segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Curso de Missiologia (Passo Fundo - 1)

Paradigmas da Ação Missionária
A segunda semana da segunda etapa do Curso de Aperfeiçoamento da Ação Missionária, promovida pelos Missionários da Sagrada Família e executada pelo Instituto Superior de Filosofia Berthier, iniciou hoje, em Passo Fundo (RS). Participam dos estudos mais de 50 pessoas – padres, religiosos, religiosas e leigos e leigas – provindos de diversas regiões do Brasil, do Chile, da Argentina, da Espanha e da Itália. O curso teve uma primeira etapa de duas semanas em julho passado, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. As reflexões de hoje contaram com a assessoria do professor italiano Mémore Restori, que atua no Centro Cultural Missionário, em Brasília, que desenvolveu o tema dos paradigmas da ação missionária.
Missão: uma realidade complexa
O professor ítalo-brasileiro começou sublinhando que nenhuma definição particular, parcial e fragmentaria pode dar conta da riqueza e da complexidade da realidade da missão. “Evangelização” é, em termos gerais, o anúncio de Cristo, mas “missão” é uma realidade mais complexa, que inclui anúncio, promoção humana e libertação. Complexo é também o contexto no qual a missão se realiza, e pede uma abordagem na perspectiva do pensamento complexo, que supera tanto o pensamento linear como o pensamento sistêmico.
Parafraseando Jesus em Mateus 9,35-38, podemos dizer que hoje a tarefa da colheita é, além de grande, complexa, e pede mais trabalhadores (capacitados, lúcidos) em condições de ler os sinais dos tempos e de dialogar com os diferentes sujeitos sociais. Sobre a missão e a evangelização podemos conceituações apenas provisórias. Não podemos imaginar delinear a missão com excessiva nitidez e autoconfiança. Como assevera Bosch, a missão permanece¸ em última análise, indefinível, e nunca deveria ser encerrada nos estreitos limites dos conceitos sempre ligados às nossas predileções.
Missão: ação de Deus!
O professor Mémore insiste, na linha do Concilio Vaticano II, que a missão dos cristãos e da Igreja é sempre serviço à missão de Deus, o verdadeiro sujeito que inicia, dinamiza e dirige a missão. “Missão” (no singular) está sempre referida a Deus, enquanto que “missões” (no plural) é um conceito referido à ação da Igreja nos diversos contextos visando realizar a missão de Deus. Não é a Igreja que tem uma missão no mundo, mas a missão de Deus que pede um sujeito de ação que inclui a Igreja.
A vida cristã e a Igreja são missionárias não porque se deslocam aos confins da terra, mas porque o Evangelho de Jesus Cristo tem um alcance universal. A missão não se refere essencialmente às iniciativas humanas e institucionais, mas ao Espírito Santo. Não é a Igreja que faz a missão, mas a missão que faz a Igreja. A missão é ponto de partida e de chegada, um remédio que revigora e revitaliza a Igreja: quando se põe em saída para testemunhar a “salvação”, a Igreja, mesmo não tendo este objetivo, rejuvenesce a si mesma.
Os paradigmas mudam!
A missão é uma só nos diferentes tempos e espaços, mas mudam os modelos de pensamento e ação (paradigmas) que delineiam e articulam a missão. São as novas experiências da prática missionária que mostram a caducidade de alguns paradigmas e pedem novas abordagens, novos modelos interpretativos. A complexidade das práticas não cabe mais nos velhos conceitos, estreitos demais, lineares ou sistêmicos. Novas perguntas pedem novas respostas. A mudança de paradigmas busca conjugar revisão histórica com interpretação teológica.
O teólogo David Bosch, partindo do quadro teológico de Hans Kung, fala de (1) modelo néo-testamentário de missão (centrado na parusia, a partir da convicção de que todas as diferenças e hierarquias foram anuladas; (2) modelo missionário oriental (centrado no amor ao mundo não para julgá-lo mas para condená-lo, amor demonstrado pela comunidade reunida); (3) modelo católico da idade média (as pessoas e povos devem ser forçados a entrar no cristianismo); (4) modelo protestante da reforma (somente a Escritura, a Graça, a Fé, Jesus Cristo: na pratica, não existe missão, pois a pessoa chega a Deus por si mesma); (5) modelo moderno do iluminismo, focalizado na doutrina racionalmente clara; (6) modelo ecumênico emergente.
Mas outros pensadores, cada um a partir de seu próprio horizonte experiencial e teórico, nos oferecem diversos modelos típicos ou paradigmas de missão. Severino Dianich fala em (1) modelo missão cumprida, (2) modelo de missão adiada (Foucauld), (3) modelo de missão escondida (inserção anônima e solidaria), (4) modelo de missão contra gentes (cruzadas), (5) modelo de missão ad gentes (no “Novo Mundo”) e (6) modelo de missão histórico-salvífica (Vaticano II).
Partindo da compreensão da vida cristã como se fosse um rio, que assume características diversas de acordo com as mudanças geológicas e geográficas do seu percurso e leva submersas diferentes correntes com forças e características particulares, Bevans e Schroeder falam de três paradigmas teológicos: (1) paradigma ortodoxo e conservador, que centraliza a missão na salvação das almas e na propagação da Igreja; (2) o paradigma liberal, que pensa a missão como busca e descoberta da verdade; (3) o paradigma radical ou da libertação, que pensa a missão como colaboração com a libertação da humanidade.
Missão: um conceito em constante evolução
Até o século XVI, a palavra “missão” era um conceito ligado à doutrina trinitária. Os jesuítas foram os primeiros a usar este conceito para falar da difusão da fé, no bojo da expansão colonial do século XVI. Até o Vaticano II, em termos gerais, “missão” era entendida como envio de agentes eclesiásticos a territórios específicos e atuação nesses territórios.
A expressão “missão” supõe alguém que envia, alguém que é enviado, os destinatários do envio e a incumbência de quem é enviado. O problema é que a Igreja foi progressivamente entendendo a si mesma como aquela que envia, usurpando esse papel que pertence unicamente a Deus! Assim, a missão passou a ser vista como algo que a Igreja faz fora dela mesma, assume uma conotação geográfica, implica em considerar o outro como simples destinatário e tabula rasa, leva a falar em missões, concentra a responsabilidade no Papa e nos seus organismos. A consequência é que os missionários não pertencem mais à Igreja de origem, a missão é um tema anexo à eclesiologia, dizer que uma Igreja local é território de missão é recebido como uma ofensa, a Igreja se sente enaltecida pelas obras missionárias, a cooperação missionária é expressão de caridade para os mais necessitados.
A ideia de inculturação entra no vocabulário teológico apenas em 1979, pois até então falava-se apenas em adaptação.  A identidade cultural dos povos não era considerada, a civilização cristã não valorizava a originalidade cultural (os povos eram vistos como selvagens, primitivos, pagãos), havia uma certa identificação entre evangelização e civilização, e produziu-se uma grande uniformidade de ritos, leis, visões.
No período pré-conciliar, desde o final do século XIX, a teologia da missão foi sendo renovada progressivamente, estimulada por fatores internos e externos: o processo de secularização e de descristianização; a configuração plural do mundo e a descolonização; a divisão entre ricos e pobres e o enfraquecimento das potências mundiais. Ao mesmo tempo, nesse período a Igreja experimenta crises e processos internos de renovação: o movimento da nova teologia (que dialoga com as ciências e a modernidade); os movimentos de renovação bíblica e de renovação litúrgica; o movimento ecumênico, o movimento dos leigos e o nascimento das obras missionárias.
Passos de uma teologia da missão
Em 1896, na Alemanha, foi fundada a primeira cátedra de missiologia, por iniciativa do teólogo Warneck. Em 1911nasceu em Münster, por iniciativa de Schmidlin, o Instituto Internacional de Pesquisas Missiológicas. Karl Barth busca na teologia a base e o horizonte da missiologia, deslocando-a da antropologia: ele localiza a missão no desejo e no dinamismo de Deus, e não necessidade antropológica e eclesiológica
Alguns documentos surgidos nas décadas anteriores ao Vaticano são importantes e ajudaram a preparar a renovação missiológica: Maximum illud, de Bento XV, publicado em 1919; Rerum ecclesia, de Pio XI, dado ao conhecimento público em 1926; Evangelii praeconis, de Pio XII, promulgado em 1951; Fidei donum, também de Pio XII, publicado em 1952; Princeps pastorum, de João XXIII, dado à Igreja em 1959.
Mas nada se compara à contribuição que nos veio do Concílio Vaticano II, que muda a ideia de uma Igreja que tem missões a uma Igreja que é missionária; de uma visão de missão como conquista ao pensamento da missão como diálogo; de uma missão centrada na Igreja para uma missão centrada no Reino de Deus. Este é, entretanto, tema de uma reflexão que não cabe neste espaço!

Itacir Brassiani msf

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