quarta-feira, 20 de julho de 2016

Curso de missiologia (6)

O desafio de viver a fé na América Latina de hoje

A fé e a religião no mundo atual
No curso de missiologia que estamos fazendo em Santa Cruz de la Sierra, o Pe. Victor Codina nos provocou a esta reflexão na manhã de hoje. E começou lembrando que estamos no mundo ocidental, e falaremos a partir dele e nele, com ênfase na América Latina, conscientes de que o que é ocidental está invadindo também o oriente. Vivemos tempos de grandes câmbios, de verdadeiros terremotos científicos, culturais, políticos e religiosos. Trata-se de uma mudança de horizontes, de visão de mundo, de novas aspirações. Estamos na sociedade do conhecimento, do consumo desmedido, do mercado e do lucro como meta absoluta da sociedade, produzindo descarte e exclusão.
A sociedade ocidental moderna está marcada por um grande individualismo, por um desejo de liberdade sem limites, de desfrutar da vida, indiferente em relação aos demais. Isso leva a uma situação de materialismo, sem um horizonte de sentido último. Vive-se o presente, o atual, o contingente e fragmentário. Nesta visão de vida não há espaço para Deus, fé, religião. Não se trata dos grandes ateísmos do século XIX, mas de uma situação de indiferença e agnosticismo. A ideia é que é possível viver bem sem Deus. Deus não é necessário, não é o fundamento da vida e da sociedade. Vivemos num mundo secular, dessacralizado e autônomo. Parece que a religião impediria a liberdade e autonomia, pois impõe regras e limites desde fora.
Ao mesmo tempo, ressurgem movimentos espirituais, pentecostais e carismáticos e vige o desejo de uma certa espiritualidade, sem Deus ou até fundamentalista, para dar calor e sentido a uma vida despojada de sentido. Trata-se de uma religião muito subjetiva, desligada de leis e normas, que responde aos desejos do coração, de calor humano e sensibilidade, sem preocupação com as vítimas e os excluídos. Uma religião à la carte, que mistura um pouco de tudo. Como ser cristãos neste mundo, como viver aqui a fé e como comunica-la aos demais? Como transmitir a fé às novas gerações?

A fé e a religião na América Latina
Segundo Victor Codina, na América Latina e no Caribe o panorama da fé se mostra muito diverso e variado. Diminuiu a influência do cristianismo, e a fé católica foi drasticamente delimitada. Aumentou o número de cristãos evangélicos e cresceu o pentecostalismo, algo novo e surpreendente.  Desde a reforma protestante não se havia experimentado no cristianismo uma mudança tão significativa como esta provocada pelo pentecostalismo, que cresce nas periferias, entre os pobres e mulheres, entre os indígenas e negros. No pentecostalismo, eles recuperam a voz que não tinham nas igrejas históricas. Os mais pobres entre os pobres não estão nas CEBs, mas nas igrejas pentecostais.
Ao lado disso, ressurgem também as religiões ancestrais, que sobreviviam secretamente na alma dos povos. Esta fé original é resgatada sem que se abandone a fé católica, o que abre caminho para um diálogo intercultural e inter-religioso. Mas há também alguns grupos radicais que, rejeitando a colonização e a conquista, recusam também o cristianismo, como parte indissociável da colonização. Esta religião originaria porém não existe em estado puro...
Temos ainda a presença minoritária de religiões mundiais não cristas, que atrai pessoas em busca de uma espiritualidade que não encontram nas religiões ancestrais e clássicas da América Latina. E temos um grupo de crescente de pessoas agnósticas e ateus, especialmente entre os jovens, os intelectuais, os profissionais liberais e os políticos.

A situação da Igreja Católica na América Latina e no Caribe
Como há um pluralismo religioso, diz Victor Codina, o mesmo pluralismo existe no interior da Igreja. A Conferencia de Aparecida faz algumas constatações a esse respeito. Reconhece inicialmente que há uma profunda fé e uma religião profundo, que se expressa sobretudo na religião popular. Diz também que houve um grande processo de renovação, patrocinada pelo Concilio e pelo CELAM, com um grande dinamismo da vida religiosa, da catequese e da teologia.
Mas, ao lado disso, há também uma debilitação da pratica cristã e do sentido de pertença. Há um grande clericalismo, individualismo, marginalização da mulher, sacramentalismo sem evangelização, diminuição do clero e da vida religiosa, aumento do materialismo, baixo sentido de transcendência, abandono das práticas religiosas, fraco senso de pertença à Igreja, passagem a outros grupos religiosos.
A Conferencia de Aparecida diz também que há uma crise de fé, que a fé sofre um processo erosivo, e isso pede uma radical correção e conversão pastoral, para que não cheguemos ao que aconteceu na Europa e nos Estados Unidos. Temos crença sem pertença e pertença sem crença. A divisa “discípulos e missionários” é um sinal de alerta, uma convocação a uma missão continental, pois somos um continente de batizados, mas não de discípulos nem de missionários: não fomos suficientemente evangelizados. Um povo batizado mas que não concluiu o catecumenato.
Portanto, na América Latina se vive um pluralismo religioso, um pluralismo de estilos e formas no interior da própria igreja católica. A maioria dos católicos pertence à religiosidade popular. Mas este senso do sagrado possivelmente tem sua raiz mais nas religiões originarias que no cristianismo. São os cristãos nas 4 estações da vida: nascimento, adolescência, vida adulta, morte. Participam das festas da Igreja (natal e semana santa), festas dos padroeiros, santuários marianos, mas depois desaparecem. Buscam mais os sacramentais que os sacramentos. Dentro disso há muita mistura, sincretismo...  Muitos desses fiéis são muito livres em relação às normas eclesiásticas, mas vivem muitos valores essencialmente cristãos até o heroísmo: trabalho, dedicação aos filhos, oração, hospitalidade... Temos também um bom grupo de praticantes dominicais, classe média ou elite, sem outros compromissos. E um grupo reduzido e vivo da católicos que se comprometem com sua fé, inclusive na sua irrenunciável dimensão social.
Desconhecer este pluralismo religioso e julgar o continente com parâmetros europeus ou norte-americanos é um erro. Mas não podemos também cair no romantismo de pensar que somos a reserva de fé do mundo. O continente com o maior número de católicos é também o que mantém as estruturas sociais mais injustas e desiguais. No passado, em nome da civilização ocidental, indígenas foram exterminados, camponeses foram perseguidos, religiosos e padres foram martirizados por gente que frequentava a Igreja e os sacramentos religiosamente. Por isso, não é estranho que se fale de uma nova evangelização, para passar de um continente de batizados para uma Igreja de discípulos missionários.
O Documento de Aparecida diz que não resistiria aos embates do tempo uma fé católica reduzida a uma bagagem, a um conjunto de normas e proibições, devoções fragmentadas, repetição de princípios doutrinais, moralismos que não mudam a vida (cf. n° 12). A cristandade está agonizando, mas as agonias podem se estender no tempo. Este é um mundo do passado, mas esta crise não é passageira. Não podemos cair em catastrofismos, mas precisamos ver possibilidades e alternativas. O pluralismo religioso veio para ficar. O caminho é apresentar e testemunhar um Deus desejável.
Itacir Brassiani msf

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