domingo, 10 de setembro de 2017

Paixão & Missão

Um domingo com doce-amargo sabor de missão
Pe. Pedro, em frente à igreja de Malina...
O episódio do evangelho que a Igreja propunha para aquele domingo (3 de setembro de 2017) era aquele que podemos chamar da crise de fé de Pedro. Depois de haver professado a fé em Jesus, o Cristo e filho de Deus vivo, e depois de ter sido elogiado por sua ortodoxia e sabedoria, Pedro se colocou à frente de Jesus querendo impedi-lo de seguir o caminho que o próprio Pai havia traçado: não a carreira sacerdotal e o sucesso, mas o caminho profético da denúncia, do enfrentamento e dom de si até o fim.  A Palavra de Jesus é clara: o verdadeiro discípulo se coloca atrás dele, e não à frente. Ele é o caminho, por mais heterodoxo que às vezes pareça ser.
Ruminando essa boa e provocativa notícia de Jesus Cristo, despertei às 04:30 h e, depois de um café frugal, acompanhei o Pe. Pedro Léo Eckert msf na visita e celebração às comunidades da zona de Malina, setor “Milhana A”, paroquia Santa Cruz de Muíte, diocese de Nampula, Moçambique. A viagem durou mais de três horas.  Passamos por vários povoados, com suas casas típicas de palha e barro, atravessamos regiões praticamente desérticas, por onde perambulam misérias que ferem como se fossem espinhos que ameaçam penetrar nossos olhos.
O povo nos esperava em grande número, à sombra dos cajueiros. Quando avistaram o velho e conhecido Land Rover, um dos poucos veículos em condições de enfrentar incólume os caminhos – ou descaminhos – do sertão moçambicano, fizeram fila e abriram caminho para nos acolher com seus cantos, sempre acompanhados por tambores. Uma acolhida masculina, pois, nestas terras e culturas, a mulher vem sempre depois, atrás e abaixo... A evangelização deve sim ser inculturada, mas precisa também, no tempo oportuno, introduzir a novidade de Jesus!
Como é costume nestas terras de opressão explícita e continuada e de pecado introjetado, a celebração começa com as confissões individuais. Neste momento, o imenso muro étnico que separa o missionário estrangeiro e o fiel nativo, se mostra uma barreira linguística. Como escutar e orientar o fiel que vive sua fé, carrega suas dores e confessa seus pecados na língua macua se o missionário fala apenas português? Que Jesus revele sua inesgotável misericórdia na escuta atenta e nas palavras de apoio, benção e perdão de um ministro limitado e também pecador.
O Pe. Pedro presidiu a missa, seguindo o ritual na língua macua, com a ajuda de um “ancião” (ministro leigo), naturalmente mais habilitado nas nuances da língua. Fez a homilia em português, traduzida, a seu modo e no seu próprio horizonte religioso, pelo ancião. Por aqui é assim mesmo. A fé que o povo mantém e que mantém o povo é aquela que os lideres leigos cultivam e transmitem. Por isso, uma das principais estratégias da missão parece ser a formação continua e profunda dos verdadeiros sujeitos da Igreja, as lideranças leigas.
No final da missa, o coirmão pediu-me gentilmente que eu falasse. Até então, eu permanecera calado. Comecei dizendo que não havia falado porque sou surdo e mudo. Foi uma brincadeira, mas também uma metáfora da realidade:  o missionário e o visitante, além de serem hospedes, são e permanecem sempre um pouco surdos, pois não conseguem entender a língua e a cultura do outro, e mudos, porque não conseguem se comunicar adequadamente. Talvez seja essa a maior dor dos/as missionários/as: por mais que se esforcem e se doem, generosamente, permanecerão sempre estrangeiros/as e estranhos/as, uma espécie de bárbaros...
Um flash da presença das crianças presentes na celebração 
No final, em meio a danças e cantos, a comunidade expressou sua gratidão, como é costume por aqui, entregando aos missionários dois pequenos frangos e um enorme cacho de bananas. Em seguida, depois de algumas brincadeiras com as crianças e conversas com os adultos, serviram-nos a tradicional chima (feita de água e farinha de milho), frango assado, fígado de porco e cabrito cozido, que comemos usando as mãos como talheres. Estava gostoso e nos alimentou para a viagem de volta, por estradas arenosas, poeirentas e cheias de buracos e enormes pedras.
Assim, e ainda mais dura, e mais bela, é a vida dos missionários/as nessas terras: mais de 7 horas de viagem, em meio a incontáveis riscos, para uma celebração. Mas, para celebrar e se encontrar, há gente que caminha muito mais, sob um sol escaldante e enfrentando, entre outros, o risco de serpentes. E, além de não receber frangos e bananas, também volta para sua casa sem chima, sem frango assado e sem cabrito cozido. Oxalá, naquilo que depender de nós, essa gente nunca volte sem a alegria do Evangelho, sem a certeza do amor e da misericórdia de Jesus Cristo.

Itacir Brassiani msf

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