É pela perseverança que mantereis vossas
vidas
(Lucas
21,5-19)
O pano de fundo
Hoje, sabemos que o evangelho
segundo Lucas foi escrito na última década do primeiro século. Nessa época, a
guerra de luta pela liberdade por parte da nação judaica diante da ocupação
romana já havia acontecido fazia mais de 30 anos (66-70 d.C.). “Quando ouvirdes
falar de guerras e subversões, não vos atemorizeis, pois é preciso que primeiro
aconteça isso. Mas não será logo o fim. Levantar-se-á nação contra nação, reino
contra reino” (21,9-10).
Também o templo já se encontrava
em ruínas, uma vez que fora destruído sob o comando do general romano Tito em
70 d.C. “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida”
(21,6).
Igualmente, já era uma realidade
a perseguição a Jesus e às lideranças das comunidades por parte dos romanos,
através de seus poderes dependentes na Palestina ou diretamente pelos
imperadores Nero em Roma (54-68 d.C.) e Domiciano em todo o império (81-96
d.C.).
Da mesma forma, autoridades de
sinagogas perseguiam e expulsavam judeus que haviam aderido a Jesus. “Hão de vos
prender, de vos perseguir, de vos entregar às sinagogas e às prisões, de vos
conduzir a reis e governadores por causa do meu nome” (21,12).
Além disso, o evangelista recorda
a crise que a boa-nova de Jesus gerou nas famílias especialmente judaicas. As
pessoas que aderiam às comunidades eram “traídas pelo próprio pai e pela mãe,
irmãos, parentes e amigos”, gerando mortes e ódio (21,16-17).
A isso ainda se pode acrescentar
que, no início dos anos 60, houve dois fortes terremotos no império romano. Um foi
em 61 d.C. em Laodiceia, no oeste da atual Turquia. O outro foi em 62 d.C. na
região de Pompeia, na Itália. O texto de Lucas também se refere a esses
acontecimentos trágicos: “E haverá grandes terremotos” (21,10).
Todos esses fatos servem de pano
de fundo para nossa narrativa. Eles são relidos fundamentalmente em duas
perspectivas. Uma é a partir da experiência com Jesus de Nazaré, inserindo em
sua profecia o anúncio desses acontecimentos. Dessa forma, os autores do
evangelho retroagem esses fatos até a época de Jesus. A outra é a não
realização da expectativa da parusia (presença, chegada) iminente de Jesus,
como se esperava. Esta narrativa é uma advertência às comunidades para não se
deixarem enganar, pois muitos viriam anunciando a proximidade da chegada de
Jesus ou, até mesmo, se apresentando como a presença dele (21,8-9).
Jesus denuncia o sistema injusto do
templo e anuncia o seu fim (21,5-6)
Nosso texto para reflexão na
liturgia deste final de semana situa Jesus em Jerusalém nos dias que precedem a
sua violenta morte imposta a ele por ser fiel ao Pai no anúncio de uma boa-nova
aos pobres (4,18-19). E, no templo, Jesus presencia o gesto mais divino que há
sobre a face da terra, isto é, a partilha protagonizada pela viúva pobre. Sua
atitude é a única coisa boa que Jesus encontrou no templo de Jerusalém. E se
encanta com esse gesto de uma mulher tão vulnerável e empobrecida (21,1-4).
Outro é o motivo de admiração dos
discípulos. Maravilhavam-se pelas valorosas ofertas para pagar promessas e
pelas impressionantes pedras com que estava construído o templo (21,5-6). Para
a surpresa deles, Jesus denuncia a injustiça desse centro religioso, político e
econômico da Judeia. É o que ele deixou bem claro ao, “entrando no
templo, expulsar os vendedores, dizendo-lhes: está escrito: minha casa será uma
casa de oração. Vós, porém, fizestes dela um covil de ladrões” (19,45-46; cf.
Isaías 56,7; Jeremias 7,11). Ao mesmo tempo, Jesus anuncia o fim dessa
instituição, pois “dias virão em que não ficará pedra sobre pedra que não seja
demolida” (21,6).
Nesse sentido, ao inserir-se na
linha profética, Jesus se antecipa a Marx na crítica à religião quando esta
serve como fonte de injustiça, de alienação e de ópio para povo. O papel do
templo é promover vida, é ser lugar de encontro com Deus como casa do Pai
(2,49). Jesus mesmo é esse lugar em que o divino se humaniza e o humano é
divinizado. As comunidades cristãs, partindo do fato histórico da destruição do
templo, referem-se ao Antigo Israel como quem abandonou a Aliança, dando lugar
à boa-nova do reinado de Deus vivido pelas comunidades, e que são o Novo
Israel. Agora, a referência fundamental não é mais o templo, mas a pessoa de
Jesus.
Discernir, ter coragem, testemunhar com sabedoria e
perseverar (21,7-19)
Depois que Jesus apresenta seu
projeto em relação ao templo, os discípulos perguntam a respeito da época em
que isso deveria acontecer e do sinal que viria antes. Mais do que responder às
perguntas, Jesus convida ao discernimento, ao testemunho e à perseverança.
Diante da insegurança dos
conflitos acima lembrados, o evangelho quer animar e confortar, orientar e
advertir as comunidades, dizendo que a destruição de Jerusalém e do templo
ainda não é o fim deste mundo injusto (21,9).
Desse modo, ainda é preciso discernimento:
“Atenção para não serdes enganados” (21,8). E mais, é preciso ter coragem,
superar o medo: “Não vos atemorizeis!” (21,9). Além das guerras (21,9-10), o
evangelista lembra também, em linguagem apocalíptica, os abalos cósmicos.
Embora os terremotos, as pestes e a fome fossem realidades históricas, aqui
também são citados junto com “fenômenos pavorosos e grandes sinais vindos do
céu” (21,11).
Essa linguagem apocalíptica é
comum para se referir a uma realidade nova que está por vir, totalmente diferente
da violência das guerras e da ocupação das colônias pelo império colonialista
de Roma. E essa nova realidade já está sendo gestada nas relações de justiça
vividas nas comunidades.
Em meio às perseguições, é
preciso continuar dando testemunho e reafirmando a fé, mesmo que isso leve ao
martírio. Em grego, a palavra que traduzimos por testemunho é martiría (21,13). Nesse testemunho, as
comunidades não estão sós, pois o Espírito de Jesus ressuscitado está com elas,
de modo que possam resistir com sabedoria e eloquência (21,14-15).
Discípulas e discípulos de Jesus
não devem deixar-se enganar, mas perseverar, pois “é pela perseverança que
mantereis vossas vidas” (21,19). As comunidades esperam, confiam e perseveram
com fé na vitória de Deus. Perseverar não é aguardar de braços cruzados, mas
engajar-se na superação de todas as forças do mal, resistindo com sabedoria e
já vivendo hoje as relações que esperamos para todo o mundo amanhã.
Senhor, ajuda-nos no discernimento dos teus sinais em nossos tempos, para
não sermos enganados por tantas mentiras e ilusões. Dá-nos coragem, ó Deus,
para testemunharmos teu amor diante de tanta violência, muitas vezes legitimada
em teu nome. Concede-nos sabedoria para seguirmos com perseverança no cuidado
da vida. Amém!
Ildo Bohn Gass
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