Eu vim para lançar fogo sobre a terra (Lc 12,49-53)
A Bíblia diz que Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança
(cf. Gn 1,26). Porém, na verdade, somos nós que muitas vezes criamos um Deus à
nossa imagem e semelhança. Projetamos sobre Deus os nossos desejos, projetos e
características, para que Ele não nos incomode. Algo semelhante se dá com
Jesus. Muitas vezes, projetamos uma imagem dum Jesus inócuo, que não incomoda,
para que ele não nos amole, não nos desinstale.
Estes versículos desafiam a ideia comum de um Jesus calmo, passivo e sem
projeto transformador. Ele mesmo diz: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra”
(v. 49). “Vocês pensam que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo
contrário, eu lhes digo, vim trazer divisão” (v. 51). O que ele queria dizer
com estas palavras?
O fogo que ele trouxe sobre a terra era o fogo do Reino de Deus. O Reino
é algo tão novo, tão inovador, que só pode queimar os preconceitos e projetos
contrários a ele. Também ele faz arder o coração de quem o assume, queima por
dentro, como Jeremias dizia a respeito da Palavra de Deus. Quem encontra este
Reino não pode fugir das suas consequências, tal como reza um canto muito
conhecido: “Como escapar de ti, como não falar, se a tua voz arde em meu peito?
Como escapar de ti, como não falar se a tua voz me queima dentro?”.
A chegada do Reino não traz acomodação, mas é a manifestação da crise
mais aguda da história humana. Diante dele, não é possível ficar neutro.
Todos e todas terão que optar - ou a nossa vida e os nossos projetos serão
coerentes com o projeto de Deus revelado na história e na Bíblia, ou serão
contrários. Por isso, a carta aos Hebreus diz claramente: “A palavra de Deus é
viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; ela
penetra até o ponto onde a alma e o espírito se encontram, e até onde as juntas
e medulas se encontram” (Hb 5,12).
Jesus tem claro que a sua dedicação ao Reino vai encontrar a oposição
dos grupos privilegiados, os donos do poder, seja ele o poder político, o poder
econômico ou, tantas vezes, o poder religioso. Por isso, prediz que teria que
passar por um “batismo” - não o da água, mas do fogo, do sofrimento, que
purifica como o ouro é purificado no crisol. O mesmo acontece com quem
profetisa hoje. Veja, por exemplo, a oposição enfrentada pelo Papa Francisco da
parte de setores conservadores de sua própria Igreja, infelizmente, incluindo
neles muitos padres jovens e seminaristas. Ou ainda, tantos líderes populares,
que pagam até com a vida as suas posições proféticas em favor dos explorados.
Como reconciliar o Jesus da paz com a frase que diz que ele não veio
trazer a paz, mas a espada? De novo, esbarramos com o problema das
línguas. Pois Jesus falava em aramaico, Lucas escreveu em grego, e nós lemos o
Evangelho em português. A palavra “paz” é muito ambígua. Cada um a entende como
quer. Por isso, no auge das ditaduras, tanto de direita como de esquerda,
fala-se em “paz”, pois a repressão impede qualquer manifestação de dissidência.
Para outros, “paz” somente significa a ausência de briga. Nestes conceitos, o
lugar mais pacífico de uma cidade seria o cemitério, pois os defuntos não
brigam.
Mas não foi esta a paz que Jesus veio trazer. Ele trouxe o Shalom, a paz que só Deus pode dar. A
paz que nasce na medida em que se vive a justiça do Reino. Pois sem justiça, a
paz aparente não passa de engano e falsidade. O Shalom, a paz de Deus, não é somente ausência de briga. O Shalom existe na medida em que todos
usufruem de tudo o que é necessário para uma vida digna. Frequentemente,
é o contrário à exploração institucionalizada, que gosta de se apresentar como
“paz”, “ordem” e “progresso”.
Para enfatizar a crise que o Reino acarreta, Jesus fala que as próprias
famílias ficarão divididas, pois ninguém escapa da decisão. Realmente, isso
logo aconteceria com os cristãos judaicos, quando foram expulsos da sinagoga, e
as famílias se racharam por causa da adesão ou não à pessoa e ao projeto de
Jesus. Pode bem acontecer que nós também tenhamos que perder amizades,
relacionamentos, prestígio, sem falar de negócios e poder, se nós optarmos pelo
seguimento de Jesus. Lucas quer nos animar nestes momentos, pois fazem parte da
aceitação do Reino. O discípulo não é maior do que o mestre, e se Jesus teve
que passar por este batismo, que custou muito, nós, os seus seguidores e
seguidoras, podemos esperar que possamos ter a mesma experiência.
Tomaz Hughes svd
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