terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

ANO A – PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA – 05.03.2017

Não nos deixes cair em tentação, e livra-nos do mal!
O evangelho do primeiro domingo da quaresma nos coloca frente a frente com as tentações de Jesus. A questão central que este conhecido texto se propõe a responder é a seguinte: Quem orienta e determina as ações de Jesus, ou a quem ele serve? Para os discípulos de Jesus, a questão pode ser expressa de modo semelhante: A quem hipotecamos nossa lealdade, ou a serviço de quem nos colocamos? Qual é o horizonte que dá sentido ao que fazemos e sonhamos? Seguimos nossos próprios interesses e tentamos construir nossa vida relativizando tudo, inclusive Deus?
Por ocasião do seu batismo no rio Jordao, Jesus havia dito a João que era preciso cumprir toda a justiça, assumir a condição humana com todas as consequências. Ele fizera a experiência de ser Filho querido, precioso aos olhos do Pai (cf. Mt 3,15-17), mas parece que lhe parecia difícil assumir a condição humana, como o é para nós: a impotência, a carência, a falta de imagens concretas e palpáveis de Deus nos inquieta e deixa inseguros. E aqui está a tentação: manipular Deus em benefício próprio, criar um deus à medida dos nossos medos e interesses e viver indiferentes a tudo e todos.
O Evangelho diz que Jesus foi tentado pelo diabo. Este personagem está nos evangelhos para assustar ou impor medo. Ele simboliza o espírito invisível do império romano, de todos os impérios, e das elites religiosas do judaísmo e de todas as instituições. As lideranças políticas e religiosas são a forma institucional e histórica deste dinamismo misterioso e potente que opõe resistência aos propósitos de Deus e impõe seus caminhos por meio da indiferença, da injustiça e do medo. E esta força tentadora está presente inclusive no templo, e não apenas no monumental templo de Jerusalém ou de Salomão...
A lógica do poder questiona e desafia Jesus sobre o modo mais correto e eficaz de viver sua filiação divina, sua lealdade do Pai. E a primeira tentação é esta: aproveitar-se da condição de filho para exibir o poder de Deus e saciar a própria fome, agindo em benefício próprio, como costumam fazer as elites. Jesus supera esta tentação afirmando que a nossa sobrevivência depende da obediência a Deus e à sua Palavra vivificadora, e não da submissão interesseira aos poderosos.
A segunda tentação ocorre no centro político, social e religioso do judaísmo. Jerusalém e o seu templo, construídos para servir e louvar a Deus e para ser asilo aos perseguidos, se transformam em obstáculo à lealdade a ele. Aqui a tentação é exigir provas da proteção de Deus sem a contrapartida da fidelidade, pedir uma exibição grandiosa e capaz de impressionar. Jesus se recusa a chamar Deus em causa própria, confia filialmente no Pai, age de acordo com a sua vontade e não cede às tentações típicas do poder.
Na terceira tentação, o tentador tira as máscaras e revela seu rosto como poder. Ele leva Jesus a um lugar alto e demonstra sem sutilezas quem controla os impérios e poderes do mundo: é do diabo, do tentador, que os tiranos recebem o poder, é a ele que servem. Por que Jesus não poderia fazer o mesmo, demonstrar que é filho de Deus agindo segundo a lógica do poder? Mas Jesus permanece fiel à sua identidade de filho do Pai e demonstra a supremacia de Deus sobre todos os poderes.
Como Jesus, nossa tentação hoje é fugir da bela e terrível vulnerabilidade humana. Como desejaríamos ser uma espécie de deuses!  Jesus relativiza as tentativas e vence a tentação de renegar a condição humana e realizar a vontade de Deus pelas vias do poder, e demonstra que nossa fome radical de vida só pode ser saciada pela Palavra que sai da boca de Deus, pela Utopia para a qual acena reiteradamente. E ensina que Deus vem em nosso auxílio exatamente quando renunciamos a pô-lo à prova.
Na carta aos Romanos, Paulo nos lembra que o cristianismo nasce de uma libertadora: no encontro pessoal com Jesus Cristo descobrimos que fomos justificados profundamente e para sempre. Se de Adão herdamos a fraqueza, o fechamento e a condenação, em Jesus Cristo nos é oferecida a acolhida incondicional que nos redime, a libertação da nossa liberdade, o dinamismo gratuito do Espírito Santo que vence todas as tentações de fechamento autossuficiente e de indiferença mortífera.
Deus querido, Pai e Mãe de todas as criaturas: em Jesus, teu filho e nosso irmão, revelaste quão profunda e vivificante é tua materna paternidade. Que teu Espírito nos conduza nas muitas travessias, nos ajude a superar as tentações do poder e a não transformar a religião numa espécie de asilo ou condomínio fechado da indiferença. Que ele nos sustente na missão respeitar e cuidar dos biomas e nos liberte do medo da fragilidade, do desejo de ser sempre o primeiro, o príncipe, o melhor, o superior. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Gênesis 2,7-9; 3,1-7 * Salmo 50 (51) * Carta de Paulo aos Romanos 5,12-19 * Evangelho de São Mateus 4,1-11)

domingo, 26 de fevereiro de 2017

ANO A – QUARTA-FEIRA DE CINZAS – 01.03.2017

Reconciliados por Deus, cuidemos da família das criaturas!
Resultado de imagem para quarta feira de cinzasA tempo quaresmal se abre como um tempo de concentração da atenção e das energias na busca do essencial, como um convite a voltar a Deus com integridade de mente e coração, a vencer a tendência à fragmentação e à indiferença, a verter todas as energias para o único objetivo realmente decisivo: acolher a reconciliação que o próprio Deus nos oferece; refazer as relações fraternas e avançar na construção de uma sociedade justa; e, neste ano, refazer e reforçar nossos vínculos com o bioma no qual vivemos e do qual fazemos parte e nossa luta pela preservação de todos os biomas brasileiros.
Escrevendo aos cristãos de Corinto, Paulo sublinha que o próprio Deus toma a iniciativa de refazer a aliança e consertar a ruptura que provocamos com a sua vontade: em Jesus Cristo, ele reconciliou definitivamente consigo o mundo inteiro e cada um de nós. É deste dom incondicional, desta amizade reatada por livre, generosa e soberana iniciativa dele, que brota para nós a exigência de reconciliação com o Pai, com os irmãos e irmãs e com a família das criaturas da qual fazemos parte. E isso não é algo secundário, mas uma tarefa essencial. É coisa para hoje, para agora!
A tradição das comunidades cristãs privilegiou três ações para expressar a mudança de direção e a convergência das forças que a Quaresma nos propõe: a esmola, a oração e o jejum. Mas, em relação a estas práticas de piedade, presentes em todas as religiões, Jesus pede atenção e autocrítica, pois nem mesmo elas estão livres da falsificação e do faz-de-conta. Por mais piedosos que pareçam, estes gestos podem ser motivados apenas pela busca de aprovação, de estima e de reconhecimento e, então, nos afastam da lógica de Deus, pois ele aprecia aqueles que o mundo não vê, aquilo que fica escondido...
Em relação à esmola, Jesus não a descarta, mas também não se entusiasma ingenuamente. De fato, ele interroga sobre a motivação e a disposição com as quais costumamos praticá-la. “Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua mão esquerda não saiba o que a sua direita faz.” O sentido autêntico da esmola é a solidariedade e a partilha daquilo que temos com as pessoas mais necessitadas que nós. Mais que dar daquilo que sobra ou não nos faz falta, trata-se de partilhar aquilo que é fruto da terra e do trabalho da humanidade e, por isso, pertence a todos e não pode ser privatizado.
Para a maioria das religiões, a oração é uma expressão de fé e de comunhão com a divindade. Não faltam pregadores e movimentos que insistem na necessidade de rezar muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas. Mas Jesus insiste mais na qualidade e na motivação que na quantidade da oração!  Para ele, a oração é abertura radical a Deus e à sua vontade; superação dos estreitos limites dos nossos gostos, preferências e necessidades; diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem e que não descansa enquanto todos os seus filhos e filhas não tenham vida em abundância.
Em relação ao jejum, hoje ele está na moda, e recebe o simpático nome de dieta... Em geral, quem a pratica está muito preocupado consigo mesmo – com a saúde ou com a aparência – e pouco interessado na compaixão e a partilha. No tempo de Jesus, muitas pessoas usavam o jejum, que era originalmente um sinal de arrependimento e de mudança, para impressionar os outros e aumentar a influência e o poder sobre eles. Como cristãos, precisamos resgatar hoje o sentido pedagógico do jejum: fazer experiência da própria vulnerabilidade e participar solidariamente das necessidades dos nossos irmãos e irmãs.
Na espiritualidade quaresmal, o jejum, a esmola e a oração estão a serviço do fortalecimento pessoal e comunitário para combater todas as formas de mal, da conversão ao tesouro inegociável do reino de Deus, da renovação da vida em todas as suas expressões. E isso se mostra cotidianamente na abertura humilde e reverente a Deus, na consciência da nossa interdependência em relação aos nossos irmãos e irmãs, na luta permanente para superar a surdez, a indiferença frente às dores e dramas que muitos deles vivem e à criminosa depredação perpetrada contra nossos ricos e frágeis biomas. “O mundo desfigurado é sinal de que a aliança foi rompida e Deus foi esquecido” (CF 2017, n° 237).
Deus, nosso Pai e Senhor, nós Te louvamos e bendizemos por Tua infinita bondade. Criaste o universo com sabedoria e o entregaste em nossas frágeis mãos para que dele cuidemos com carinho e amor. Ajuda-nos a ser responsáveis e zelosos pela Casa Comum. Cresça, em nosso imenso Brasil, o desejo e o empenho de cuidar mais e mais da vida das pessoas e da beleza e riqueza da criação, alimentando o sonho do novo céu e da nova terra que prometeste. E faz que experimentemos a liberdade que vem da participação na cruz e na ressurreição de Jesus, da vida transformada em dom. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf 
(Profecia de Joel 2,12-18 * Salmo 50 (51) * Segunda Carta aos Coríntios 5,20-6,2 * Evangelho de S. Mateus 6,1-6.16-18) 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O Evangelho dominical: 26.02.2017

NÃO À IDOLATRIA DO DINHEIRO

O Dinheiro, convertido em ídolo absoluto, é para Jesus o maior obstáculo para construir esse mundo mais digno, justo e solidário que quer Deus. Faz já vinte séculos que o Profeta da Galileia denunciou de forma rotunda que o culto ao Dinheiro será sempre a maior dificuldade que a humanidade encontrará para progredir para uma convivência mais humana.
A lógica de Jesus é esmagadora: «Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro». Deus não pode reinar no mundo e ser Pai de todos sem reclamar justiça para os que são excluídos de uma vida digna. Por isso não podem trabalhar por esse mundo mais humano pretendido por Deus os que, dominados pela ânsia de acumular riqueza, promovem uma economia que exclui os mais débeis e os abandona à fome e à miséria.
É surpreendente o que está acontecendo com o Papa Francisco. Enquanto os meios de comunicação e as redes sociais que circulam pela internet nos informam, com todo o tipo de detalhes, dos gestos mais pequenos da sua personalidade admirável, oculta-se de forma vergonhosa o seu grito mais urgente a toda a humanidade: «Não a uma economia da exclusão e da iniquidade. Essa economia mata».
Francisco não necessita de grandes argumentações nem profundas análises para expor o seu pensamento. Sabe resumir a sua indignação em palavras claras e expressivas que poderiam abrir a informação de qualquer telejornal ou ser título da imprensa em qualquer país. Só alguns exemplos.
«Não pode ser que não seja notícia que um idoso morre de frio no meio da rua e que o seja a queda de dois pontos na bolsa. Isso é exclusão. Não se pode tolerar que se deite comida fora quando há pessoas que passam fome. Isso é iniquidade».
Vivemos «na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano». Como consequência, «enquanto os ganhos de uns poucos crescem exponencialmente, os da maioria ficam cada vez mais longe do bem-estar dessa minoria feliz».
«A cultura do bem-estar anestesia-nos, e perdemos a calma se o mercado oferece algo que todavia não compramos, enquanto todas essas vidas truncadas por falta de possibilidades nos parecem um espetáculo que de nenhuma maneira nos altera».
Quando o acusaram de comunista, o Papa respondeu de forma rotunda: «Esta mensagem não é marxismo, mas Evangelho puro». Uma mensagem que tem de ter eco permanente nas nossas comunidades cristãs. O contrário poderia ser sinal do que diz o Papa: «Estamos a tornar-nos incapazes de nos compadecermos com os clamores dos outros e já não choramos ante o drama dos outros».
José Antonio Pagola

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

ANO A – OITAVO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 26.02.2017

Será que não valemos muito mais que as flores e os pássaros? 
Somos pessoas do nosso tempo. Andamos ocupados com muitas coisas. O problema não é simplesmente a ocupação, mas a pré-ocupação com a sobrevivência e bem-estar individuais. Preocupação é aquilo que monopoliza nossos interesses, que toma a nossa atenção e invade nossos sentimentos antecipadamente, produzindo ansiedade, insegurança, medo; é uma espécie de obsessão que sequestra o coração e a mente. Preocupam-nos a segurança, o que os outros pensam de nós, que eles passem à nossa frente, as provisões para o futuro, e tanta coisa mais... Nem o clima de carnaval nos livra disso...
A palavra ‘preocupação’ aparece cinco vezes no evangelho deste domingo! Jesus questiona clara e fortemente nossa excessiva preocupação com a comida, a bebida e a segurança, como se o mundo girasse em torno de nós mesmos e nossos medos e necessidades. Mas reagimos a ele educadamente, dizendo que comida não cai do céu, que bebida não costuma vir com a chuva, que Deus ajuda quem cedo madruga... Em nome do necessário bom senso e da superação da passividade, cresce o número daqueles que guardam o Evangelho na gaveta das lembranças da primeira comunhão e decidem a vida sem ele.
Mas não podemos esquecer que, ao lado das pessoas e grupos que pensam que o dinheiro e a segurança são indispensáveis à felicidade, cresce uma multidão que carece do mínimo para viver.  E Jesus nos lembra que estas questões fundamentais são sociais, e não podem ser resolvidas privadamente, numa luta predatória na qual os mais fortes e astutos derrotam e desfrutam tranquilamente dos mais fracos. Por isso, afirma de forma lapidar: “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro!” Nossa preocupação primeira deve ser com a carência de comida e de bem-estar dos outros, e não conosco mesmos!
Sem ceder à evasão e à ingenuidade, Jesus questiona a carência produzida pelas políticas sociais restritivas, que flexibilizam os poucos direitos trabalhistas, reforçam a segurança jurídica dos empresários (como vem fazendo o governo federal!) e submetem os pobres à ‘ditadura da sobrevivência’. “A vida não vale mais que a comida? O corpo não vale mais que a roupa?” No centro de tudo deve estar a vida de cada pessoa e suas necessidades. Comida, bebida, casa, saúde e todos os bens econômicos e culturais estão a serviço da vida e da dignidade da pessoa, e não podem substituí-la.
Jesus desafia as pessoas que têm bens em abundância e encoraja aquelas que têm pouco ou nada. Ele nos convida a contemplar os passarinhos e as flores e aprender as lições que nos ensinam: eles não conhecem a preocupação nem a ansiedade, mas não lhes falta alimento nem beleza. Deus provê a cada criatura aquilo que ela necessita! “Será que vocês não valem mais que os pássaros? Deus fará muito mais por vocês!” Grandes preocupações nada podem acrescentar à nossa vida. Ocupar-se com o bem-estar dos outros – com o Reino de Deus, vida para todos – pode melhorar a vida deles, e a nossa!
É verdade que a certeza de que a nossa vida está nas mãos de Deus não nos dispensa de tomar iniciativas, de agir e projetar com prudência. Mas tudo começa e tem sua base na convergência dos nossos interesses e preocupações no Reino de Deus, não dividindo com nada e ninguém essa entrega. Isso significa seguir Jesus Cristo, fazer-se discípulo dele, reproduzir na própria vida sua pró-existência, perder a vida para que todos tenham vida, assumir a causa dos pobres, desvalidos e oprimidos... Enfim, importar-se com os outros como a mãe se importa com o sofrimento dos seus filhos.
Jesus insiste na inutilidade da preocupação obsessiva com as próprias necessidades, mas está longe de aceitar ou propor a indiferença diante das necessidades primárias dos outros. Nada mais contrário ao seu ensino e à sua prática! A busca do Reino de Deus é exatamente o empenho pessoal em prol de um mundo justo e fraterno, que assegure a todas as pessoas a satisfação das suas humanas necessidades e direitos. Para os cristãos, a necessidade material dos irmãos é um desafio espiritual. Paulo nos lembra que somos servidores e administradores dos dons que Deus concede à humanidade e a ela se destinam.
Voltamos nosso olhar a ti, Deus pai e mãe, e nas Tuas mãos depositamos nossas necessidades, anseios e preocupações. Queremos servir somente a Ti, e a nenhum outro senhor! Ajuda-nos a buscar o Teu Reino acima e antes de tudo, e ensina-nos a lição dos pássaros do céu e dos lírios do campo. Livra-nos da preocupação obsessiva com nossas próprias necessidades, e não permitas que sejamos seduzidos pelo reino de mammon, o terrível e sanguinário senhor e defensor da riqueza de poucos. E que as necessidades dos nossos irmãos sejam a única preocupação a tirar nosso sono e nossa tranquilidade... Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaias 49,14-15 * Salmo 61 (62) * 1ª. Carta de Paulo aos Coríntios 4,1-5 * Evangelho de São Mateus 6,24-34)

Palavra-Luz, Palavra-Caminho!

A Palavra de Deus desse 21 de fevereiro parece ter sido pronunciada para mim, e é, como sempre! “Filho, se decidires servir o Senhor, permanece na justiça e no temor... Mantém o teu coração firme e sê constante, inclina teu ouvido e acolhe as palavras de inteligência, e não te assustes no momento da contrariedade. Suporta as demoras de Deus, agarra-te a ele e não o deixes, para que sejas sábio em teus caminhos. Tudo o que te acontecer, aceita-o, e sê constante na dor; e nas contrariedades de tua pobre condição, sê paciente... Crê em Deus, e ele cuidará de ti; endireita os teus caminhos e espera nele. Conserva o seu temor, e nele envelhecerás. Vós que temeis o Senhor, contai com a sua misericórdia e não vos desvieis, para não cair... Vós, que temeis o Senhor, esperai coisas boas: alegria duradoura e misericórdia. Vós, que temeis o Senhor, amai-o, e vossos corações ficarão iluminados... Pois o Senhor é compassivo e misericordioso, perdoa os pecados no tempo da tribulação, e protege a todos os que o procuram com sinceridade.” (Eclesiástico 2,1-13) E Jesus completa e inova (cf. Mc 9,30-37), como é seu ousado costume, sublinhando que o lugar mais alto no pódio – no palanque, no altar!  – está reservado para os últimos, os servos. Seus vigários e representantes mais significativos não são necessariamente os padres e bispos, mas os menores, os pequenos, os servidores. Senhor, aumenta minha fé e converte-me, mais uma vez, sempre!

30 anos de ministério presbiteral

Ele me chamou para ser ministro da justiça!

Aqueles eram tempos de idealismo, um pouco pueril, um pouco ousado, muito juvenil. Não era uma questão de anos de vida – eu tinha 27! – mas a característica de uma época, de um tempo de contestação e de construção. Por ninguém resiste aos ventos contrários ou edifica algo sério sem uma overdose de idealismo e de utopia.
Entre tanta gente querida – amigos e amigas, colegas de caminhada, familiares – estava o saudoso Dom José Gomes. Ele presidiu a celebração e, pelas mãos dele, a Igreja me acolheu e ordenou a servir o povo de Deus. Era sincero o meu desejo e meu compromisso publicamente assumido e liturgicamente celebrado, embora mal imaginava as consequências, e aprenderia a duras penas que a contradição – também em nível pessoal! – faz parte da nossa pobre história.
Nas inesquecíveis jornadas de estudos da Sagrada Escritura que o Instituto Missioneiro de Teologia nos oferecia, um texto da profecia de Isaias ressoava fortemente em minha alma juvenil, e acabei elegendo-o para iluminar aquele momento especial: “Eu, javé, chamei você para o serviço da justiça, tomei-o pela mão, e lhe dei forma. E o coloquei como aliança de um povo e luz das nações...” (42,1-9).
Do Evangelho de Jesus de Nazaré, naqueles verdes anos eu identificava como especialmente sugestiva e provocativa para o ministério presbiteral a parábola do bom samaritano (Lucas 10,25-37). Dom José, pessoalmente comovido, sublinhava: missão do padre é deixar a tranquilidade do culto e do templo, percorrer as estradas do mundo, onde muita gente é assaltada em sua dignidade e violentamente expropriada; descer das montarias e hierarquias para fazer-se próximo de quem está ferido; e carrega-los, se preciso for, nas próprias costas...
30 anos se passaram, mas o caminho imaginado pelo profeta Isaias e encarnado pelo Servo Sofredor continua aberto, solicitando meus passos menos ligeiros e mais incertos. E a ordem de Jesus, depois de descrever a ação compassiva, solidaria e transgressora daquele personagem proscrito pelos judeus, continua ressoando com timbre de sino de aldeia nos meus ouvidos já não mais tão atentos: “Vai e faz o que ele fez!”
Já não tenho tantas certezas sobre minha fidelidade a esse mandato. Aprendi a duvidar das grandes e solenes promessas, especialmente das minhas. Descobri que a utopia do Reino tem um calendário mais lento do que, na minha impaciência, desejava que tivesse. Aprendi que o Reino de Deus é algo a ser construído, mas também a ser desejado, acolhido e celebrado. Estou entendendo, pouco a pouco, que não podemos tudo, e isso é bom. E que, nessa história, bela e única, tudo padece de ambiguidade, inclusive a Igreja e eu.
Mas isso não significa mais cansaço e menos ânimo: apenas mais gratidão pelo que os outros – tantos e tantas! – são e fazem por mim, antes de mim, mais que eu; mais reconhecimento à importância indescritível dos Missionários da Sagrada Família neste meu já longo aprendizado; gratidão profunda a Jesus de Nazaré, que quis me aceitar, e continua aceitando, entre os seus muitos discípulos e discípulas, titubeantes e generosos peregrinos, e permanecer fiel na sua amizade.
Obrigado, Senhor, por estes primeiros 30 anos de ministério na tua amada e ambígua Igreja! Obrigado, amigos e amigas, pela generosa amizade, pela indispensável compreensão, pelo fraterno estímulo, pela restauradora companhia. Vamos juntos, degustando gole a gole o vinho dos próximos 30, percorrendo passo a passo a estrada do amadurecimento e do testemunho, rezando conta a conta o rosário do bem-viver?
Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O Evangelho dominical - 19.02.2017

UMA CHAMADA ESCANDALOSA

A chamada ao amor é sempre atrativa. Seguramente, muitos acolhiam com agrado a chamada de Jesus a amar a Deus e ao próximo. Era a melhor síntese da Lei. Mas o que não podiam imaginar é que um dia lhes falaria de amar os inimigos.
No entanto, Jesus o fez. Sem a proteção da tradição bíblica, distanciando-se dos salmos da vingança que alimentavam a oração do seu povo, enfrentando-se ao espírito geral que se respirava à Sua volta, de ódio para com os inimigos, proclamou com claridade absoluta a Sua chamada: «Eu, pelo contrário, vos digo: amai a vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem».
A Sua linguagem é escandalosa e surpreendente, mas totalmente coerente com a Sua experiência de Deus. O Pai não é violento: ama inclusive os Seus inimigos, não procura a destruição de ninguém. A Sua grandeza não consiste em vingar-se, mas sim em amar incondicionalmente a todos. Quem se sinta filho desse Deus não há de introduzir no mundo ódio nem destruição de ninguém.
O amor ao inimigo não é um ensinamento secundário de Jesus dirigido a pessoas chamadas a uma perfeição heroica. A Sua chamada quer introduzir na história uma atitude nova ante o inimigo, porque quer eliminar do mundo o ódio e a violência destruidora. Quem se pareça a Deus não alimentará o ódio contra ninguém, procurará o bem de todos, inclusive o dos Seus inimigos.
Quando Jesus fala do amor ao inimigo não está a pedir que alimentemos em nós sentimentos de afeto, simpatia ou carinho para quem nos faça mal. O inimigo continua sendo alguém de quem podemos esperar dano, e dificilmente podem mudar os sentimentos do nosso coração.
Amar o inimigo significa, antes de mais nada, não fazer-lhe mal, não procurar nem desejar fazer-lhe mal. Não temos de estranharmos se não sentimos amor ou afeto para com ele. É natural que nos sintamos feridos ou humilhados. Temos de nos preocupar quando continuamos a alimentar ódio e sede de vingança.
Mas não se trata só de não lhe fazer mal. Podemos dar mais passos até estarmos inclusive dispostos a fazer-lhe bem se o encontramos necessitado. Não temos de esquecer que somos mais humanos quando perdoamos que quando nos vingamos. Podemos inclusive devolver-lhe bem por mal.
O perdão sincero ao inimigo não é fácil. Em algumas circunstâncias, à pessoa pode-se tornar praticamente impossível liberar-se depois da rejeição, do ódio ou da sede de vingança. Não temos de julgar a ninguém a partir de fora. Só Deus nos compreende e perdoa de forma incondicional, inclusive quando não somos capazes de perdoar.
José Antonio Pagola
Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

ANO A – SETIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 19.02.2017

Pelo amor generoso, revelamos que somos filhos de Deus!
Jesus nos apresenta um caminho inusitado mas seguro para de felicidade, de plena realização das aspirações humanas mais profundas, para a santidade. Trata-se de buscar a perfeição ou o jeito de ser do próprio Deus – somos criados segundo ‘sua espécie’! – evitando a tentação de construir uma ideia de Deus à nossa imagem e semelhança, delimitada e desenhada pelos nossos medos e interesses. Embora este caminho nos pareça um pouco estranho e dissonante, o próprio Jesus o viveu em primeira pessoa, demonstrando que é um projeto necessário e viável.
No evangelho desse domingo, Jesus responde à pergunta sobre como reagir frente às situações de violência e seus agentes. Ele conhece bem a lei judaica que, para limitar uma violência reativa e desproporcional à violência sofrida, propõe não passar do “olho por olho” e do “dente por dente”. Por mais estranho que nos pareça, a lei de talião representa um avanço em relação à lei que facultava a reação violenta e desproporcional do mais forte e ferido sobre os mais fracos. Jesus aponta os limites deste preceito: pagar com a mesma moeda não erradica a violência que ofende, machuca e mata.
Jesus ensina e pede para não reagirmos com violência à ação dos violentos. Mas ele vai mais além, ilustrando e concretizando sua proposta de não-violência ativa em três situações: o tapa no rosto, ato de humilhação considerado um direito dos superiores; o processo de penhora da roupa de um pobre endividado, visto como direito dos credores; a obrigação de acompanhar a marcha dos soldados a serviço do império, carregando às costas as armas que se voltavam contra o próprio povo. Mas, atenção! A proposta de Jesus não tem nada a ver com submissão e passividade!
Oferecer a outra face significa permanecer senhor de si e desafiar a legitimidade de um sistema projetado para humilhar. Dar o manto a quem penhora a túnica (desnudar-se publicamente!) significa revelar a humanidade que a todos irmana e denunciar a avareza violenta e espoliadora dos credores. Caminhar o dobro do percurso que o soldado servil determinou significa não aceitar o jogo do império, questionar a hierarquia, tomar a iniciativa e decidir a ação. Por isso, parece claro que a proposta de Jesus tem como meta eliminar o círculo vicioso que liga as ações e reações violentas.
O fato é que sempre classificamos as pessoas e dividimos o mundo em amigos e inimigos. Amamos e respeitamos os que estão próximos e alimentamos suspeitas ou somos indiferentes em relação aos estranhos. O conceito próximo abrange uma certa diversidade de gênero, riqueza, parentesco e etnia, e a imagem do inimigo não se limita aos adversários nacionais ou aos membros de outras religiões, mas se estende a todos os oponentes pessoais. É aqui que entra o mandamento de Jesus: nosso amor não pode se restringir aos iguais, aos próximos, mas deve chegar aos estranhos e distantes, até aos inimigos.
Talvez hoje situemos entre os inimigos (reais ou potenciais) as pessoas e grupos que ameaçam nosso bem-estar e nossos privilégios ou questionam nossa supremacia em termos de competência, gênero, religião, cultura, etc. Pedindo que amemos nossos inimigos e até rezemos por aqueles que nos perseguem, Jesus está sublinhando que condição social, a etnia, o gênero e a religião não podem ser limites que restringem o dinamismo do nosso amor. O amor entre os iguais pode ser egoísmo! Rezar por quem nos persegue significa clamar pelo fim da opressão e das estruturas que as sustentam! Amar o inimigo significa ir além do que ele é hoje e amar aquilo que ele pode ser: irmão e parceiro!
Jesus resume sua proposta ética e espiritual numa frase: “Sejam perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” A perfeição do Pai faz com que a chuva beneficie tanto os justos como os injustos e o sol ilumine tanto os bons quanto os maus. Ser perfeito como o Pai celeste significa não impor condições nem ter reservas, ser inteiro e verdadeiro em tudo e com todos, pois, como nos lembra Paulo, todos – nós, os outros, a comunidade eclesial e a comunidade humana! – somos santuários de Deus e templos do Espírito Santo. Que ninguém ponha sua gloria no próprio grupo, etnia, gênero, igreja, religião!
Jesus, mestre e servidor da liberdade, de todas as liberdades: ajuda tua Igreja a vencer o medo da liberdade e da verdade que viveste e ofereceste a todos. Faz que nossas comunidades sejam laboratórios nos quais as pessoas de boa vontade se exercitem no respeito e na promoção da dignidade de todos os teus filhos e filhas, inclusive no amor aos inimigos. E dá-nos a sábia loucura que espanta os doutores mas seduz as pessoas que não sacrificaram sua humanidade no altar do egoísmo predatório. Queremos ser filhos do teu e nosso Pai, generosos e perfeitos na misericórdia e na compaixão solidaria! Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Levítico 1,2.17-18 * Salmo 102 (103) * 1ª. Carta aos Coríntios 3,16-23 * Evangelho de São Mateus 5,38-48)

sábado, 11 de fevereiro de 2017

O Evangelho dominical - 12.02.2017

NÃO À GUERRA ENTRE NÓS

Os judeus falavam com orgulho da Lei de Moisés. Segundo a tradição, Deus mesmo a tinha oferecido ao seu povo. Era o melhor que haviam recebido Dele. Nessa Lei está a vontade do único Deus verdadeiro. Aí podem encontrar tudo o que necessitam para ser fiéis a Deus.

Também para Jesus a Lei é importante, mas já não ocupa o lugar central. Ele vive e comunica outra experiência: está chegando o reino de Deus; o Pai está procurando abrir caminho entre nós para fazer um mundo mais humano. Não basta cumprir a Lei de Moisés. É necessário abrir-nos ao Pai e colaborar com Ele para fazer a vida mais justa e fraterna.

Por isso, segundo Jesus, não basta cumprir a Lei, que ordena «não matarás». É necessário, também, arrancar da nossa vida a agressividade, o desprezo pelo outro, os insultos. Aquele que não mata cumpre a Lei, mas, se não se liberta da violência, no seu coração não reina todavia esse Deus que procura construir conosco uma vida mais humana.

Segundo alguns observadores, estende-se na sociedade atual uma linguagem que reflete o crescimento da agressividade. Cada vez são mais frequentes os insultos ofensivos, proferidos só para humilhar, desprezar e ferir. Palavras nascidas da rejeição, do ressentimento, do ódio ou da vergonha.

Por outra parte, as conversações estão frequentemente tecidas de palavras injustas que distribuem condenações e semeiam suspeitas. Palavras ditas sem amor e sem respeito, que envenenam a convivência e fazem mal. Palavras nascidas quase sempre da irritação, da mesquinhez ou da baixeza.

Não é esta uma situação que se dê apenas na convivência social. É também um grave problema no interior da Igreja. O Papa Francisco sofre ao ver divisões, conflitos e confrontos de «cristãos em guerra contra outros cristãos». É um estado de coisas tão contrário ao Evangelho que sentiu a necessidade de dirigir-nos uma chamada urgente: «Não à guerra entre nós».

Assim fala o Papa: “Dói-me comprovar como em algumas comunidades cristãs, e entre pessoas consagradas, consentimos diversas formas de ódios, calunias, difamações, vinganças, ciúmes, desejo de impor as próprias ideias à custa de qualquer coisa, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. A quem vamos evangelizar com esses comportamentos?” O Papa quer trabalhar por uma Igreja em que “todos podem admirar como vos cuidais uns aos outros, como vos dais alento mutuamente e como vos acompanhais”.
Jose Antonio Pagola

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

ANO A – SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 12.02.2017

A Justiça do Reino de Deus é mais que cumprimento de leis!
A pedagogia libertadora de Jesus desvela o sentido profundo e as implicâncias concretas das Escrituras na nossa vida cotidiana. Jesus nos propõe uma justiça mais séria e mais humana que aquela ensinada e praticada pelos escribas e fariseus. “Não penseis que eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento.” Diante de João Batista, Jesus já antecipara sua visão da lei e dos costumes: “Devemos cumprir toda a justiça!” (3,16). Paulo chama isso de “misteriosa sabedoria de Deus, sabedoria escondida”, sabedoria que nenhum dos poderosos deste mundo conheceu...
No evangelho deste domingo, Jesus propõe duas ênfases na leitura e na interpretação das Escrituras Sagradas. A primeira é a vinculação das Escrituras ao sonho de Deus, ao seu projeto de vida abundante para todos, com clara prioridade aos que são tratados como ‘últimos’ na escala social. Quando este vínculo é rompido ou enfraquecido, as Escrituras podem produzir o contrário daquilo que Deus quer transmitir: justificação do poder dos poderosos; ocultamento das relações de opressão; aumento do fardo que penaliza os mais fracos da sociedade; afirmação orgulhosa dos crentes diante do próprio Deus.
A segunda ênfase proposta por Jesus é a estreita ligação entre escutar, ensinar e praticar as Escrituras. Para Jesus, estava claro que os escribas e fariseus tinham se apropriado da compreensão das Escrituras mas não estavam dispostos a fazer a passagem da compreensão intelectual à ação responsável. E esta continua sendo a grande tentação que ronda os teólogos e dirigentes religiosos. A advertência de Jesus Cristo é clara e inequívoca: “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.”  E, dito isso, Jesus passa a alguns exemplos concretos.

Um primeiro exemplo da radicalização da Lei e da concretização das bem-aventuranças há pouco proclamadas solenemente está no campo das tensões nas relações interpessoais. Esta questão era já contemplada pelo mandamento “Não matarás!” Mas, para Jesus, o conteúdo desta lei não se resume em evitar o homicídio. O projeto de Deus é muito mais amplo, e passa pela pacificação das relações e pela superação das posturas raivosas e da linguagem eivada de desprezo, preconceito e violência, como aquela usada recentemente nas redes sócias em relação à enfermidade e morte da esposa do Lula...

Uma segunda área de demonstração é a liturgia. Jesus critica o culto que ignora as rupturas nas relações humanas e não impulsiona à reconciliação. Para ele, a vida concreta é mais importante que os ritos religiosos, e a percepção das tensões e rupturas relacionais tem primazia sobre a ortodoxia. “Deixa a tua oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão.” E que ninguém se engane, sentindo-se justificado por não ter matado ninguém ou postergando para um futuro indefinido a reconciliação. É preciso fazer isso antes de chegar ao tribunal do incerto fim da vida...
Jesus prossegue com duas novas exemplificações da ética do Reino, agora no âmbito das relações homem-mulher. O primeiro exemplo focaliza a questão do adultério, e afirma que a lei tem a função de educar para uma relação que não seja possessiva. “Quem olhar para uma mulher com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério...” Jesus sabe que o dinamismo que sustenta comportamentos sexuais descontrolados é sutil: passa do olhar viciado e interesseiro, que não reconhece a dignidade da pessoa, à mão que se apossa e manipula. Jesus insiste que é preciso cortar o mal pela raiz...
Ainda nesse âmbito da relação de gênero, Jesus reprova a dominação masculina sobre a mulher, mesmo quando vem sancionada pela cultura e pela lei. Dizer que a lei permite ou que é costume não desculpa nem justifica. Este é o horizonte da proposta de Jesus no caso do divórcio. A permissão legal do divórcio legitimava o descompromisso do marido com a ex-companheira e garantia ele o direito de maltratá-la e execrá-la publicamente, mas a ética do Reino de Deus restringe o poder ilimitado e violento dos homens. E Jesus prossegue, com exemplos no âmbito da comunicação, sublinhando que a sinceridade deve estar acima de tudo, que é melhor uma amarga verdade que uma doce mentira ou falsidade...
Jesus Cristo, mestre na formação de uma nova mentalidade e na construção de um mundo mais humano: ensina-nos a colocar as leis e tradições no seu devido lugar, e a não transformá-las em instrumentos de dominação ou descompromisso. Guia as tuas igrejas a uma justiça maior que o cinismo e a ostentação herdadas do farisaísmo. Que teu ensino e teu exemplo desenvolvam em nós relações pacificadoras, igualitárias e solidárias. E que teu Espírito suscite em nossas comunidades cristãs a criatividade livre e a liberdade fiel, sendas que levam à uma justiça radical e humanizadora. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Eclesiástico 15,16-21 * Salmo 118 (119) * 1ª. Carta aos Coríntios 2,6-10 * Evangelho de São Mateus 5,17-37)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

O Evangelho dominical - 05.02.2017

SAIR PARA AS PERIFERIAS

Com duas imagens audazes e surpreendentes, Jesus dá a conhecer o que pensa e espera dos seus seguidores. Não hão de viver pensando sempre nos seus próprios interesses, no seu prestígio ou no seu poder. Apesar de serem um grupo pequeno no meio do vasto Império de Roma, hão de ser o «sal» que necessita a terra e a «luz» que faz falta ao mundo.

«Vós sois o sal da terra». As pessoas simples da Galileia captam espontaneamente a linguagem de Jesus. Todo o mundo sabe que o sal serve, sobretudo, para dar sabor à comida e para preservar os alimentos da corrupção. Do mesmo modo, os discípulos de Jesus hão de contribuir para que as pessoas saboreiem a vida sem cair na corrupção.

«Vós sois a luz do mundo». Sem a luz do sol, o mundo fica nas trevas: já não nos podemos orientar nem disfrutar da vida no meio da obscuridade. Os discípulos de Jesus podem aportar a luz que necessitamos para nos orientarmos, aprofundar no sentido último da existência e caminhar com esperança.

As duas metáforas coincidem em algo muito importante. Se permanece isolado num recipiente, o sal não serve para nada. Só quando entra em contato com os alimentos e se dissolve na comida pode dar sabor ao que comemos. O mesmo sucede com a luz. Se permanece encerrada e oculta, não pode iluminar ninguém. Só quando está no meio das trevas pode iluminar e orientar. Uma Igreja isolada do mundo não pode ser nem sal nem luz.

O papa Francisco viu que a Igreja vive encerrada em si mesma, paralisada pelos medos e demasiado afastada dos problemas e sofrimentos como para dar sabor à vida moderna e para oferecer a luz genuína do Evangelho. A sua reação foi imediata: «Temos de sair para as periferias existenciais».

O papa insiste uma e outra vez: «Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e manchada por sair à rua que uma Igreja doente por estar encerrada e pela comodidade de agarrar-se as suas próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro e que termina enclausurada num emaranhado de obsessões e procedimentos».

A chamada de Francisco está dirigida a todos os cristãos: «Não podemos ficar tranquilos numa espera passiva nos nossos templos». «O Evangelho convida-nos sempre a correr o risco do encontro com o rosto do outro». O Papa quer introduzir na Igreja o que ele chama a «cultura do encontro». Está convencido de que «o que necessita hoje a Igreja é capacidade de curar feridas e dar calor aos corações».

José Antonio Pagola
Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

ANO A – QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 05.02.2017

“Vão pelo mundo e sejam uma luz que sempre brilha...”

As metáforas do sal e da luz se prestam a diversas leituras, mas quando este ensino de Jesus é isolado do contexto literário acaba perdendo muito do seu sentido original, profundamente provocador. Por isso, é importante não esquecer que o breve texto do evangelho proposto para este domingo está situado na sequência das bem-aventuranças e antes da reflexão sobre o sentido permanente das escrituras. Faz parte do conjunto literário conhecido como “Sermão da montanha”, no qual Jesus apresenta aos seus discípulos a ética cristã, ou o caminho da felicidade verdadeira e duradoura.
O sal dá sabor, purifica e conserva os alimentos, e o faz desaparecendo, como ocorre com o fermento na massa. O sal realiza plenamente aquilo que dele se espera quando se desfaz: o que se experimenta é o sabor, o que se vê é que o alimento não se estraga, o que se percebe é a limpeza e a esterilização. Algo semelhante ocorre com a luz: nosso olhar não se volta a ela mesma, mas às coisas que ela ilumina. Não olhamos para o sol, mas nos deleitamos com as paisagens e rostos que ele desvela. Um punhado de sal fora dos alimentos não é comestível e olhar que se volta para a luz acaba cego...
Os discípulos e discípulas que vivem uma condição bem concreta de injúria e perseguição, que são os destinatários da última bem-aventurança, são agora chamados de sal da terra e luz do mundo. Dizendo isso, Jesus afirma que são as pessoas que promovem a paz, as pessoas que tem sede de justiça, as pessoas misericordiosas e coerentes, as pessoas mansas e lutadoras, e todas as pessoas que por isso sofrem perseguição as que iluminam caminhos, dão sabor à vida e conservam sua qualidade. Estas vidas bem-aventuradas purificam a história e mostram uma direção!
As imagens do sal e da luz lembram a identidade testemunhal, missionária e proativa dos discípulos e discípulas de Jesus. A luz deles deve brilhar para todos os homens e mulheres, vendo o Reino de Deus em ação, glorifiquem a bondade de Deus. Ter fome e sede de justiça, promover a paz e enfrentar perseguições são atitudes que refletem um posicionamento ativo, uma ação que incide sobre as nefastas forças das culturas e instituições que tendem a oprimir e marginalizar. Na visão do profeta Isaías, nossa luz brilha quando demonstramos compaixão e solidariedade com os oprimidos.
Por sua vez, Paulo, no texto da Carta aos Coríntios recortado e proposto para este domingo, nos recorda que o brilho do anúncio do mistério de Deus não está na linguagem elevada e exata, nem se alimenta do prestígio social ou das estratégias do poder de quem o anuncia. A luz e a força do Evangelho brotam de Jesus Crucificado por amor, da sua generosidade e compaixão pelos últimos da sociedade. E é também na proximidade que se faz presença solidária, mesmo quando acompanhada de fraqueza, receio e medo, que a pregação cristã brilha como luz e cumpre sua função de ser sal que dá sabor.
A história testemunha que nem sempre os cristãos estiveram à altura dessa vocação. Efetivamente, o sal pode perder o sabor e a luz pode se esconder e até desaparecer. A pregação também pode adquirir ares de arrogância e de imposição que intimida e oprime. Mais que uma possibilidade remota, isso é fato historicamente comprovado e tentação que nos ronda permanentemente. Não é por acaso que já as primeiras comunidades cristãs, através do evangelista Mateus, fazem questão de nos lembrar e advertir: o que se pode fazer e esperar quando o próprio sal perde sua qualidade?
Quando a comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus esquece sua responsabilidade com a transformação do mundo, para que as iniciativas, projetos e instituições se subordinam à tarefa de produzir o bem-estar da comunidade humana, ou quando, por medo ou por preguiça, deixa de viver a ética das bem-aventuranças, perde o sabor e não serve para mais nada, nem para aquilo que chamam de santificação pessoal. É como sal arruinado ou como uma lanterna escondida debaixo de uma caixa. Infelizmente temos muito sal insosso e muita luz que perdeu o brilho e se refugiou em si mesma...
Deus querido, Pai e Mãe! Nós te agradecemos porque nos destes Jesus, Sal que dá sabor à nossa vida, Luz que revela a beleza e a dignidade de todas as tuas criaturas. Envia teu Espírito, para suscitar e manter a missão e o testemunho da tua Igreja em todas as circunstâncias, especialmente quando a perseguição assusta e o medo a leva a esconder tua preciosa luz. Ajuda nossas lideranças eclesiais a não fazerem média com os que oprimem e mudam leis e constituições para caçar direitos, e a não privar teu Evangelho do sal e do fogo que purificam. E concede às nossas comunidades aquela lucidez profética que lança luzes sobre os muitos sinais do teu Reino, que continua se aproximando, teimosamente. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaías 58,7-10 * Salmo 111 (112) * 1ª. Carta aos Coríntios 2,1-5 * Evangelho de Mateus 5,13-16)