quinta-feira, 28 de abril de 2016

O Evangelho dominical: 01.05.2016

A PAZ NA IGREJA

No evangelho de João podemos ler um conjunto de discursos em que Jesus se vai despedindo dos Seus discípulos. Os comentadores chamam-lhe «o Discurso de despedida». Nele se respira uma atmosfera muito especial: os discípulos têm medo de ficar sem o seu Mestre; Jesus, pela Sua parte, insiste em lhes dizer, que apesar da Sua partida, nunca sentirão a Sua ausência.
Jesus repete cinco vezes que seus discípulos poderão contar com «o Espírito Santo». Ele os defenderá, pois os manterá fieis à Sua mensagem e ao Seu projeto. Por isso lhe chama «Espírito da verdade». Num momento determinado, Jesus explica-lhes melhor o que terão de fazer: «O Defensor, o Espírito Santo… será quem os ensinará tudo e os vá recordando tudo o que vos disse». Este Espírito será a memória viva de Jesus.
O horizonte que Jesus oferece aos Seus discípulos é grandioso. De Jesus nascerá um grande movimento espiritual de discípulos e discípulas que o seguirão defendidos pelo Espírito Santo. Irão manter-se na Sua verdade, pois esse Espírito irá ensinar-lhes tudo o que Jesus lhes comunicou pelos caminhos da Galileia. No futuro, Ele os defenderá da perturbação e da covardia.
Jesus deseja que seus discípulos captem bem o que significará para eles o Espírito da verdade e Defensor da sua comunidade: «Deixo-vos a paz; dou-vos a paz». Não só lhes deseja a paz. Oferece-lhes a Sua paz. Se vivem guiados pelo Espírito, recordando e guardando as Suas palavras, conhecerão a paz.
Não é uma paz qualquer. É a Sua paz. Por isso lhes diz: «Não vos dou Eu como a dá o mundo». A paz de Jesus não se constrói com estratégias inspiradas na mentira ou na injustiça, mas sim atuando com o Espírito da verdade. Hão de reafirmar-se Nele: «Que não trema o vosso coração nem se acovarde».
Nestes tempos difíceis de desprestígio e perturbação que estamos a sofrer na Igreja, seria um grave erro pretender defender a nossa credibilidade e autoridade moral atuando sem o Espírito da verdade prometido por Jesus. O medo continuará a penetrar no cristianismo se procuramos assegurar a nossa segurança e a nossa paz afastando-nos do caminho traçado por Ele.
Quando na Igreja se perde a paz, não é possível recupera-la de qualquer maneira, nem serve qualquer estratégia. Com o coração cheio de ressentimento e cegueira não é possível introduzir a paz de Jesus. É necessário converter-nos humildemente à Sua verdade, mobilizar todas as nossas forças para deixar caminhos errados, e deixar-nos guiar pelo Espírito que animou a vida inteira de Jesus.
José Antonio Pagola

ANO C – SEXTO DOMINGO DA PASCOA – 01.05.2016

Uma Igreja Casa-de-Deus terá as portas sempre abertas.

Todas as religiões se apresentam aos seus adeptos como caminhos – às vezes como os únicos caminhos! – que levam à divindade e à felicidade. E esta oferta se ajusta como luva à insaciável sede de plenitude que habita e move o ser humano. Os caminhos oferecidos se dividem em dois grupos: os que propõem a saída e o esquecimento de si mesmo para encontrar a plenitude nas realidades externas e transcendentes; os que propõem e ensinam o mergulho em si mesmo e o esquecimento das realidades externas, inclusive dos demais seres humanos.
Mas existe uma terceira possibilidade, que está discretamente presente em algumas religiões e é proposta por Jesus Cristo (mas não necessariamente pelo cristianismo que nasceu dele): Deus mesmo vem saciar nossa sede de plenitude, eliminando a distância que nos assusta, assumindo e aperfeiçoando as realidades humanas e as construções sociais. Jesus Cristo é sacramento de um Deus humanizado e encarnado, servidor e libertador, próximo e presente no ser humano que ama e sofre. “Se alguém me ama, guardará a minha Palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada.”
O amor autenticamente humano, fraterno e solidário, é o êxodo do ser humano em direção a Deus e o advento de Deus na carne humana. O que nos faz semelhantes a Deus e nos aproxima dele não é o muito saber, o grande poder ou a ausência de sofrimento, mas o dinamismo de um amor que nos faz loucos, apaixonados, pobres e servidores. As igrejas cristãs são chamadas a ser assembleias de homens e mulheres que vivem esta intensa e única paixão por Deus e pela humanidade, evitando a tentação de se identificar com o próprio Deus, de assumir a função de administradoras delegadas de Deus, de enrijecer o sistema de proibições e coerções e de usurpar o poder que só a Deus pertence.
Quando Jesus fala das diversas moradas que existem na casa do Pai e que ele vai para preparar-nos um lugar, está se referindo à sua missão de afirmar nossa condição de filhos e herdeiros de Deus (cf. Jo 14,2). No evangelho de hoje, Jesus inverte o movimento e diz que é Deus quem vem às comunidades que se organizam em seu nome para fazer delas sua casa. Para que isso se realize, as comunidades precisam cultivar o amor, o diálogo, o serviço e a abertura às necessidades do mundo. Uma Igreja que queira ser fiel a Jesus Cristo e aos tempos atuais, morada de Deus, deve ser uma Igreja aberta e missionária.
A dificuldade enfrentada por Paulo e Barnabé diante de um grupo de cristãos liderados por Tiago e Pedro teve origem numa atitude de fechamento institucional e cultural que os levou a identificar alguns costumes com o próprio Evangelho. Mas, graças à liberdade de Paulo e de Barnabé, “que arriscaram a vida pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo”, Tiago e Pedro reconhecem e acolhem os “irmãos vindos do paganismo” e não lhes impõem os costumes judeus. Isso nos encoraja a sonhar com uma Igreja que não tenha medo de dialogar com os diferentes grupos e movimentos sociais e culturais.
A este propósito, é bela a visão que João nos apresenta da cidade santa, imagem da Igreja. Ela está cercada por uma muralha que a protege das violentas perseguições, mas tem portas e saídas por todos os lados, e tem como alicerce o testemunho dos apóstolos. O esplendor que a envolve não vem do saber ou do poder, mas da glória de Deus, ou seja: do amor vivido até às últimas consequências. Seu brilho não lhe pertence, nem lhe é dado pelos poderosos, mas vem Cordeiro humilhado e martirizado e a ele pertence. Esta cidade dispensa templos e ritos: basta-lhe a força da divina Compaixão.
No cálido e não menos tenso ambiente da Ceia de despedida, Jesus diz que só o amor pode manifestar claramente o que Deus é e o que Deus faz. Sabedor dos limites que acompanhariam os discípulos e discípulas de todos os tempos, Jesus promete que não nos deixa órfãos e indefesos: ele envia o Espírito Santo, Consolador, Defensor e Mestre, que nos conduz ao seguimento fiel e consequente dos seus passos. O Espírito é o amor, a fidelidade e a glória à qual podemos aspirar. O amor praticado é mandamento de Jesus. O amor proclamado é Evangelho. O amor visível pelo testemunho é esplendor e glória de Deus.
Jesus de Nazaré, profeta corajoso e irmão amado! O Espírito que prometes e que nós necessitamos nos ajude a entender e atualizar tua ação libertadora e tua Palavra vivificadora; a reinventar tua ação em mil ações que resgatam a dignidade e promovem a plena vida das pessoas; a anunciar que estás presente e solidário naqueles a quem não te envergonhas de chamar irmãos. Não deixes que a tua Igreja dê as costas ao Espírito e se erga como muro defensivo, trono que manda e sepultura que conserva restos mortais. Renova tua amada Igreja, abrindo portas que convidam à acolhida e à saída. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 15,1-2.22-29 * Salmo 66 (67) * Apocalipse 21.10-14.22-23 * Evangelho de João 14,23-29)

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Golpe parlamentar no Brasil

TRISTE ESPETÁCULO

Interrompo a série de reflexões que pretendia fazer sobre a Amoris Laetitia, exortação do Papa Francisco após o sínodo da Família. Retomarei na semana que vem, se Deus quiser. Mas, francamente, nesta semana não é possível pensar, discutir ou falar sobre nada mais além do tristíssimo espetáculo da votação na Câmara sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Durante todo o processo que desembocou naquela patética sessão, procurei eximir-me de entrar em discussões e debates acalorados, seja pessoalmente, por telefone, nas redes sociais, enfim, em todas as instâncias. Ajudou-me o fato de estar fora do país a trabalho. Porém, após assistir a sessão de tantas horas, julgando algo tão sério como o impedimento da presidente da República, e constatando o nível baixo do comportamento, das atitudes e das palavras daqueles que são representantes do povo, por ele eleitos, não posso deixar de fazê-lo.
Meu sentimento é de vergonha dos deputados do meu país, com raras exceções. Seus depoimentos ao microfone, em lugar de serem discretos e objetivos, invocavam a mãe, o pai, os filhos, netos, bisnetos e o que mais houvesse de parentes e familiares. Outros invocavam categorias mais abstratas: o futuro, o país, o amanhã etc. Deus também teve seu Santo Nome várias vezes pronunciado em vão. Como é possível tamanha falta de foco, tamanha negligência e falta de respeito pela seriedade da decisão que ali se tomava? Como é possível, isso sim, tamanha falta de compostura e decoro?
Minha sensação era a de estar assistindo a um programa de auditório, como os da televisão brasileira da minha juventude - o do Chacrinha, por exemplo - que hoje se reeditam em vídeo cacetadas etc. Com a diferença que não tinha a menor graça. Era lastimável de assistir. Um coletivo que deve agir com dignidade e nobreza gritando ensandecido, chegando inclusive a agressões verbais e físicas.
Tudo isso seria tolerável, porém, se não houvesse um clímax de absurdo e falta de sentido que reduziu tudo o mais a menor importância. Refiro-me ao voto do deputado Jair Bolsonaro. Além de fazer abertamente a analogia do impeachment de Dilma Rousseff ao golpe de 1964: “Perderam em 64, perderam em 2016”, pronunciou-se em favor da ditadura militar. Foi um insulto a todas as pessoas que viveram aqueles anos de chumbo – entre as quais me incluo – e que viram o país ser reprimido e censurado, um período de medo e terror.
Na universidade havia espiões que não era possível identificar. Misturados aos alunos, eles ficavam atentos ao que era dito para depois delatar implacavelmente os “subversivos”, como classificavam os que se opunham ao governo militar e passavam a ser perseguidos e deviam esconder-se para não cair sob as garras do terrível DOI-CODI e passar pela tortura ou serem mortos. Os jovens se escondiam sem que as famílias soubessem seu paradeiro. As prisões eram arbitrárias e o medo reinava e fazia o ar pesado e opaco. Tudo isso vivemos, deputado. E o senhor tem a coragem de, em um momento tão grave como o atual, fazer uma homenagem àqueles tempos terríveis de nossa história recente?
Mas não parou por aí a atitude inexplicável do deputado Bolsonaro. Resolveu personificar sua homenagem à ditadura militar na sinistra figura do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ligando-o explicitamente a Dilma Rousseff, que por ele foi torturada. Não foi apenas a presidente que passou pelas mãos nefastas de Ustra. Muitas outras a seguiram, Sonia, Dora, Iara, Inês...tantas...tantas...Algumas morreram na tortura. Outras escaparam e foram trocadas por diplomatas sequestrados pelos movimentos de esquerda. Todas levarão até o tumulo as marcas de Ustra e sua sanha sádica e perversa. Entre elas figura uma grande amiga minha, de infância, querida e amada. Penso nela e no coronel Ustra e o nojo se mistura à indignação.
E o deputado Bolsonaro homenageia este torturador. Onde estamos? Onde está o respeito pelas vítimas de Ustra, essas mulheres, agredidas e humilhadas pelo torturador? Onde está a dignidade cívica do deputado? Não sabe que defender a tortura é crime? Fazê-lo em plena sessão do Congresso Nacional, além de crime é de um mau gosto macabro e a toda prova.
O dia seguinte a esse triste espetáculo foi de tristeza e profundo desânimo. E percebi não serem apenas sentimentos meus. Gente que se engajou de corpo e alma na batalha da democracia, de um lado ou de outro, estava muda, calada. Não houve comemorações. A vitória de alguns não teve o sabor inebriante que esperavam. A derrota de outros não chegou a produzir raiva e sim cansaço.
Na verdade, é de se perguntar: terá havido vencedores? Parece-me que o triste espetáculo que resultou na abertura ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff ostenta apenas vencidos. Vencidos estamos todos, brasileiros que olhamos para a frente e não vemos futuro. Vencidos todos obrigados a presenciar a mediocridade e a falta de qualidade ética e humana da maioria dos que nos representam na Câmara dos Deputados. Vencidos todos os que sofremos e lutamos com uma sangrenta ditadura militar e vemos um deputado eleito democraticamente homenagear um de seus mais cruéis protagonistas.
Que Deus volte seu rosto misericordioso para nosso país. Antes de qualquer reforma – política, fiscal, econômica – será preciso reformar nossos mais profundos sentimentos. Não podemos legar às novas gerações a depressão que agora ameaça tomar-nos o coração e roubar-nos a esperança.

Maria Clara Bingemer

quinta-feira, 21 de abril de 2016

O evangelho dominical: 24.04.2016

NÃO PERDER A IDENTIDADE
Jesus está a despedir-se dos Seus discípulos. Dentro em breve, já não o terão entre eles. Jesus fala-lhes com ternura especial: «Meus filhos resta-Me pouco tempo entre vós». A comunidade é pequena e frágil. Acaba de nascer. Os discípulos são como crianças pequenas. Que será deles se ficam sem o Mestre?
Jesus faz-lhes uma oferta: «Dou-vos um mandato novo: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei». Querem-se mutuamente com o amor com que Jesus os quis, não deixarão de senti-Lo vivo no meio deles. O amor que receberam de Jesus continuará a difundir-se entre os Seus.
Por isso, Jesus acrescenta: «O sinal pelo que vos conhecerão todos como Meus discípulos será que vos ameis uns aos outros». O que permitirá descobrir que uma comunidade que se diz cristã é realmente de Jesus, não será a confissão de uma doutrina, nem a observância de uns ritos, nem o cumprimento de uma disciplina, mas o amor vivido com o espírito de Jesus. Nesse amor está a Sua identidade.
Vivemos numa sociedade onde se foi impondo a «cultura dos intercâmbios». As pessoas intercambiam objetos, serviços e prestações. Com frequência, intercambiam também sentimentos, corpos e até amizade. Eric Fromm chegou a dizer que «o amor é um fenômeno marginal na sociedade contemporânea». As pessoas capazes de amar são uma exceção.
Provavelmente será uma análise excessivamente pessimista, mas o certo é que, para viver hoje o amor cristão, é necessário resistir à atmosfera que envolve a sociedade atual. Não é possível viver um amor inspirado por Jesus sem distanciar-se do estilo de relações e intercâmbios interessados que predomina com frequência entre nós.
Se a Igreja está se diluindo no meio da sociedade contemporânea não é só pela crise profunda das instituições religiosas. No caso do cristianismo é, também porque muitas vezes não é fácil ver nas nossas comunidades discípulos e discípulas de Jesus que se distingam pela sua capacidade de amar como amava Ele. Falta-nos o distintivo cristão.
Os cristãos, temos falado muito do amor. No entanto, não sempre temos acertado ou nos temos atrevido a dar-lhe o seu verdadeiro conteúdo a partir do espírito e das atitudes concretas de Jesus. Falta-nos aprender que Ele viveu o amor como um comportamento ativo e criador que O levava a uma atitude de serviço e de luta contra tudo o que desumaniza e faz sofrer o ser humano.
José Antonio Pagola

ANO C – QUINTO DOMINGO DA PASCOA – 24.04.2016

O amor fraterno é a fonte, a meta e o método da missão.

No entardecer da vida seremos julgados pelo amor que tivermos vivido concretamente, afirma o místico poeta. Mas no alvorecer e no meio-dia da nossa existência, o verbo amar há de ser conjugado em todos os tempos e modos, inclusive no imperativo, mas especialmente no presente e no gerúndio. O testamento que Jesus nos deixa na Ceia e o testemunho corajoso das primeiras comunidades cristãs, nascidas da experiência da presença de Jesus ressuscitado e do amor espiritual, humano e político dos apóstolos, estão aí, vivos e eloquentes, para que não esqueçamos disso.
A meta que dá sentido à nossa vida e missão no mundo é o Reino de Deus. Os cristãos não podemos passar pelo mundo caminhando na ponta dos pés, como se tivéssemos medo de tocar nele ou de nos contaminar. Também não podemos voltar o olhar a uma ilusória interioridade, como se não tivéssemos outra tarefa que a de salvar a própria alma. Não foi isso que Jesus Cristo fez, e não foi nisso que seus melhores discípulos e discípulas fizeram ao longo dos vinte séculos de história do cristianismo. A esperança de novos céus e nova terra nos comprometem na transfiguração desta terra!
E nem mesmo as dificuldades que enfrentamos um pouco em todas as latitudes podem nos levar a desistir da grande Utopia que nos faz caminhar. O terremoto da perseguição que se abatia sobre os cristãos no final no primeiro século não impediu que João e sua comunidade visualizassem novos céus e uma nova terra: uma cidade-sociedade santa, bela como noiva enfeitada para o casamento; a tenda da morada definitiva de Deus no coração da humanidade, que vem para enxugar nossas lágrimas; a terra sem males, espaço do bem-viver, como sonham ensinam nossos povos originários.
Os cristãos precisamos pôr nossa inteligência em funcionamento para dar a esta imagem poética contornos e traços históricos e atuais: um mundo sem barreiras para os migrantes e no qual haja lugar para todos os seres humanos; um sistema econômico que respeite e preserve a criação; uma política que não se limite a assegurar os privilégios de uma pequena elite e atentar contra a democracia; uma cultura amante da humanidade, da criatividade, da liberdade e da beleza; uma Igreja viva e regida pela igualdade, pela liberdade e pela comunhão...
No clima de lembrança do essencial deixado como testamento, demonstrando plena consciência do desfecho da própria vida e pensando no martírio que coroaria o amor intenso que marcou toda sua vida, Jesus declara que Deus o glorificará sem demora. Para ele, a cruz não é absurdo e ignomínia, mas a radicalização da solidariedade de Deus com a humanidade e a suprema doação da humanidade a Deus. Por isso, é glorificação de Deus e revelação do ser humano. É nesta mesma linha que, um século mais tarde Santo Irineu afirma que a glória de Deus é a vida do ser humano.
Para os cristãos, amar não é uma opção condicionada, mas um imperativo absoluto. E, a partir da morte e ressurreição de Jesus, a medida do amor não somos mais nós mesmos. “Eu vos dou um novo mandamento. Amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros.” Mesmo sabendo que não estamos preparados para tal amor, Jesus faz questão de sublinhar que este seu mandamento é novo, e que a medida que verifica o amor também é nova. A partir dele, amar significa lutar para que todos tenham vida, dando da própria vida e arriscando a própria vida.
Prosseguindo o diálogo amistoso e mistagógico com seus discípulos, Jesus diz: “Quem crê em mim fará as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas... Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,12.23). A comunidade dos que amam verdadeiramente se torna a morada de Deus no mundo visualizada por João no seu Apocalipse. E então o amor ao próximo e ao distante se torna o estatuto e a identidade da comunidade cristã. “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”
Jesus de Nazaré, Cordeiro de Deus e missionário do Pai, expressão viva e inequívoca do verbo amar. Lavando os pés dos discípulos, inclusive de Pedro e de Judas, tu nos perguntas se entendemos o que estás fazendo. Na verdade, ainda não entendemos tudo e profundamente. Por isso nos aproximamos de novo da mesa da Palavra e do Pão. Queremos contemplar teu gesto e aprender tua lição. E queremos vivê-la nos caminhos do mundo e nos cenáculos da vida, fazendo-nos tudo para todos, vivendo e testemunhando tua Boa Notícia que anima os pobres, levanta os caídos e abre os olhos aos cegos. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 14,21-27 * Salmo 144 (145) * Apocalipse de S. Joao 21,1-5 * Evangelho de João 13,31-35)

sábado, 16 de abril de 2016

Os bispos catolicos e o momento atual do Brasil

DECLARAÇÃO DA CNBB SOBRE O MOMENTO NACIONAL
“Quem pratica a verdade aproxima-se da luz” (Jo 3,21).

Nós, bispos católicos do Brasil, reunidos em Aparecida, na 54ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), frente à profunda crise ética, política, econômica e institucional pela qual passa o país, trazemos, em nossas reflexões, orações e preocupações de pastores, todo o povo brasileiro, pois, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (Gaudium et Spes, 1).
Depois de vinte anos de regime de exceção, o Brasil retomou a experiência de um Estado democrático de direito. Os movimentos populares, organizações estudantis, operárias, camponesas, artísticas, religiosas, dentre outras, tiveram participação determinante nessa conquista. Desde então, o país vive um dos mais longos períodos democráticos da sua história republicana, no qual muitos acontecimentos ajudaram no fortalecimento da democracia brasileira. Entre eles, o movimento “Diretas Já!”, a elaboração da Carta Cidadã, a experiência das primeiras eleições diretas e outras mobilizações pacíficas.
Neste momento, mais uma vez, o Brasil se defronta com uma conjuntura desafiadora. Vêm à tona escândalos de corrupção sem precedentes na história do país. É verdade que escândalos dessa natureza não tiveram início agora; entretanto, o que se revela no quadro atual tem conotações próprias e impacto devastador. São cifras que fogem à compreensão da maioria da população. Empresários, políticos, agentes públicos estão envolvidos num esquema que, além de imoral e criminoso, cobra seu preço. 
Quem paga pela corrupção? Certamente são os pobres, “os mártires da corrupção” (Papa Francisco). Como pastores, solidarizamo-nos com os sofrimentos do povo. As suspeitas de corrupção devem continuar sendo rigorosamente apuradas. Os acusados sejam julgados pelas instâncias competentes, respeitado o seu direito de defesa; os culpados, punidos e os danos, devidamente reparados, a fim de que sejam garantidas a transparência, a recuperação da credibilidade das instituições e restabelecida a justiça. 
A forma como se realizam as campanhas eleitorais favorece um fisiologismo que contribui fortemente para crises como a que o país está enfrentando neste momento.
Uma das manifestações mais evidentes da crise atual é o processo de impeachment da Presidente da República. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil acompanha atentamente esse processo e espera o correto procedimento das instâncias competentes, respeitado o ordenamento jurídico do Estado democrático de direito.  
A crise atual evidencia a necessidade de uma autêntica e profunda reforma política, que assegure efetiva participação popular, favoreça a autonomia dos Poderes da República, restaure a credibilidade das instituições, assegure a governabilidade e garanta os direitos sociais. 
De acordo com a Constituição Federal, os três Poderes da República cumpram integralmente suas responsabilidades. O bem da nação requer de todos a superação de interesses pessoais, partidários e corporativistas. A polarização de posições ideológicas, em clima fortemente emocional, gera a perda de objetividade e pode levar a divisões e violências que ameaçam a paz social
Conclamamos o povo brasileiro a preservar os altos valores da convivência democrática, do respeito ao próximo, da tolerância e do sadio pluralismo, promovendo o debate político com serenidade. Manifestações populares pacíficas contribuem para o fortalecimento da democracia. Os meios de comunicação social têm o importante papel de informar e formar a opinião pública com fidelidade aos fatos e respeito à verdade
Acreditamos no diálogo, na sabedoria do povo brasileiro e no discernimento das lideranças na busca de caminhos que garantam a superação da atual crise e a preservação da paz em nosso país. “Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a se preocupar com a construção de um mundo melhor” (Papa Francisco). 
Pedimos a oração de todos pela nossa Pátria. Do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, invocamos a bênção e a proteção de Deus sobre toda a nação brasileira.
Aparecida - SP, 13 de abril de 2016.

Dom Sergio da Rocha
Arcebispo de Brasília
Presidente da CNBB

Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, SCJ
Arcebispo de São Salvador da Bahia
Vice-Presidente da CNBB
 
Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário-Geral da CNBB

sexta-feira, 15 de abril de 2016

João 10,27-30

“O Pai e eu somos um” (Jo 10,27-30)


O texto de hoje situa-se no contexto de uma polêmica nos arredores do Templo, entre Jesus a as autoridades judaicas, na ocasião da Festa da Dedicação do Templo. Nos versículos anteriores, as autoridades desafiaram Jesus para que se declarasse abertamente o Messias. Ele respondeu que já tinha mostrado isso muitas vezes, através das suas obras, mas que eles não queriam acreditar, pois não eram as suas ovelhas.
Assim, fica claro que as ovelhas são os discípulos, pois o verdadeiro discípulo ouve a palavra do Senhor e o segue. São conhecidos por Ele. E aqui cumpre lembrar que na linguagem bíblica, a palavra “conhecer” tem conotações mais profundas do que no nosso uso comum. Significa não tanto um saber intelectual, mas uma intimidade profunda do amor. Assim, a bíblia muitas vezes até usa o verbo “conhecer” para significar relação sexual. Assim, Maria questiona o anjo, pois Ela “não conhece” homem (Lc 1, 34). O verdadeiro discípulo é aquele ou aquela que realmente tem um relacionamento de intimidade com Deus e que põe em prática a sua palavra. E quem conhece Jesus, conhece o Pai, pois “o Pai e eu somos um”, como diz Jesus no nosso texto.
O versículo 28 afirma que Jesus dá a vida eterna aos seus seguidores. Esse é um tema típico de João, e outros textos do evangelho podem nos ajudar a aprofundá-lo. No Último Discurso, Jesus explica em quê consiste a vida eterna: “A vida eterna é esta: que eles conhecem a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). Mais uma vez, liga o conceito da vida eterna com O de “conhecer”. Mas em que consiste “conhecer” a Deus?
O profeta Jeremias pode nos esclarecer. Em um trecho onde ele enfrenta o Rei Joaquim e o condena por não pagar os salários dos seus operários na construção do seu palácio, Jeremias diz o seguinte, referindo-se ao falecido rei justo Josias: “Ele julgava com justiça a causa do pobre e do indigente; e tudo corria bem para ele! Isso não é conhecer-me?, oráculo de Javé” (Jr 22, 16). Conhecer Deus não é em primeiro lugar um exercício intelectual, mas uma atitude de vida: a prática da justiça, especialmente em favor do oprimido e fraco.
Segundo João, então, a vida eterna é o prêmio de quem pratica a justiça de Deus - proposta dos discípulos de Jesus - e não dos que “sabem” muita coisa sobre Deus, mas que não praticam a justiça - representados no texto de hoje pelas autoridades do templo.
O nosso texto nos traz motivo de muita coragem, pois afirma que ninguém vai arrancar o verdadeiro discípulo da mão de Jesus (v. 28). Mas, também nos desafia para que verifiquemos se somos realmente discípulos verdadeiros, se conhecemos Jesus e o Pai, isto é, se praticamos a justiça do seu projeto. Pois a prova de ser verdadeiro discípulo está na prática das obras do Pai, e não no conhecimento teórico de religião.
Pe. Tomaz Hughes SVD

quinta-feira, 14 de abril de 2016

O evangelho dominical - 17.04.2016

ESCUTAR A SUA VOZ E SEGUIR OS SEUS PASSOS


A cena é tensa e conflituosa. Jesus está a passear dentro do recinto do templo. De repente, um grupo de judeus rodeia-O acossando-O com ar ameaçador. Jesus não se intimida, critica-os abertamente pela sua falta de fé: «Vós não acreditais porque não sois ovelhas minhas». O evangelista diz que, ao terminar de falar, os judeus tomaram pedras para apedreja-Lo.
Para provar que não são ovelhas Suas, Jesus atreve-se a explicar-lhes o que significa ser dos Seus. Só destaca os traços, os mais essenciais e imprescindíveis: «As Minhas ovelhas escutam a minha voz… e seguem-Me». Depois de vinte séculos, os cristãos necessitamos recordar de novo que o essencial para ser a Igreja de Jesus é escutar a Sua voz e seguir os Seus passos.
Em primeiro lugar é despertar a capacidade de escutar Jesus. Desenvolver muito mais nas nossas comunidades essa sensibilidade, que está viva em muitos cristãos simples que sabem captar a Palavra que vem de Jesus em toda a Sua frescura e sintonizar com a sua Boa Nova de Deus. João XXIII disse numa ocasião que «a Igreja é como uma velha fonte de aldeia de cuja torneira há de correr sempre água fresca». Nessa Igreja velha de vinte séculos temos de fazer correr a água fresca de Jesus.
Se não queremos que a nossa fé se vá diluindo progressivamente em formas decadentes de religiosidade superficial, no meio de uma sociedade que invade as nossas consciências com mensagens, slogans, imagens, comunicados e reclames de todo o gênero, temos de aprender a colocar no centro das nossas comunidades a Palavra viva, concreta e inconfundível de Jesus, nosso único Senhor.
Mas não basta escutar a Sua voz. É necessário seguir Jesus. Chegou o momento de decidirmos entre contentar-nos com uma «religião burguesa» que tranquiliza as consciências mas afoga a nossa alegria, ou aprender a viver a fé cristã como uma aventura apaixonante de seguir a Jesus.
A aventura consiste em acreditar naquilo que Ele acreditou, dar importância ao que Ele deu, defender a causa do ser humano como Ele a defendeu, aproximar-nos dos indefesos e desvalidos como Ele se acercou, ser livres para fazer o bem como Ele, confiar no Pai como Ele confiou e enfrentar-nos com a vida e a morte com a esperança com que Ele se enfrentou.
Se quem vive perdido, só ou desorientado, pode encontrar na comunidade cristã um lugar onde se aprende a viver juntos de forma mais digna, solidária e liberta seguindo Jesus, a Igreja estará oferecendo à sociedade um dos seus melhores serviços.
José Antonio Pagola

quarta-feira, 13 de abril de 2016

ANO C – QUARTO DOMINGO DA PASCOA – 17.04.2016

O testemunho de amor e serviço é despertador de vocações!

A fé em Deus se mostra mais pelas ações que pelos ritos, orações e palavras.  É isso que Jesus afirmara na discussão com as autoridades religiosas em plena festa da dedicação do Templo, em Jerusalém. Os chefes do Templo procuram-no para questiona-lo: “Até quando nos deixarás em suspenso? Se tu és o Messias, o Cristo, dize-nos abertamente!” E Jesus retruca: “Eu já vos disse, mas vós não acreditais. As obras que eu faço em nome do meu Pai dão testemunho de mim” (Jo 10, 24-25). Respostas descritivas, discursos e argumentos dizem sempre menos do que a eloquência das ações e relações...
Mas Jesus não deixa de apresentar suas credenciais de Messias, de missionário do Pai: as ações que realiza em favor da humanidade, especialmente em favor dos últimos da escala social. No debate com as autoridades do judaísmo, ele nega a legitimidade de uma fé que não tenha apoio nas ações. Para Jesus, quem é profundamente solidário e compassivo ao lado do ser humano também está com Deus. E quem está de alguma maneira contra o ser humano, mesmo que invoque o nome de Deus e participe de ritos religiosos, está, de fato, contra ele. Este é o critério que aufere a autenticidade à nossa fé!
Jesus diz que dá a vida eterna ao seu rebanho, que ninguém o toma da sua mão. Mas ser ovelha do rebanho de Jesus Cristo, implica em escutar sua Palavra, aderir a ela e seguir seus passos, exige assumir sua pró-existência como dinamismo fundamental da vida. Crer nas obras que defendem e resgatam a dignidade humana e multiplica-las é mais importante que crer na sua Palavra (cf. Jo 10,38). Crer em Jesus significa segui-lo, dar continuidade à sua obra. Entregar-se sem reservas à luta pelo bem da humanidade, especialmente das pessoas humilhadas. “Eu as conheço e elas me seguem...”
A autenticidade e a fecundidade da nossa fé em Jesus não está na multiplicação de atividades desconexas e sem alma. O denominador comum das múltiplas ações que expressam nossa fé é o amor, o dinamismo básico e permanente que nos move no reconhecimento do outro como outro, na defesa da sua dignidade inviolável e na priorização das suas necessidades humanas fundamentais, inclusive em detrimento das nossas. É o amor que faz da vida de Jesus e da nossa uma pró-existência, uma vida empenhada em favor dos outros, dos pobres e necessitados.  É o amor é que nos faz humanos, que nos dá à luz como pessoas.
O amor autenticamente humano e cristão também não reconhece nenhum tipo de fronteira: rompe com os muros levantados em nome da religião, da raça, da classe, do sangue, dos interesses individuais. Porque parte do outro, da exterioridade em relação a todos os sistemas e instituições, o amor é o único dinamismo capaz de globalizar verdadeiramente o mundo, sem excluir ninguém. É isso que testemunham Paulo e Barnabé: eles abrem as fronteiras rígidas do judaísmo aos povos não-judeus. E, experimentando esta acolhida e respeito, os cristãos de origem não-judaica vivem uma grande alegria. E nem a violenta perseguição movida por mentes medrosas e violentas os fazem voltar atrás.
Mas aqui precisamos lembrar de novo que o amor não se resume a um princípio formal ou um sentimento interior. Sem deixar de ser uma opção fundamental e um horizonte iluminador e crítico, o amor não existe fora das infinitas e pequenas ações que o encarnam na realidade. Poderíamos dizer que o amor não existe em si mesmo, que ele não é isso ou aquilo, mas ‘vai sendo’ na imensa constelação de ações que afirmam, confirmam e potencializam a vida e a dignidade das pessoas, começando pelas que nos são próximas e chegando àquelas que deslocamos para longe.
Neste dia mundial de oração pelas vocações, jornada que vem sendo realizada há mais de 50 anos, pedimos a Deus que as autoridades eclesiásticas tenham a coragem de abrir novos caminhos e possibilidades ministeriais. É um tremendo paradoxo enfatizar a necessidade da vida sacramental e, ao mesmo tempo, fazer os sacramentos dependerem unicamente de homens celibatários, dificultando assim o acesso do povo à graça sacramental. Faz sentido em pleno século XXI e diante de tanta necessidade excluir a metade feminina da humanidade do acesso ao ministério ordenado?
Jesus amado, Cordeiro de Deus e Bom Pastor! Através dos homens e mulheres que vivem a vocação como serviço e compaixão fazes teu amor libertador chegar a todas as gerações. Mediante estas pessoas, a maioria delas anônimas, enxugas as lágrimas do teu povo. Faz com que nossa palavra e nosso testemunho ajude a Boa Notícia do teu Reino a chegar a todos os rincões da terra. Tu nos fizeste, nos chamaste e somos teus. Possamos então realizar com desvelo e criatividade a missão que nos confiaste, membros diferentes de um único corpo no qual bate um único coração. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 13,43-52 * Salmo 99 (100) * Apocalipse de S. Joao  7,14-17 * Evangelho de João 10,27-30)

terça-feira, 12 de abril de 2016

DIA MUNDIAL DE ORAÇÃO PELAS VOCAÇÕES - 2016

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO 
PARA O 53º DIA MUNDIAL DE ORAÇÃO PELAS VOCAÇÕES
 (17 de Abril de 2016 - IV Domingo da Páscoa)
A Igreja, mãe de vocações

Amados irmãos e irmãs!
Como gostaria que todos os batizados pudessem, no decurso do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, experimentar a alegria de pertencer à Igreja! E pudessem redescobrir que a vocação cristã, bem como as vocações particulares, nascem no meio do povo de Deus e são dons da misericórdia divina! A Igreja é a casa da misericórdia e também a «terra» onde a vocação germina, cresce e dá fruto.
Por este motivo, dirijo-me a todos vós, por ocasião deste 53º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, convidando-vos a contemplar a comunidade apostólica e a dar graças pela função da comunidade no caminho vocacional de cada um. Na Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, recordei as palavras de São Beda, o Venerável, a propósito da vocação de São Mateus: «Miserando atque eligendo» (Misericordiae Vultus, 8). A ação misericordiosa do Senhor perdoa os nossos pecados e abre-nos a uma vida nova que se concretiza na chamada ao discipulado e à missão. Toda a vocação na Igreja tem a sua origem no olhar compassivo de Jesus. A conversão e a vocação são como que duas faces da mesma medalha, interdependentes continuamente em toda a vida do discípulo missionário.
O Beato Paulo VI, na Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, descreveu os passos do processo da evangelização. Um deles é a adesão à comunidade cristã (cf. n. 23), da qual se recebeu o testemunho da fé e a proclamação explícita da misericórdia do Senhor. Esta incorporação comunitária compreende toda a riqueza da vida eclesial, particularmente os Sacramentos. A Igreja não é só um lugar onde se crê, mas também objeto da nossa fé; por isso, dizemos no Credo: «Creio na Igreja».
A chamada de Deus acontece através da mediação comunitária. Deus chama-nos a fazer parte da Igreja e, depois dum certo amadurecimento nela, dá-nos uma vocação específica. O caminho vocacional é feito juntamente com os irmãos e as irmãs que o Senhor nos dá: é uma con-vocação. O dinamismo eclesial da vocação é um antídoto contra a indiferença e o individualismo. Estabelece aquela comunhão onde a indiferença foi vencida pelo amor, porque exige que saiamos de nós mesmos, colocando a nossa existência ao serviço do desígnio de Deus e assumindo a situação histórica do seu povo santo.
Neste Dia dedicado à oração pelas vocações, desejo exortar todos os fiéis a assumirem as suas responsabilidades no cuidado e discernimento vocacionais. Quando os Apóstolos procuravam alguém para ocupar o lugar de Judas Iscariotes, São Pedro reuniu cento e vinte irmãos (cf. Act 1, 15); e, para a escolha dos sete diáconos, foi convocado o grupo dos discípulos (cf. Act 6, 2). São Paulo dá a Tito critérios específicos para a escolha dos presbíteros (cf. Tt 1, 5-9). Também hoje, a comunidade cristã não cessa de estar presente na germinação das vocações, na sua formação e na sua perseverança (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 107).
A vocação nasce na Igreja. Desde o despertar duma vocação, é necessário um justo «sentido» de Igreja. Ninguém é chamado exclusivamente para uma determinada região, nem para um grupo ou movimento eclesial, mas para a Igreja e para o mundo. «Um sinal claro da autenticidade dum carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se integrar harmonicamente na vida do povo santo de Deus para o bem de todos» (Ibid., 130). Respondendo à chamada de Deus, o jovem vê alargar-se o próprio horizonte eclesial, pode considerar os múltiplos carismas e realizar assim um discernimento mais objetivo. Deste modo, a comunidade torna-se a casa e a família onde nasce a vocação. O candidato contempla, agradecido, esta mediação comunitária como elemento imprescindível para o seu futuro. Aprende a conhecer e a amar os irmãos e irmãs que percorrem caminhos diferentes do seu; e estes vínculos reforçam a comunhão em todos.
A vocação cresce na Igreja. Durante o processo de formação, os candidatos às diversas vocações precisam de conhecer cada vez melhor a comunidade eclesial, superando a visão limitada que todos temos inicialmente. Com tal finalidade, é oportuno fazer alguma experiência apostólica juntamente com outros membros da comunidade, como, por exemplo, comunicar a mensagem cristã ao lado dum bom catequista; experimentar a evangelização nas periferias juntamente com uma comunidade religiosa; descobrir o tesouro da contemplação, partilhando a vida de clausura; conhecer melhor a missão ad gentes em contato com os missionários; e, com os sacerdotes diocesanos, aprofundar a experiência da pastoral na paróquia e na diocese. Para aqueles que já estão em formação, a comunidade eclesial permanece sempre o espaço educativo fundamental, pelo qual se sente gratidão.
A vocação é sustentada pela Igreja. Depois do compromisso definitivo, o caminho vocacional na Igreja não termina, mas continua na disponibilidade para o serviço, na perseverança e na formação permanente. Quem consagrou a própria vida ao Senhor, está pronto a servir a Igreja onde esta tiver necessidade. A missão de Paulo e Barnabé é um exemplo desta disponibilidade eclesial. Enviados em missão pelo Espírito Santo e pela comunidade de Antioquia (cf. At 13, 1-4), regressaram depois à mesma comunidade e narraram aquilo que o Senhor fizera por meio deles (cf. At 14, 27). Os missionários são acompanhados e sustentados pela comunidade cristã, que permanece uma referência vital, como a pátria visível onde encontram segurança aqueles que realizam a peregrinação para a vida eterna.
Dentre os agentes pastorais, revestem-se de particular relevância os sacerdotes. Por meio do seu ministério, torna-se presente a palavra de Jesus que disse: «Eu sou a porta das ovelhas (...). Eu sou o bom pastor» (Jo 10, 7.11). O cuidado pastoral das vocações é uma parte fundamental do seu ministério. Os sacerdotes acompanham tanto aqueles que andam à procura da própria vocação, como os que já ofereceram a vida ao serviço de Deus e da comunidade.
Todos os fiéis são chamados a consciencializar-se do dinamismo eclesial da vocação, para que as comunidades de fé possam tornar-se, a exemplo da Virgem Maria, seio materno que acolhe o dom do Espírito Santo (cf. Lc 1, 35-38). A maternidade da Igreja exprime-se através da oração perseverante pelas vocações e da ação educativa e de acompanhamento daqueles que sentem a chamada de Deus. Fá-lo também mediante uma cuidadosa seleção dos candidatos ao ministério ordenado e à vida consagrada. Enfim, é mãe das vocações pelo contínuo apoio daqueles que consagraram a vida ao serviço dos outros.
Peçamos ao Senhor que conceda, a todas as pessoas que estão a realizar um caminho vocacional, uma profunda adesão à Igreja; e que o Espírito Santo reforce, nos Pastores e em todos os fiéis, a comunhão, o discernimento e a paternidade ou maternidade espiritual.
Pai de misericórdia, que destes o vosso Filho pela nossa salvação e sempre nos sustentais com os dons do vosso Espírito, concedei-nos comunidades cristãs vivas, fervorosas e felizes, que sejam fontes de vida fraterna e suscitem nos jovens o desejo de se consagrarem a Vós e à evangelização. Sustentai-as no seu compromisso de propor uma adequada catequese vocacional e caminhos de especial consagração. Dai sabedoria para o necessário discernimento vocacional, de modo que, em tudo, resplandeça a grandeza do vosso amor misericordioso. Maria, Mãe e educadora de Jesus, interceda por cada comunidade cristã, para que, tornada fecunda pelo Espírito Santo, seja fonte de vocações autênticas para o serviço do povo santo de Deus.
Cidade do Vaticano, 29 de Novembro – I Domingo do Advento – de 2015.

Franciscus

sexta-feira, 8 de abril de 2016

O pescador, o discípulo e o missionario

“A Rede Não Arrebentou” (Jo 21, 1-19)


Quase todas as traduções da Bíblia intitulam o capítulo 21 de João como “Apêndice” ou “Epílogo”. Realmente, em uma primeira edição, o evangelho terminava no capítulo 20. Mas, devido a uma situação nova nas comunidades, se tornou necessária a adição do último capítulo. Essa situação era a fusão de dois tipos de comunidades cristãs: as da tradição sinótica ou apostólica, e as da tradição da comunidade do Discípulo Amado. Essa fusão aconteceu pelo fim do primeiro século e é simbolizada nos versículos 15-18, onde Pedro recebe a primazia e a missão de pastor dos discípulos. Mas somente depois de ter afirmado três vezes que amava Jesus. A comunidade do Discípulo Amado aceita a função apostólica de Pedro, mas insiste que antes de ser apóstolo é mais fundamental ser discípulo, ou seja, amar Jesus.
A primeira parte do texto (vv. 1-14) tem grandes semelhanças com a história da “pesca milagrosa” de Lucas (Lc 5,1-11). Mas o contexto, pós-ressurrecional, é diferente. Como sempre, no Quarto Evangelho devemos prestar atenção aos símbolos, sejam eles pessoas, eventos, ou números. Chama a atenção que - embora seja a terceira aparição de Jesus - os discípulos não o reconhecem. Isso demonstra que a presença de Jesus depois da Ressurreição, embora real, não é igual à sua presença durante a sua vida terrestre. Quem O reconhece primeiro é o Discípulo Amado, pois só quem vê com olhos de amor reconhece e vê além das aparências. Como foi o amor que o levou a correr mais depressa ao túmulo do que Pedro em Cap. 20, é o amor que faz com que ele seja o primeiro a reconhecer a presença de Jesus ressuscitado. Ele é o Discípulo Amado e que ama. Pedro o será somente depois da sua profissão de amor (vv. 15-17).
A pesca simboliza a missão dos discípulos. Segundo muitos estudiosos, embora existam outras hipóteses também, o número de 153 peixes se baseia no fato de que os zoólogos gregos da antiguidade achavam que existiam no mundo 153 espécies de peixe. Então, o Evangelho está dizendo que a Igreja (simbolizada pela rede) pode abraçar o universo inteiro, todos os povos e culturas. É interessante que, diferente da história em Lucas, a rede não se rompe! A diversidade de culturas, tradições e povos constitui uma riqueza para a Igreja e não deve levar a rompimento da unidade, sem que se imponha a uniformidade (a palavra grega que João usa para “romper” é “schisma”). Certamente essa visão deve desafiar e questionar tantas tendências de centralização e rigidez que ainda existem na Igreja hoje!
O nó da questão está na entrega da missão a Pedro. Ele deve ser o Bom Pastor das ovelhas e dos cordeiros, dos membros das comunidades. Mas, as ovelhas não pertencem a ele: ele é apenas o Pastor; as ovelhas pertencem ao Senhor! Aqui Pedro recebe esta grande missão que nos Sinóticos ele recebe na estrada de Cesaréia de Felipe. Mas mais importante do que a sua função é a sua vocação de discípulo: aquele que ama e segue o Senhor. Só quem ama Jesus profundamente poderá pastorear os seus seguidores. Se, no primeiro capítulo do Evangelho, Pedro veio a Jesus por mediação do seu irmão André (Jo 1, 40-42), agora recebe o convite do próprio Mestre: “Siga-me", pois no amor Ele fez a opção pelo discipulado.
Todos nós recebemos o mesmo convite: “Siga-me”. Seja qual for a nossa função e missão na Igreja, elas só terão sentido na medida em que realmente amarmos Jesus - um amor que só é autêntico se amarmos os outros, na luta comum em favor da construção de um mundo onde todos/as possam “ter vida e vida em abundância” (Jo 10,10), pois “se Deus nos amou a tal ponto, também nós devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,11).
Pe. Tomaz Hughes SVD