terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

ANO B – TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA – 04.03.2018

Jesus enfrenta a violência que se esconde até na religião!
A experiência religiosa está ligada a lugares, tempos, normas, símbolos e ritos que a expressam e tornam palpável. Nos seus salmos, o povo hebreu suspirava: “Como são desejáveis as tuas moradas, Javé dos Exércitos! Minha alma suspira e desfalece pelos átrios de Javé... Felizes os que habitam em tua casa: eles te louvam sem cessar... Mais vale um dia em teus átrios do que mil em minha casa” (Sl 84/83). Mas até o templo, intimamente relacionado com a celebração da fé, pode estar carregado de ambiguidades. E a quaresma nos ajuda a purificar o olhar, o pensar e o agir, inclusive em relação aos templos e ritos.
Jesus entra no templo numa data festiva. Na festa da páscoa, a cidade ficava entulhada de peregrinos, e o comércio fervia, e o faturamento crescia. Estima-se que, por ocasião das festas pascais, no templo de Jerusalém eram sacrificados mais ou menos 18.000 animais! O povo chegava de todos os lados para oferecer os sacrifícios, e para isso, precisava comprar os animais. E os vendedores de animais e os cambistas estavam lá para facilitar os ‘negócios de Deus’ e faturar encima da piedade popular. Como a lei proibia o uso de moedas com imagens dos reis e dos impérios, lá estavam os cambistas.
As próprias autoridades religiosas, usando a fé e o nome de Deus em vão, haviam transformado o templo em espaço e instrumento de exploração. Jesus fica simplesmente indignado com tudo isso. O zelo pelo bem-estar do povo o inflama e consome. Por isso, expulsa os comerciantes, derruba as mesas dos cambistas e pede aos vendedores de pombas que levem suas gaiolas embora. “Tirem isso daqui!” Jesus mostra-se mais indignado com estes últimos, pois são os exploram a fé dos mais pobres, daqueles que, por sua miséria, só podiam comprar e oferecer pombas (cf. Lv 5,7; 14,30).
Ameaçando e expulsando os comerciantes e cambistas, Jesus denuncia o uso do nome de Deus para fins de exploração e diz que, na prática, a elite que havia se apropriado do templo e o administrava cultuava outros deuses. E hoje não é diferente, pois muitas pessoas que invocam o nome de Deus para justificar sua prosperidade e refutar as lutas dos pobres, excluem e violentam outros em nome da própria honra... A ação de Jesus, mesmo parecendo um gesto violento, é uma reação apaixonada em defesa das vítimas de uma violência exercida em nome da religião e do mercado religioso.
A expulsão dos comerciantes do templo é a primeira ação propriamente pública de Jesus relatada no evangelho de João. Os dirigentes do templo reagem imediatamente, solicitando as credenciais de Jesus, perguntando com que direito ele faz isso. “Que sinal nos mostras para agir assim?” Eles pouco se importam com a exploração dos pobres. Estão interessados nas credencias de Jesus! Não querem apenas saber se Jesus se apresenta como profeta, já que fazer um chicote e ‘botar ordem’ no templo era um gesto ligado à chegada do Messias. Querem uma demonstração de que ele é mesmo o Messias esperado.
Com sua desconcertante ação simbólica, Jesus faz bem mais que purificar o templo ou corrigir suas práticas. Ele declara que o templo não é mais caminho e espaço para o encontro com Deus, que os sacrifícios e ritos são por si mesmos inúteis. A partir de Jesus, Deus se deixa encontrar na humanidade das pessoas que amam e lutam para superar a violência e na comunidade que serve os mais necessitados. O templo permanece unicamente como espaço de encontro e lugar para fazer memória e cultivar a esperança. A verdadeira sacralidade migra do templo para os corpos dos filhos e filhas de Deus e para as ações concretas do corpo de Cristo, que é a comunidade eclesial.
Ilustrando aquilo que é visto como importante até hoje, Paulo escreve: “Os judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria.” Traduzindo numa linguagem atual: uns procuram e valorizam gestos grandiosos, demonstrações de poder; outros confiam no conhecimento e no saber bem organizado. Mas o poder e a sabedoria de Deus brilham em Jesus de Nazaré, irmão servidor da humanidade, vítima da violência religiosa e política. Infelizmente até hoje temos Igrejas e movimentos que não fazem outra coisa senão promover cultos e ‘milagres’ espetaculares e prometer sucesso e prosperidade...
Senhor Jesus, para muita gente, teu ensinamento e tuas atitudes parecem exageradas e loucas. Pensam que uma religião que prioriza a fraternidade seja coisa destinada ao fracasso. Estão habituados a decorar leis, frequentar cultos, oferecer sacrifícios e ouvir condenações. Mas Paulo diz que loucura de Deus é mais sábia que os homens e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens! Vem de novo, Jesus, e purifica as Igrejas do entulho moralista, escapista e autoritário. Que nossas comunidades sejam teu corpo, constituído de membros igualmente dignos e solidários, continuadores da tua compaixão. Amém! Assim seja!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Êxodo 20,1-17 * Salmo 18 (19) * 1ª. Carta aos Coríntios 1,22-25 * Evangelho de Joao 2,13-25)

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

O Evangelho dominical - 25.02.2018


LIBERTAR A FORÇA DO EVANGELHO
Este relato da «transfiguração de Jesus» foi desde o início muito popular entre os Seus seguidores. Não é apenas mais um episódio. A cena, recriada com diversos recursos de carácter simbólico, é grandiosa. Os evangelistas apresentam Jesus com o rosto resplandecente enquanto conversa com Moisés e Elias.
Os três discípulos que o acompanharam até ao cimo da montanha ficam surpreendidos. Não sabem o que pensar de tudo aquilo. O mistério que envolve Jesus é demasiado grande. Marcos diz que estavam assustados.
A cena culmina de forma estranha: «Formou-se uma nuvem que os cobriu e saiu da nuvem uma voz: Este é o meu Filho amado; escutai-O». O movimento de Jesus nasceu escutando a Sua chamada. A Sua Palavra, recolhida mais tarde em quatro pequenos escritos, foi gerando novos seguidores. A Igreja vive a escutar o Seu Evangelho.
Esta mensagem de Jesus encontra hoje muitos obstáculos para chegar até aos homens e mulheres do nosso tempo. Ao abandonar a prática religiosa, muitos deixaram de o escutar para sempre. Já não ouvirão falar de Jesus se não de forma casual ou distraída.
Tampouco quem se aproxima das comunidades cristãs pode apreciar facilmente a Palavra de Jesus. A Sua mensagem perde-se entre outras práticas, costumes e doutrinas. É difícil captar a sua importância decisiva. A força libertadora do Seu Evangelho fica por vezes bloqueada por linguagens e comentários alheios ao Seu espírito.
No entanto, também hoje o único decisivo que pode oferecer a Igreja à sociedade moderna é a Boa Nova proclamada por Jesus e o Seu projeto humanizador do reino de Deus. Não podemos continuar a reter a força humanizadora da Sua Palavra.
Temos de fazer que a Palavra corra limpa, viva e abundante pelas nossas comunidades. Que chegue até aos lares, que a possa conhecer quem procura um sentido novo para a sua vida, que a possa escutar quem vive sem esperança.
Temos de aprender a ler juntos o Evangelho. Familiarizar-nos com os relatos evangélicos. Colocar-nos em contato direto e imediato com a Boa Nova de Jesus. Nisto temos de gastar as energias. Daqui começará a renovação que necessita hoje a Igreja.
Quando a instituição eclesiástica vai perdendo o poder de atração que teve durante séculos, temos de descobrir a atração que tem Jesus, o Filho amado de Deus, para quem procura a verdade e a vida. Dentro de poucos anos daremos conta que tudo nos empurra para colocar com mais fidelidade a Sua Boa Nova no centro do cristianismo.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO B – SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA – 25.02.2018


Escutemos o que Ele nos diz: ‘Vocês são todos irmãos e irmãs’!
A vida é uma travessia, e são muitas as armadilhas que nos ameaçam a cada passo que damos. E então o medo nos assalta com frequência, sugerindo construir tendas protetoras ou voltar à segurança imobilizadora do ponto de partida. Façamos esta travessia tendo sempre a Palavra do Senhor como bússola, convictos de que, se o próprio Deus está a nosso favor, nada nos poderá impedir de seguir lutando pela realização dos sonhos que partilhamos com a humanidade. E não esqueçamos do convite forte desta quaresma: na consciência de que somos irmãos, superemos todas as formas de violência!
Na liturgia do domingo refletimos sobre a cena das tentações de Jesus e sobre o modo como ele as vence. Ao ser informado da prisão de João Batista, Jesus percebeu que soara para ele o tempo da missão. Então, sem medo de nada, deixou o deserto da Judéia e voltou à Galileia. E fez ecoar um anúncio marcado pela esperança e pela urgência: “O templo se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” Este tempo maduro e esperado o impulsiona a mudar suas prioridades. Ele mesmo, acreditando na boa notícia que anuncia, reorganiza seu projeto de vida.
Na liturgia desse segundo domingo da quaresma encontramos Jesus no alto da montanha, acompanhado de Pedro, Tiago e João. Para estes discípulos, que testemunham a transfiguração de Jesus, essa é uma experiência inicialmente positiva. Envolvido pelo brilho de Jesus, Pedro parece vencer o medo que envolve a todos. Moisés e Elias lembram a presença de Deus nos momentos difíceis e desanimadores da história do povo de Israel. Estes dois personagens confirmam e dão credibilidade ao caminho e ao ensino de Jesus. O evangelho da cruz, novo êxodo e proposta do amor que se faz humano dom de si mesmo, continua valendo, mais do que nunca. Mas é exatamente isso que mete medo nos três...
Acontece que, nessa experiência densa e profunda, os discípulos são envolvidos primeiramente pela luz, e, posteriormente, pela escuridão nebulosa. E é de dentro da nuvem – símbolo da presença de Deus na quase interminável travessia da escravidão para a liberdade, do servir-se para o servir – que eles ouvem a voz de Deus: “Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz.” Pedro, Tiago e João – e com eles todos os que fomos batizados em Jesus Cristo – devem levar a sério o que Jesus Cristo diz e faz, devem levar a sério a proposta evangélica de servir solidariamente, de desaparecer como o fermento na massa.
Escutar o que Jesus Cristo diz significa, por um lado, não fugir diante do chamado a encontrar a vida gastando-a pelos outros; não crer nos mitos que nos dizem que somos superiores aos outros; não imaginar que o Reino de Deus cairá prontinho do céu; não fingir que amamos, quando nossas ações traduzem indiferença. Por outro lado, escutar Jesus implica em renunciar aos interesses egoístas e dedicar-se à missão de levar todas as pessoas formarem uma só família, seguindo Jesus no caminho da cruz; anunciar que somos todos irmãos e ser criativo e efetivo na luta pela superação da violência.
O desejo expresso por Pedro é ambíguo e intrigante: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.” Pedro fala sem saber o que diz, para ‘quebrar o gelo’ e espantar o medo, e compartilha do pensamento de Judas sobre Jesus (cf. Mc 14,45)! As roupas brancas de Jesus falam muito claramente de martírio, e Pedro quer evitar a todo custo esse caminho... Para a transformação e a humanização do mundo, Pedro prefere o caminho do culto e da adoração, simbolizado na tenda, e descarta a proposta do amor que se faz dom e enfrenta o próprio martírio.
Não podemos usar a cena da transfiguração para amenizar as exigências do discipulado, substituindo o sangue pelas flores e a coroa de espinhos pela coroa do sucesso. Sabendo que os discípulos entendem mal ou pouco o que veem, Jesus os proíbe severamente de falar da transfiguração. Esta mesma proibição aparece depois da reabilitação da filha de Jairo (cf. Mc 5,43) e da libertação do surdo-mudo (cf. Mc 7,36). Para Jesus, cultos espetaculares e publicidade escancarada não são caminhos adequados para resgatar a humanidade perdida e para viver o belo e exigente mandato de servir.
Jesus Cristo, Mestre e Servo da humanidade! Sustenta-nos enquanto dura a travessia desta vida e acompanha-nos na caminhada rumo à terra livre, à plena vida para todos. Ajuda-nos a sacrificar nossas frágeis seguranças, impotentes para garantir a verdadeira salvação. Abre nossos ouvidos à atenta escuta da tua boa e exigente notícia, e ajuda-nos a traduzi-la em ações que resgatam a dignidade humana, tantas vezes pisoteada. Não permite que tua Igreja se transforme numa tenda de bem-estar egoísta! Transforma as estruturas que nos dispensam ou impedem de vivermos como irmãos e irmãs. Amém! Assim seja!
Itacir Brassiani msf

(Livro do Gênesis 22,1-18 * Salmo 115 (116) * Carta aos Romanos 8,31-34 * Evangelho Marcos 9,2-10)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O Evangelho dominical - 18.02.2018

ENTRE CONFLITOS E TENTAÇÕES

Antes de começar a narrar a atividade profética de Jesus, Marcos diz-nos que o Espírito o empurrou para o deserto. Ele ficou ali quarenta dias, deixando-se tentar por Satanás; vivia entre vermes e os anjos serviam-No. Estas breves linhas são um resumo das tentações ou provas básicas vividas por Jesus até à Sua execução na cruz.
Jesus não conheceu uma vida fácil nem tranquila. Viveu levado pelo Espírito, mas sentiu na Sua própria carne as forças do mal. A Sua entrega apaixonada ao projeto de Deus levou a viver uma existência desgarrada por conflitos e tensões. Dele temos de aprender, nós Seus seguidores, a viver em tempos de prova.
«O Espírito empurra Jesus para o deserto»
Não o conduz para uma vida cômoda. Leva-O por caminhos de provas, riscos e tentações. Procurar o reino de Deus e a Sua justiça, anunciar Deus sem falseá-Lo, trabalhar por um mundo mais humano é sempre arriscado. Foi para Jesus e será para os Seus seguidores.
«Ficou no deserto quarenta dias»
O deserto será o cenário pelo que transcorrerá a vida de Jesus. Este lugar inóspito e nada acolhedor é símbolo de provas e dificuldades. O melhor lugar para aprender a viver do essencial, mas também o mais perigoso para quem fica abandonado às suas próprias forças.
«Tentado por Satanás»
Satanás significa o adversário, a força hostil a Deus e a quem trabalha pelo Seu reinado. Na tentação descobre-se o que há em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a Deus ou de cumplicidade com a injustiça. Ao longo da Sua vida, Jesus irá manter-se vigilante para descobrir «Satanás» nas circunstâncias mais inesperadas. Um dia rejeitará Pedro com estas palavras: «Afasta-te de mim, Satanás, porque os teus pensamentos não são os de Deus». Os tempos de prova temos de os viver, como Ele, atentos ao que nos pode desviar de Deus.
«Vivia entre vermes e os Anjos serviam-No»
As feras, os seres mais violentos da terra, evocam os perigos que ameaçaram Jesus. Os anjos, os seres mais bondosos da criação, sugerem a proximidade de Deus, que os abençoa, cuida e sustenta. Assim viverá Jesus: defendendo-se de Antipas, a quem chama «raposa», e procurando na oração da noite a força do Pai. Temos que viver estes tempos difíceis com os olhos fixos em Jesus. É o Espírito de Deus que nos está a empurrar para o deserto. Desta crise sairá um dia uma Igreja mais humana e mais fiel ao Seu Senhor.
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

ANO B – PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA – 18.02.2018


Conversão, justiça, comunhão e alegria é missão de cada dia!
Na última quarta-feira, enquanto recebíamos um punhado de cinza sobre a cabeça, escutávamos contritos e atentos a interpelação: “Convertam-se e acreditem no Evangelho!” Exatamente nessa ordem: primeiro, converter-se; depois, acreditar no Evangelho. A proposta apresentada por Jesus, assim como o caminho por ele aberto, são portadores de uma novidade tão radical que, para acolhê-la, precisamos mudar nossos esquemas mentais. E a base e o ponto de partida é aquilo que Pedro anuncia: a Aliança que Deus selou conosco em Jesus Cristo, a justo que morreu para reconciliar os injustos com Deus.
O evangelista nos diz que, logo depois do batismo no rio Jordão, onde faz a experiência de ser filho amado do Pai e servo enviado aos irmãos e irmãs, Jesus é conduzido pelo Espírito ao deserto. Seu batismo assinala claramente um novo começo, mas com sua retirada para o deserto esse início parece ser adiado por um tempo. Na verdade, Jesus apenas se retira do palco e se subtrai aos holofotes para aprofundar o sentido da missão que assumiu no batismo. No deserto, ele é levado ao confronto consigo mesmo e com as diversas possibilidades de viver sua condição de filho amado do Pai e servo da humanidade.
Efetivamente, Jesus faz a experiência das tentações que costumam acompanhar todos aqueles que se comprometem no serviço a Deus e ao seu povo: a tentação das soluções fáceis, miraculosas e espetaculares (cf. Mc 8,11); a tentação do legalismo e do casuísmo para beneficiar apenas algumas pessoas (cf. Mc 10,2); a tentação de disputar o poder (cf. Mc 12,15); a tentação de identificar a vontade de Deus com os próprios medos e vontades (cf. Mc 14,32-38). Os 40 dias de deserto recordam simbolicamente que Jesus foi frequentemente tentado, mas venceu guiando-se pelo Espírito.
No deserto, Jesus foi clareando o núcleo do Boa Notícia que anunciaria aos pobres. Por isso, este foi um tempo forte de discernimento e amadurecimento que, de alguma forma, estendeu-se por toda a sua vida. Pois o amadurecimento costuma se oferecer na discrição, no silêncio e na margem, longe dos holofotes e da publicidade. Este é o espírito do tempo quaresmal: sair do centro das atenções, deixar de lado os papéis decorados, vencer a comodidade de ficar na superfície e na periferia de nós mesmos, penetrar no núcleo mais secreto e vivo do nosso ser, enfim: crescer no conhecimento de Jesus e na adesão a ele.
O anúncio que Jesus acolheu, aprofundou e reformulou no seu deserto não comporta ameaças ou imposturas. É pura Boa Notícia. “O tempo de espera se cumpriu e o Reino de Deus está próximo!” Aquilo que era esperança faz-se realidade. Aquilo que estava distante agora está inexoravelmente próximo. É o tempo da graça do Senhor, da assinatura de um novo pacto com seus filhos e filhas e com toda sua criação, da justiça vindo como chuva e da paz correndo como rio... Jejuamos, rezamos e fazemos penitência para não passarmos ao largo nem relativizarmos a única coisa que vale a pena.
E qual é este bem precioso do qual não podemos abrir mão? É o novo céu e a nova terra, um país sem miséria e sem corrupção, mas também sem injustiças nem desigualdades (que são violências escondidas mas permanentes, que ferem a alma e o corpo dos mais pobres); uma cultura que enfatiza a relações harmoniosas entre as gerações, entre os grupos sociais, com a natureza e até com a morte, parte insuprimível da vida. E isso mesmo quando nos parece impossível não desconfiar daqueles que nos apresentam medidas e notícias excludentes e violentas como se fossem remédio.
Jesus percorre caminhos que o levam do rio Jordão ao deserto e, do deserto, à Galiléia. Caminhos que o afastam dos palcos e o aproximam da margem. Estradas que levam ao encontro do povo cansado e abatido, para anunciar-lhe a Boa Notícia da chegada do Reino de Deus, da renovação da aliança selada com Noé e com Moisés. Eis o rumo que seus discípulos e discípulas precisamos seguir. É apenas um rumo, não uma estrada bem sinalizada. Os caminhos concretos somos nós que devemos inventar, na força do batismo e com uma consciência boa e reta, como nos diz São Pedro na sua carta.
Jesus, voz que clama no deserto! Faz com que a oração traga oxigênio à nossa fé e nos mantenha abertos às tuas promessas. Que o jejum nos ajude a perceber nossos limites e a potencialize nossa sede de paz, de justiça e de igualdade. Que a partilha do pouco que temos com os que tem menos ainda seja semeadura de novas relações, fecundadas pelo amor e pelo serviço generoso. Que nossas celebrações comunitárias e nossa oração pessoal nos mantenham numa atitude vigilante e nos sustentem na necessária conversão. E não permitas que o cansaço ou a pressa nos prendam aos velhos hábitos e nos impeçam de servir ao bem comum, como indivíduos e como Igreja. Amém! Assim seja!
Itacir Brassiani msf

(Livro do Gênesis 9,8-15 * Salmo 24 (25) * 1ª. Carta de Pedro 3,18-22 * Evangelho de São Marcos 1,12-15)

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

ANO B – QUARTA-FEIRA DE CINZAS – 14.02.2018


Deus não despreza ninguém, e tem compaixão de todos!
Estamos iniciando a caminhada quaresmal, tempo de concentração e de busca do essencial, convite a voltar a Deus de todo o coração, a vencer a tendência à fragmentação e à indiferença, a verter todas as energias para o único objetivo realmente decisivo: acolher a oferta de reconciliação que o próprio Deus nos faz; refazer as relações fraternas e avançar na superação das violências e na construção de uma sociedade radicalmente igualitária. Isso significa, entre outras coisas, reforçar o nosso combate sem tréguas contra os males que se enraízam tanto nos nossos sentimentos e pensamentos quanto na cultura e na estrutura social do Brasil, mesmo aqueles embutidos nas reformas ditas imprescindíveis.
Escrevendo aos cristãos de Corinto, Paulo enfatiza que o próprio Deus toma a iniciativa de refazer sua aliança e consertar a ruptura que provocamos com a sua proposta: em Jesus Cristo, ele reconciliou definitivamente consigo o mundo e cada um de nós. É desse dom incondicional, dessa amizade reatada unilateralmente, que brota para nós a possibilidade e a exigência de reconciliação com o Pai e com os irmãos e irmãs. E isso não é algo secundário, mas uma tarefa essencial e coisa para hoje, para agora! “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação!”, sublinha o apóstolo das nações.
A tradição das comunidades cristãs privilegiou três ações que expressam simbolicamente a mudança de direção e a convergência das forças que marcam o tempo quaresmal: a esmola, a oração e o jejum. Mas, em relação a estas práticas de piedade, Jesus Cristo pede vigilância e autocrítica, pois nem mesmo estas ações estão livres da falsificação e do faz-de-conta. Por mais piedosos que pareçam, estes gestos podem ser motivados pela busca de aprovação, de estima e de reconhecimento e, então, afastam da lógica de Deus, que aprecia e reconhece aqueles que o mundo não vê, aquilo que fica escondido...
Jesus não a descarta a esmola, mas também não se entusiasma ingenuamente com ela. De fato, Jesus questiona a motivação e a disposição com a qual costumamos dar esmola. “Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua mão esquerda não saiba o que a sua direita faz.” O sentido autêntico da esmola é a solidariedade e a partilha daquilo que temos com as pessoas que tem menos ainda. Mais que dar daquilo que sobra ou não faz falta, trata-se de partilhar aquilo que é fruto da terra e do trabalho da humanidade e que, por isso mesmo, não pode ser privatizado, pertence a todos.
A oração é, na maioria das religiões, uma expressão de fé e de comunhão com a divindade. Não faltam grupos e pregadores que insistem na necessidade de rezar muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas. No Evangelho, Jesus insiste mais na qualidade e na motivação que na quantidade da oração.  Para ele, a oração é abertura radical a Deus e à sua vontade, superação dos estreitos limites dos nossos gostos, preferências e necessidades, diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem e que não descansa enquanto todos os seus filhos e filhas não estejam bem.
Quanto ao jejum, hoje ele está de novo na moda, e recebe o simpático nome de dieta. Mas quem a pratica está muito preocupado consigo mesmo, com a saúde ou com a aparência, e pouco interessado na compaixão e na partilha. No tempo de Jesus, muitas pessoas usavam o jejum, sinal de arrependimento e de mudança, para impressionar os outros e aumentar a influência e o poder sobre eles. Como cristãos, precisamos resgatar o sentido pedagógico do jejum: experimentar a humana vulnerabilidade e participar solidariamente das necessidades dos nossos irmãos e irmãs.
Na espiritualidade quaresmal, o jejum, a esmola e a oração estão a serviço do fortalecimento da vontade de combater todas as formas de mal, da conversão ao tesouro do reino de Deus, da renovação da vida em todas as suas expressões. E isso se mostra cotidianamente na abertura humilde e reverente a Deus, na consciência da nossa interdependência em relação aos nossos irmãos e irmãs, na luta permanente para superar todas as formas de violência, assim como a indiferença e o pragmatismo interesseiro que podem condicionar as igrejas e religiões em suas relações com a sociedade civil e o estado brasileiro.
Deus e Pai, nós vos louvamos pelo vosso infinito amor e vos agradecemos por ter enviado Jesus, o Filho amado, nosso irmão. Ele veio trazer paz e fraternidade à família das criaturas e, cheio de ternura e compaixão, sempre viveu relações repletas de perdão, solidariedade e misericórdia. Derrama sobre nós o Espírito Santo, para que, com o coração convertido, acolhamos o projeto de Jesus e sejamos construtores de uma Igreja fraterna e inclusiva e de uma sociedade justa e sem violência, solidaria e igualitária, para que, no mundo inteiro, cresça o vosso Reino de liberdade, verdade e de paz. Amém! Assim seja!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Joel 2,12-18 * Salmo 50 (51) * 2ª. Carta aos Coríntios 5,20-6,2 * Evangelho de S. Mateus 6,1-6.16-18

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

O Evangelho dominical - 11.02.2018

AMIGO DOS EXCLUÍDOS

Jesus era muito sensível ao sofrimento de quem encontrava no Seu caminho, marginados pela sociedade, esquecidos pela religião ou rejeitados pelos setores que se consideravam moral ou religiosamente superiores.
É algo que lhe sai de dentro. Sabe que Deus não discrimina ninguém. Não rejeita nem excomunga. Ele não é só dos bons. A todos acolhe e abençoa. Jesus tinha o costume de levantar-se de madrugada para orar. Em certa ocasião revela como contempla o amanhecer: «Deus faz sair o Seu sol sobre bons e maus». Assim é Ele.
Por isso, às vezes ele reclama com força e pede que cessem todas as condenações: «Não julgueis e não sereis julgados». Outras vezes, narra uma pequena parábola para pedir que ninguém se dedique a «separar o trigo e a joio», como se fosse o juiz supremo de todos.
Mas o mais admirável é a Sua atuação. O traço mais original e provocativo de Jesus é o Seu hábito de comer com pecadores, prostitutas e pessoas indesejáveis. O fato é insólito. Nunca se tinha visto em Israel a alguém com fama de «homem de Deus» comendo e bebendo animadamente com pecadores.
Os dirigentes religiosos mais respeitáveis não puderam suportar. A sua reação foi agressiva: «Aí tendes a um comilão e bêbado, amigo de pecadores». Jesus não se defendeu. Era certo, pois no mais íntimo do Seu ser, sentia um respeito grande e cultivava uma amizade comovedora para com os rejeitados pela sociedade ou pela religião.
O evangelista Marcos recolhe no seu relato a cura de um leproso para destacar essa predileção de Jesus pelos excluídos. Jesus está atravessando uma região solitária. De repente aproxima-se um leproso. Não vem acompanhado por ninguém. Vive na solidão. Leva na sua pele a marca da sua exclusão. As leis condenam-no a viver afastado de todos. É um ser impuro.
De joelhos, o leproso faz a Jesus uma súplica humilde. Sente-se sujo. Não lhe fala de doença. Só quer ver-se limpo de todo estigma: «Se queres, podes limpar-me». Jesus comove-se ao ver a Seus pés aquele ser humano desfigurado pela doença e o abandono de todos. Aquele homem representa a solidão e o desespero de tantos estigmatizados. Jesus «estende a Sua mão» procurando o contato com a pele dele, «toca-lhe» e diz-lhe: «Quero, fica limpo!»
Sempre que discriminamos diferentes grupos humanos (vagabundos, prostitutas, toxicômanos, psicóticos, imigrantes, homossexuais...)  a partir da nossa suposta superioridade moral e os excluímos da convivência negando-lhes o nosso acolhimento estamos nos afastando gravemente de Jesus.
José Antonio Pagola

Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

ANO B – SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 11.02.2018

Curando o leproso, Jesus devolve a cidadania dos excluídos!
Depois de nos ter convocado a tomar parte na sua missão de reunir o povo disperso e anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus vai à sinagoga, onde enfrenta a autoridade dos escribas, e à casa de Pedro, onde cura muitos doentes. Após uma madrugada de oração, no final da qual ampliou os horizontes da missão, Jesus é procurado por um leproso. Narrando estes fatos, o evangelista Marcos nos ajuda, pouco a pouco, a reconhecer em Jesus um homem absolutamente livre e libertador, capaz de estabelecer a pessoa humana necessitada ou marginalizada como prioridade absoluta.
No tempo de Jesus, a lepra era considerada uma das piores doenças. A lei de Moisés determinava que as pessoas portadoras dessa doença deveriam ser separadas da convivência familiar e social e morar fora das aldeias, em bosques ou cavernas. E proibia que elas se aproximassem das pessoas consideradas sãs. Os leprosos eram declarados impuros, e assim permaneciam enquanto durava a doença. Isso significa que, como doentes, os leprosos eram colocados à margem da sociedade e considerados sujeitos sem direitos e sem dignidade. E a lei da pureza tornava ainda mais pesada a vida do leproso.
O que chama a atenção é que o leproso descrito no evangelho de hoje se aproxima de Jesus sem levar em conta as proibições impostas pela lei. Ele chega perto de Jesus e pede: “Se queres, tu tens o poder de me purificar”. Essa aproximação é, por si mesma, uma transgressão da lei que demarca muito bem os limites da movimentação de um leproso. Ele jamais poderia aproximar-se de qualquer pessoa sadia, e deveria gritar de longe, pedindo que ninguém se aproximasse, por ele ser impuro. De onde vem a confiança e a força que sustentam este leproso anônimo na sua destemida transgressão? Ele é muito mais ousado que as mais ousadas sátiras que costumam animar o carnaval mais crítico!
Não deixa de causar surpresa a observação de que Jesus ficou muito irritado (algumas traduções amenizem e falem que ele se compadeceu). Seguramente, Jesus não se irrita com o leproso que a ele se dirige com tanta coragem e reverência, mas com a terrível ideologia que carimbava o fardo da doença com a marca da impureza e da exclusão religiosa. Ou então, porque sabe que aquele leproso já havia procurado os sacerdotes para ser purificado e nada conseguira. Jesus se irrita porque sabe que os leprosos são marginalizados e que, para serem purificados, devem oferecer um sacrifício muito custoso.
Jesus “estendeu a mão, tocou no doente e, respondendo à interpelação dele, disse: ‘Eu quero, fique purificado!’ No mesmo instante a lepra desapareceu e o homem ficou purificado.” Jesus não é indiferente à doença e à impureza que pesa sobre os marginalizados! Ele se deixa tocar pela miséria deles e, ao mesmo tempo, os purifica com seu toque solidário.  Declarando puro aquele leproso, Jesus desafia a lei e a autoridade sacerdotal, e ocupa o lugar deles. Enviando o leproso ao templo, Jesus reintroduz no mais sagrado dos espaços da cidade aquela criatura antes condenada à viver à margem da cidadania.
Em outras palavras: o leproso, agora transformado em cidadão, é enviado por Jesus ao templo para testemunhar contra os sacerdotes, e assim participa da própria missão de Jesus. Na verdade, tendo sido reinserido na sociedade que o excluía, ele não vai ao templo, mas se transforma em apóstolo na praça pública: “Começou a pregar muito e espalhar a notícia.” Aquele homem antes condenado aos lugares remotos e desertos, volta ao seio da família e ao coração da cidade e torna-se testemunha e evangelizador. Como consequência, agora é Jesus que não pode mais entrar sossegado numa cidade...
É como se a impureza deixasse o leproso e passasse a Jesus. Com seu toque humanamente divino, Jesus purifica o leproso e assume sua impureza, assume na sua própria carne o pecado do mundo. O doente, antes excluído, se torna cidadão, enquanto que Jesus experimenta a perseguição... Os lugares desertos e afastados das cidades, porém, não são obstáculo para sua missão libertadora. “De todos os lados as pessoas iam procurá-lo.” Jerusalém se esvazia, o templo fica estéril e o povo procura Jesus no deserto. E Jesus continua sua missão de curar, de desmascarar a ideologia discriminadora dos escribas.
Estende tua mão, Jesus de Nazaré, e toca as multidões que jazem à beira da vida, jogadas em situações nas quais é quase impossível sobreviver. Converte a mão da tua Igreja em mão acolhedora e benfazeja. Ajuda-nos a ir além das cômodas mãos postas e a eliminar os incômodos dedos em riste. Que a comunidade dos que acreditam em ti trabalhe sem tréguas pela tua glória, que é a vida dos pobres, e não seja pedra de acusação ou de tropeço para ninguém. Assim, como ensina São Paulo, os cristãos serão teus imitadores e poderão ser imitados, pois não estarão buscando o que é vantajoso pare si mesmos. Amém! Assim seja!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Levítico 13,1-2.44-46 * Salmo 31 (32) * 1ª Carta de Paulo aos Coríntios 10,31-11,1* Evangelho de  Sao Marcos 1,40-55)