terça-feira, 26 de julho de 2016

Curso de Missiologia (16)

A Igreja no Vaticano II: Uma Igreja essencialmente missionaria

O segundo dia da segunda semana (26 de julho) do Curso de Aperfeiçoamento da Ação Missionaria, que os Missionários da Sagrada Família estão desenvolvendo em Santa Cruz de la Sierra, ficou ao encargo do Professor Pe. José Manoel Godoy, professor de teologia em Belo Horizonte. O temo foi “perspectivas missionarias do Concilio Vaticano II”.
Pe. Godoy começou lembrando que, com a Reforma, a Igreja católica perdeu sua própria identidade, e a busca dessa identidade se tornou o grande objetivo da contrarreforma tridentina. Durante 400 anos, a Igreja se dedicou a implantar as decisões de Trento, não sem conflitos. O Vaticano II tentou provocar uma guinada nesta perspectiva, mas, durante o pontificado de Joao Paulo II e de Bento XVI este projeto restaurador foi retomado. A partir da Revolução Francesa, a Igreja se posicionou defensivamente: sentia-se perseguida e via em tudo o vulto da conspiração.
De fato, o Vaticano II tentou retomar o diálogo abandonado em Trento. Com seus documento, e mais, com seu espirito, o Concilio provocou uma verdadeira revolução eclesiológica. Lumen Gentium se organiza em torno da ideia de Igreja como Povo de Deus, comunhão e Igreja particular. Ad Gentes sublinha a natureza missionaria da Igreja, assim como o respeito às diferentes culturas. Dei Verbum resgata a centralidade da Palavra na vida e na missão da Igreja. Sacrossanctum Concilium apresenta uma nova maneira de expressar a fé na sua dimensão orante e celebrativa. Unitatis Redintegratio propõe o diálogo com as Igrejas reformadas. Dignitatis Humanae afirma a liberdade religiosa. Gaudium et Spes oferece pistas para o necessário dialogo da Igreja com o mundo.
O Concilio Vaticano II criou um clima propício para abordar a questão missionaria. Uma Igreja que se entende como sacramento de salvação pede novos parâmetros e novas práticas missionarias. Bruno Forte diz que a Igreja do Vaticano II tem como fonte Deus Trino (sua origem, sua finalidade e seu dinamismo). Na história, a Igreja é chamada a ser ícone do Deus Tri-Uno.
O decreto Ad Gentes
E neste contexto que se situa o decreto conciliar Ad gentes. Por trás dele estão muitos debates e várias versões do decreto (nada menos que sete!). A quinta versão, mesmo sendo elogiada por Paulo VI, sofreu flagrante derrota e precisou ser refeita. Mesmo a sétima redação, recebeu mais de 1700 votos de modificação. A versão final foi aprovada aos 7 de dezembro de 1965, com 2394 votos favoráveis e 5 votos contra.
O primeiro esquema do documento tinha cinco pontos: o dever missionário, as vocações missionarias, a formação dos missionários, o clero nativo e o respeito pelas culturas locais, as relações entre dioceses e missões.  O esquema final apresenta a seguinte estrutura: princípios doutrinais, a obra missionaria como tal, as Igrejas particulares, os missionários, a organização da atividade missionaria, a cooperação. As mudanças são evidentes e profundas.
Neste documento, a Igreja se entende como enviada por Deus às nações, sobretudo aos povos não alcançados pelo Evangelho ou que não conhecem Jesus Cristo e sua Boa Nova. O sujeito é a Igreja, e o predicado são os povos. Por um lado, a expressão explicita a motivação teológica e espiritual fundamental; por outro, mantém a separação entre populi (escolhidos por Deus) e gentes (rudes, toscos, atrasados).
O texto, assim como a missão destes tempos, não conseguiu superar de vez o risco de negar o diferente, de expandir o colonialismo, de agir de cima para baixo, como de uma cultura superior para povos inferiores. Mas soou o tempo de superar a perspectiva missiológica colonialista, que impõe novas leis, novos reis e novos deuses e caracterizou a missão do século X a XVI.
Evidentemente, a história da evangelização do nosso continente nos entregou grandes testemunhas de uma missão diferente, claramente evangélica: Montesinos, Las Casas... Mas não conseguiram mudar o ‘núcleo-duro’ da missão. Em muitos casos, prevaleceu a ambiguidade, tanto em relação aos indígenas quanto aos negros. Esta perspectiva continuou até o século XIX, sob o nome de progresso e civilização. Isso se nota, por exemplo, no crescente protagonismo missionário dos EUA, que acompanha o crescimento de sua importância no cenário político e econômico internacional.
Um tempo de interrogações e questionamentos
Na primeira metade do século XX, emergem vários debates teológicos sobre o sentido e as possibilidades da missão. Alguns teólogos se perguntam seriamente: Se o próprio Jesus não saiu da Palestina, não teve contato com outros povos ou nações fora do Império romano, a missão faz parte realmente do patrimônio espiritual do movimento cristão? Diante do valor original de cada cultura particular, nas quais estão presentes as sementes do Verbo, é lícito anunciar o evangelho e convidar à conversão ao Evangelho de Jesus? Se todas as religiões são caminhos que levam a Deus, para que oferecer ou impor o nosso caminho particular?
Ao convocar o Concilio Vaticano II, o Papa João XXIII convocou a Igreja a observar os sinais dos tempos, as novas relações humanas no período pós guerra, a dar um salto adiante, rumo a um novo pentecostes, a estabelecer uma nova relação da Igreja com os povos. O discurso missionário do Concilio é o que leva mais a sério o diálogo com o mundo, não para conquista-lo mas para aprender dele e oferecer-lhe caminhos de humanização.
Porém, permanecem algumas questões disputadas. Tem sentido hoje anunciar Jesus Cristo como o mediador definitivo de toda revelação, para todos os povos, diante da pluralidade de religiões e culturas e do direito à liberdade religiosa? Tem sentido afirmar a necessidade de pertencer à Igreja católica se as pessoas podem conseguir a salvação mesmo fora dela? Tem sentido afirmar os sacramentos como meios de graça e salvação, se ela nos é oferecida e chega a nos por outros meios?  Há sentido falar de terras de missão, de missionários e de missão ad gentes, quando as pessoas, especialmente no hemisfério norte, com uma certa frequência negam Deus e a religião, e se tornam uma imensa terra de missão?
O núcleo da questão: Se tiramos os dois conceitos-chave da proclamação de um único e verdadeiro Deus e de adoção de meios específicos para a salvação, não há mais qualquer razão para a missão, nem para a existência da própria Igreja. Como então reafirma-los evitando todo fundamentalismo e exclusivismo?

Itacir Brassiani msf

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