AINDA E SEMPRE A MISERICÓRDIA
O Papa fechou a Porta
Santa e encerrou o ano da misericórdia. Mas, ao mesmo tempo, escreveu a carta
apostólica Misericórdia et miseranda,
que mostra que esta atitude deve ser o centro da vida de todo cristão.
Comentarei detalhes importantes da carta na próxima crônica. Nesta resgato as
raízes da centralidade da misericórdia para a vida.
A alguns pode deixar
perplexos a misericórdia ser o maior desejo de Deus e não o sacrifício. Pois
não nos ensinaram sempre que é importante fazer sacrifícios, porque esses
agradam a Deus? Os da minha geração certamente perderam a conta de quantas
tabelinhas de ramalhetes espirituais preencheram, em folhinhas parecidas com as
do jogo de batalha naval, dando conta de quantos sacrifícios haviam sido feitos
naquele mês. E esses sacrifícios consistiam em privar-se de balas, ou rezar
ajoelhada no chão frio durante bastante tempo, ou passar um mês sem comer
chocolates. Tudo isso para agradar a Deus. E agora nos dizem que ele não quer
sacrifícios e sim misericórdia? Como assim?
Porque sabe disso,
Jesus insiste. Sabe que não é espontânea em nós a prática da misericórdia. Não é natural nossa inclinação para olhar o
outro sem julgá-lo, sem segregá-lo, sem classificá-lo com rótulos ou
compartimentos que sigam nossos padrões. Pelo contrário, é costume nosso olhá-lo de cima. Pobre dele ou dela
se não tem fé como nós, nem faz sacrifícios diários e miúdos que acumulamos,
acreditando assim economizar para uma eternidade mais confortável ou mais
brilhante.
Ganhar a salvação aplicando na poupança do
sacrifício parece que não agrada a Deus. Pelo menos é isso que diz seu Filho
Jesus, o único que O conhece verdadeiramente. E para reforçar
ainda mais sua afirmação, Jesus o diz após ver seu poder questionado por
ocasião da cura de um paralítico, depois de chamar para segui-lo um publicano
malvisto entre o povo por ser desonesto e ladrão, após ser criticado por comer
com publicanos e pecadores.
Impressionante contexto em que muitos de nós
poderíamos identificar-nos facilmente com os críticos de Jesus. Esclarecedora
situação em que estaríamos certamente entre os que julgam sem cessar o próximo
e por isso têm muito que aprender em termos das preferências de Deus. Ele não se compraz com nossos sacrifícios,
oferendas e rituais, com os quais pensamos comprar sua benevolência. Mas –
pasmem! – deseja a misericórdia incessante e permanente, uma atitude de vida
que nos faça aproximar-nos do outro com as entranhas carregadas de carinho,
ternura e abertura total. Mesmo que o outro não seja puro, nem justo, nem
imaculado, segundo os cânones oficiais.
Este é o aprendizado
que somos convidados a encetar hoje e sempre. Não podemos acreditar-nos mestres
da pureza e doutores da ascese, exibindo em praça pública quão grande é o nosso
espírito de penitência e sacrifício. Estamos
sendo carinhosamente chamados pelo Senhor, em convite reforçado pelas palavras
de Francisco, a sermos discípulos da misericórdia, procurando humildemente
aprender a fazer dela nosso estilo de vida.
Em tudo a misericórdia deve perpassar-nos de
alto a baixo. Deve inspirar nossas palavras, fazendo-nos “sair dos círculos
viciosos das condenações e vinganças, que continuam a encadear indivíduos e
nações", tal como disse o Papa. A palavra do cristão, reiterou ele,
"propõe-se fazer crescer a comunhão”. Portanto, logicamente não pode ser
de juízo e condenação sobre o outro.
A misericórdia deve guiar nossos gestos.
Estender a mão ao diferente, ouvir o angustiado, erguer o caído sem condená-lo,
procurar colocar-se no lugar do outro para entender sua perspectiva e aprender
com ela. O próprio Papa deu o exemplo ao encontrar-se em Cuba com o
patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa russa, em fevereiro passado. Um gesto
concreto que pôs fim a uma separação entre cristãos que já dura mais de mil
anos.
Tudo isso é um
delicado aprendizado. Para tanto, necessitamos de disciplina. E do tempo
propício para aprender do próprio Deus, que quer misericórdia e não sacrifício,
que é misericórdia em Si mesmo. Ao longo
de toda a Escritura, nós podemos ver e ouvir esse Deus desviando o rosto das
gordas oferendas rituais a Ele feitas com o coração carregado de dureza e
intransigência, com a vida pontilhada de cupidez e avareza. Não é possível
agradá-lo assim. Pois o que Ele quer é misericórdia.
Deus é Aquele que
recebe o filho que se foi com festa nunca antes vista naquela casa; que deixa
para trás as noventa e nove ovelhas fiéis e sadias para buscar a que se perdeu
nos espinhos do caminho por não seguir a voz do pastor. Em Jesus, encarnação de
sua misericórdia, Deus acolhe a adúltera sem uma palavra de condenação; aceita
com gratidão a homenagem do amor da pecadora pública que entra no banquete do
fariseu e banha com lágrimas e perfume seus pés cansados da poeira da estrada;
cura doentes, toca leprosos, abraça crianças, liberta os pobres, faz os cegos
verem, os surdos ouvirem e os coxos andarem. Olhando para Ele aprenderemos que a misericórdia é maior que o
sacrifício.
Maria Clara Bingemer
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