quarta-feira, 30 de setembro de 2015

VIGÉSIMO-SÉTIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 04.10.2015)

“E que nada no mundo separe um casal sonhador!...”

Não é bom que a pessoa humana viva sozinha: isso está inscrito no mais profundo do nosso ser. E uma das formas de evitar o isolamento e de promover a socialização é o matrimônio. Antes de ser um sacramento ou uma instituição, o matrimônio é uma realidade antropológica: duas pessoas, geralmente homem e mulher, sentem-se atraídos um pelo outro e selam uniões que recebem diversos nomes, conforme a linguagem e a cultura que as batiza, mas diferem amplamente em relação às obrigações recíprocas que estabelecem.
A história concreta deste dinamismo que se torna vínculo é, porém, como uma rosa com espinhos abundantes. Muito antes e para além da dolorosa tragédia da separação, conhecemos o exercício violento da dominação do mais forte sobre o mais fraco, a violência física e moral, a exploração despudorada e ilimitada do corpo do outro, a dependência costurada com os fios nada dourados da ameaça. As separações que, infelizmente, crescem em número com o passar do tempo, são apenas uma das faces da falência que pode se abater sobre as relações matrimoniais.
Quando os fariseus, com o ardiloso objetivo de questionar a prática libertária de Jesus, perguntam  se a lei permite que um homem se divorcie da sua mulher, querem fundamentalmente garantir os direitos de uma das partes: a parte masculina, a mais forte. Todos sabiam o que dizia a tradição: “Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente, escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade” (Dt 24,1).
Jesus sabe perfeitamente que a lei de Moisés é androcêntrica e patriarcal. Para abandonar a mulher bastava não gostar mais dela, ou encontrar nela algo de inconveniente. Por isso, Jesus situa a lei no seu contexto original: diante da fraqueza e da maldade dos homens, Moisés tentou ao menos dar um salvo-conduto à mulher abandonada pelo marido. “Foi por causa da dureza do coração de vocês que Moisés escreveu esse mandamento.” Mas este não é o projeto original e atual de Deus, para quem  “eles já não são dois, mas uma só carne”. Portanto, “o que Deus uniu, o homem não deve separar.”
Entretanto, Jesus reconhece que as separações são um fato, muitas vezes doloroso e trágico, no qual as responsabilidades e os direitos precisam ser divididos igualmente por ambas as partes. É correto repetir, que nada e ninguém deve separar aqueles que Deus uniu mediante o amor, mas é preciso também reconhecer que nunca deveríamos marcar com o selo da lei ou do sacramento decisões imaturas e baseadas em tudo menos no amor. Movidos por um comodismo irresponsável, podemos criar facilidades que colocam as pessoas numa gaiola cujas chaves estão nas nossas mãos...
Não seria tempo de superar o moralismo mórbido que pensa que a falência de um matrimônio sempre se deve à maldade culpável de alguém, de admitir que existem casamentos que não têm caráter sacramental nenhum, que são como cadáveres que esperam autópsia e sepultura? Não seria urgente desmascarar o legalismo virulento que isola e cristaliza uma frase de Jesus como lei imutável e relativiza o restante da vida e da prática do mesmo Jesus? Quando Paulo diz que Jesus não se envergonha de nos reconhecer como irmãos e irmãs, está se referendo apenas aos ‘bem-casados’?
Depois de responder aos fariseus e de aprofundar com os discípulos a questão do casamento e do divórcio, algumas crianças são apresentadas a Jesus. A dominação e as barreiras impostas às crianças irritam-no. Quando determina que ninguém impeça que as crianças se aproximem dele, Jesus está enfatizando que Deus não despreza nem violenta os mais fracos, como alguns o fazem, inclusive em nome de frias doutrinas e leis pouco cristãs. Como antes havia defendido as mulheres diante do direito que pendia para o lado dos homens, agora acolhe e abençoa as primeiras vítimas dos relacionamentos fracassados. “Deixem que as crianças venham a mim, e não as impeçam de fazê-lo!...”
Jesus de Nazaré, irmão das vítimas e defensor dignidade de todo ser humano: também hoje, mulheres e crianças são dominadas, desprezadas e violentadas. Ajuda-nos a descobri-las como chave que dá acesso ao teu Reino, a entender que ninguém se torna cidadão do teu Reino a partir do centro ou de cima, mas desde baixo e da periferia, acompanhando aqueles que não contam. Que as crianças aprendam isso enquando sorvem o leite no seio da mãe e são carregadas nos ombros de um pai. Confirma e sustenta nossas comunidades e famílias cristãs nesta bela e irrenunciável missão. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Gênesis 2,18-24 * Salmo 127 (128) * Carta aos Hebreus 2,9-11 * Evangelho de São Marcos 10,2-16)

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