece como alimento que desce continuamente do céu e assume a carnalidade das dores e dos sonhos humanos. Ele não diz que é o pão que desceu do céu (tempo passado), mas o pão que desce permanentemente do céu (tempo presente). “Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (Jo 6,33). Tanto o verbo “descer” como o verbo “dar” estão no tempo presente e referidos à missão libertadora de Jesus. No horizonte do evangelho segundo João, “descer” é uma metáfora que aponta para a diminuição social, um aspecto central na vida de Jesus e de quem o segue.
O alimento que faz a diferença e que supera tanto o maná como a simples distribuição assistencialista de comida é a humanidade compassiva de Jesus. O que ele discute no evangelho de hoje não é sua origem divina ou humana, mas a nossa resistência em aceitar sua encarnação redentora. Assim, a fé em Jesus Cristo e a adesão ao dinamismo eucarístico não são propriamente uma subida a Deus, mas uma descida solidária ao encontro do humano. A comunhão com as dores e alegrias, tristezas e angústias dos homens e mulheres do nosso tempo é o únco caminho que pode nos levar a Deus.
Jesus recorre aos profetas para enfatizar que é isso que precisamos aprender, que esta é a lição fundamental de Deus. Dizendo que todos serão discípulos de Deus, Jesus evita os estreitamentos ideologicos, étnicos ou eclesiásticos, e afirma a universalidade do caminho da vida. Quem cuida da vida dos outros está no caminho da vida eterna, e quem não aceita e não se engaja nessa missão não é discípulo de Deus, se fecha à sua voz. De novo, a questão não é simplesmente crer ou não na presença real de Cristo no pão eucarístico, mas escutar a Palavra que nos diz mediante sua contínua descida.
Nesta catequese, Jesus também opõe a força de vida da sua descida, da humana compaixão, à insuficiência do maná. Ele lembra que o povo hebreu comeu do maná mas experimentou o malogro na realização do sonho de uma terra livre e sem males. E isso não ocorreu por causa da qualidade do maná, mas da atitude do povo, da sua incapacidade de ouvir e obedecer a Deus. Aqui está a novidade de Jesus Cristo: somente quem ouve sua Palavra e crê nele, quem se faz seu discípulo e se alimenta da sua humanidade, chega à meta da travessia e alcança a terra desejada e prometida.
Resumindo: não podemos reduzir o discurso de Jesus sobre o pão vivo e verdadeiro à questão da sua presença real nas espécies do pão e do vinho, pois isso significaria empobrecer gravemente seu Evangelho. O que está em jogo não é o sacramento da eucaristia mas a irrecusável humanidade de Deus. Jesus nos convida a entrar na escola do discipulado e oferece sua Palavra como alimento para o longo caminho que nos espera. Paulo diz que chegaremos à meta deste caminho quando formos bons e compassivos uns cons os outros, quando conseguirmos viver o amor e o dom recíprocos, a exemplo de Jesus, “que nos amou e se entregou a si mesmo a Deus por nós”.
Jesus amado, te agradecemos porque nos revelas que Deus é um pai com coração de mãe e te ofereces a nós como pão que desce e alimenta nossos sonhos e nos sustentas na luta para realizá-los. Aprendemos contigo – e com pessoas grandes e generosas como Frei Tito de Alencar Lima (+10.08.1974), Margarida Alves (+12.08.1983) e Pe. Alfredinho Kunz (+12.08.2000) – que é sendo bondosos, solidários e compassivos uns com os outros que seremos filhos e imitadores de Deus pai. Alimenta com teu humano corpo e tua Palavra todos os pais, e também nossos anelos de bem viver. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(2° Livro dos Reis 19,4-8 * Salmo 33 (34) * Carta aos Efésios 4,30-5,2 * Evangelho de São João 6,41-51)

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O pao da vida, a comunhao...

Eu sou o pão que desceu do céu (Jo 6, 41-51)

O texto deste 19º domingo do Tempo Comum é Jo 6,41-51 e continua o discurso de Jesus sobre o pão que desceu do céu.
Conteúdo e contexto
No domingo passado a multidão havia pedido a Jesus: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (v. 34). Neste, ele faz a grande declaração: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome, e quem acredita em mim nunca mais terá sede” (v. 35). Portanto, a narração se dá ainda junto ao Mar da Galileia onde Jesus havia multiplicado os pães (cf. v. 19). Nos vv. 41-51 acontece toda uma situação de crítica a este Jesus que se declara Pão Vivo, enviado pelo Pai. Podemos destacar três momentos nesta perícope:
1) Os adeptos da instituição criticam Jesus (v. 41-42)
A perícope começa introduzindo novas personagens, os adeptos da instituição, diante da declaração anterior de Jesus apresentam como objeção a sua origem humana, que para eles é incompatível com a sua qualidade divina (cf. vv. 41-42), pois “conhecem” sua origem e não conseguem ver nele a divindade. Assim como os hebreus murmuraram no deserto (cf. Ex 16,7-8), querendo retornar ao Egito, terra da escravidão e da morte, eles também murmuram. Não admitem que Jesus venha de Deus. Jesus, plenamente humano, vem de Deus e é a revelação perfeita de Deus. Por que separar Deus do humano? 
Com o prólogo (1,14) aprendemos que o humano Jesus é o ponto de encontro de Deus com a humanidade. O próprio Deus conduz as pessoas a essa descoberta. Só resta deixar-se guiar por Deus que se dá a conhecer plenamente humano na pessoa de Jesus. Estar do lado da vida é estar do lado de Deus. Jesus garante que quem está a favor da vida que nele se manifesta terá vida para sempre. A humanidade de Jesus é pedra de tropeço para os líderes. Já para a comunidade joanina a glória está justamente em Jesus de Nazaré, feito homem: “A Palavra se fez homem e habitou entre nós. E nós contemplamos sua glória: glória do Filho único do Pai cheia de amor e fidelidade” (Jo 1,14).
Quando Jesus assume a expressão "Eu sou" (v. 41b) está assumindo o Nome do Deus libertador do AT (cf. Ex 3,14-15). É ele o presente-pão de Deus para a vida da humanidade. A expressão “Quem vem a mim...” recorda o convite da Sabedoria no AT que convocava todas as pessoas ao banquete da vida (cf. Pr 9,1-6). É a vida presente em todas as coisas que Deus criou. Jesus se revela como a Sabedoria que produz vida sem fim, superior à Sabedoria do AT.
2) Os verdadeiros motivo da oposição a Jesus (v. 43-46)
Jesus revela, em primeiro lugar, qual é o motivo de sua oposição a ele, a falta de interesse pelo homem, por não conhecerem a Deus como Pai (cf. vv. 43-46). A beleza do projeto de salvação está justamente no fato de Deus ter assumido a humanidade na pessoa de Jesus. Ele se tornou o ponto de referência indispensável para entendermos quem é Deus. Aderindo à humanidade de Deus em Jesus, as pessoas passam da morte à vida. “Eu o ressuscitarei no último dia” (v. 44b).
Os fariseus chegaram a admitir a ressurreição como fruto da observância da lei. Jesus garante que a ressurreição depende da adesão a ele e a seu projeto. Ele é a nova lei que Deus oferece à humanidade. Esta afirmação é confirmada quando o texto diz: ‘Todos serão discípulos de Deus’ (v. 45a), citação esta que se encontra também em Is 54,13 e Jr 31,33. O evangelho confirma este anúncio profético quando diz que Deus inscreveu a nova lei na pessoa de Jesus, e “todo aquele que escuta o Pai e aceita seu ensinamento adere a Jesus” (v. 45b), porque ele é o único que está junto de Deus (cf. Jo 1,18) e vê continuamente o Pai (v. 46; cf. 1,2).
3) O Pão da vida Jesus, em contraposição ao maná (v. 47-51)
Em seguida, ele se declara pão de vida em lugar do maná que não conseguiu levar o povo do Egito à terra prometida (cf. vv. 47-51). Jesus comunica a vida doando-se a si mesmo, em sua realidade humana, até à morte. A aceitação deste seu dom e a assimilação vital dele (comer a sua carne e beber o seu sangue) são para o homem fonte de vida (novo maná) e norma de vida (nova Lei).
Para os fariseus, porém, a ressurreição seria o prêmio que Deus daria aos que observassem a Lei. Jesus garante que a ressurreição é o prêmio para os que aderem à vida que ele comunica. A nova lei é dar adesão a Jesus, aquele que comunica vida em plenitude. Aderindo a Jesus, o doador da vida, nós conhecemos o Pai; e reconhecemos que ele nos atrai a partir daquilo que temos em comum: o desejo de vida plena. Jesus, portanto, é caminho: trouxe a vida de Deus para dentro da nossa caminhada e endereça nossa caminhada para a vida plena em Deus.
Crer em Jesus doador da vida, provoca um novo êxodo, um direcionamento novo para toda a existência. Abre-nos os olhos para perceber que vivemos num mundo em que a morte procura sufocar a vida a todo custo; une nossas forças para que a vida se manifeste do jeito que Deus quer: para todos.
Dentro desse esforço de fazer a vida acontecer, Jesus se torna alimento que sustenta para sempre: "Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pão viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha vida" (v. 51). É ele o Cordeiro da nova Páscoa. Morre na hora em que os cordeiros eram imolados para a páscoa dos judeus. Vai dar sua carne morrendo por amor. Seu sangue preservará da morte para sempre. A melhor resposta que podemos dar ao dom de Deus é acolher Jesus como aquele que se doa totalmente a nós.

Concluindo


Para os cristãos, a Eucaristia é o memorial da doação plena de Jesus. Comer sua carne e beber seu sangue provoca entre ele e as pessoas uma união inseparável, capaz de suscitar a vida que não termina. A expressão: “comer sua carne e beber seu sangue”, era sinônimo de assimilação da pessoa de Jesus na sua totalidade: aceitá-lo como dom do Pai e dar-se como dom de vida para a humanidade. Comungar, portanto, é acolher Jesus na sua totalidade.
Com esta expressão o evangelho se abre à dimensão universal. A nova lei não é inscrita só num povo, mas em todos os que desejam ser discípulos de Deus. A comunidade dos que crêem, portanto, é comunidade aberta, como o projeto de Deus, que é proposta feita a todos. Deixemos que a Palavra nos transforme em verdadeiros discípulos missionários e como Jesus, pão doado, pão partilhado, colaboremos para que a vida reine em plenitude em nossas comunidades
Ir. Florinda Dias Nunes